quinta-feira, 2 de abril de 2020

Chegada à Califórnia

Fotograma do filme As vinhas da ira (1940), de John Ford

O caminhão rodava sobre a terra quente, as horas passavam. Ruthie e Winfield tinham adormecido. Connie puxou um cobertor, lançou-o sobre si e Rosa de Sharon, e apesar do calor eles se uniram apertados, retendo a respiração. Um pouquinho depois, Connie jogou de lado o cobertor, e o vento quente que peneirava pela fresta da lona armada acariciava-lhe os corpos molhados de suor.
Atrás, na ponta da carroceria, estava a mãe, deitada ao lado da avó. Ela nada podia enxergar, mas podia sentir o corpo se debater e o coração a lutar; a respiração arquejante chegava-lhe aos ouvidos. E a mãe dizia e repetia:
Vai ficar tudo bem; tudo se resolverá. — E continuava em voz rouca: — A gente tem que continuar, a gente tem que chegar.
Tio John perguntou:
Tudo bem?
Demorou um pouco a resposta dela:
Tudo bem. Acho que sim. Tava começando a dormir. — Pouco depois a avó ficou imóvel e a mãe jazia hirta ao lado dela.
As horas noturnas passavam e reinava completa escuridão no caminhão. Às vezes, carros passavam por ele, indo para o Oeste, e logo sumindo; outras vezes pesados caminhões vinham do Oeste e ribombavam rumo ao Leste. As estrelas desciam em lento cortejo para o ocidente. Era cerca de meia-noite quando chegaram às proximidades de Dagget, onde fica o posto de inspeção. A estrada estava fartamente iluminada naquele ponto, e havia uma grande tabuleta luminosa com os dizeres: “CONSERVE-SE À SUA DIREITA E PARE.” Os funcionários estavam no interior da casinha do posto quando chegou o caminhão dos Joad, e logo saíram para o comprido alpendre. Um deles anotou o número da placa de licença do caminhão e abriu o capô do motor.
Que é isto aqui? — perguntou Tom.
Fiscalização de Agricultura. Temos que dar uma busca nas suas coisas. Têm aí vegetais ou sementes?
Não — disse Tom.
Bom, temos que examinar a carga. Desçam todos!
A mãe, agora, saltou do caminhão. Seu rosto estava inchado e seus olhos com uma expressão endurecida.
Escute, seu — começou. — A gente está com uma senhora de idade muito doente aqui no caminhão. Ela tem que ir logo a um médico. Não podemos perder tempo assim. — Ela parecia lutar contra um ataque de histeria. — O senhor não tem o direito de fazer a gente perder tempo.
Ah, é? Pois tenha paciência, a busca tem que ser dada.
Juro que não temos nada disso! — exclamou a mãe. — Juro!... E a avó está muito doente.
A senhora também não parece que esteja muito bem — disse o funcionário.
A mãe trepou na carroceria e endireitou-se com grande esforço.
Aqui, olhe aqui! — disse ela.
O funcionário lançou um facho de luz de lanterna sobre o rosto rígido da anciã.
Meu Deus! — disse. — A senhora jura então que não levam nem vegetais nem sementes? Ou frutas, milho ou laranjas?
Não, não. Juro!
Bom, então vou indo. Em Barstow tem um médico. Fica daqui a uns dez quilômetros. Podem ir.
Tom subiu na cabine e o caminhão continuou a viagem.
O funcionário virou-se para os colegas.
Não achei que tinha o direito de atrasá-los
Quem sabe foi tapeação?... — disse o outro.
Não, garanto que não era. Queria só que você visse a cara da velha. Aquilo não era fingimento.
Tom aumentou a velocidade, e ao chegarem a Barstow parou, saltou e deu a volta no veículo. A mãe debruçou-se.
Tá tudo bem — disse ela. — Não precisa parar aqui. Eu só disse aquilo pra eles deixarem a gente passar.
É?... E como vai a avó?
Bem. Vai tocando pra frente. Vê se a gente chega logo. — Tom meneou a cabeça e voltou ao seu lugar.
Al — disse ele —, agora vamo encher o tanque e ocê vai guiar um pouco. — Estacionou junto a um posto de gasolina, mandou encher o tanque e o radiador, e também o tanque de óleo. Depois Al sentou-se ao volante e Tom tomou lugar junto à outra janela, deixando o pai no meio dos dois. O caminhão foi rodando, escuridão adentro, e as pequenas colinas das cercanias de Barstow foram ficando para trás.
Tom disse:
Não sei o que é que a mãe tem. Ela vive braba que nem cachorro com mosca na orelha. Não ia demorar tanto tempo assim para eles revistarem nossas coisas. E primeiro ela disse que a avó tava muito mal, agora diss’que tá boa. Não sei o que ela tem, acho que não se sente muito bem. Imagina se ela ficasse louca na viagem!
A mãe tá ficando que nem quando era mocinha — disse o pai. — Era braba que te digo! Não tinha medo de nada. Pensei que depois que tivesse filhos e ficasse mais velha a coisa passasse. Mas qual nada! Quando ela tava com aquele ferro na mão, eu é que não ia tirar ele.
Não sei o que ela tem — disse Tom. — Talvez seja só o cansaço.
Eu não posso pensar nisso. Tenho que pensar no carro — falou Al.
Foi uma boa compra que ocê fez — aduziu Tom. — Esse calhambeque quase não deu trabalho à gente.
A noite toda eles foram atravessando as trevas quentes; às vezes surgiam coelhos do mato à luz dos faróis e procuravam fugir em grandes saltos. A manhã cinzenta começava a nascer, atrás deles, quando à sua frente apareceram as luzes de Mojave. E o alvorecer alastrava-se deixando à mostra grandes montanhas a oeste. Em Mojave encheram o tanque de óleo e puseram água no radiador. Quando galgaram as montanhas, o alvorecer já os cobria de luz clara.
Tom disse:
Graças a Deus, passamos o deserto! Pai, Al, em nome de Deus! Atravessamos o deserto!
Para mim tanto faz; tô é cansado como o diabo — replicou Al.
Cê quer que eu dirija?
Não, pera um pouco.
Aos primeiros raios do sol que surgia, eles iam atravessando Tehachapi, e o sol crescia atrás deles... depois, de repente, viram diante de si o grande vale. Al pisou no freio e parou no meio da estrada.
Meu Deus, olha! — disse. — Os vinhedos, os pomares, o grande vale verdejante, fileiras de árvores, as casinhas brancas!
Grande Deus! — disse o pai.
As cidades ao longe, as aldeias entre os pomares e o sol matinal que dourava o vale. Um carro buzinou atrás deles. Al encostou o caminhão à beira da estrada.
Preciso olhar bem isso.
Os campos de trigo, cor de ouro, as fileiras de salgueiros, os pés de eucalipto, altos e retos.
O pai suspirou.
Eu não imaginava que tivesse uma coisa assim, tão bonita...
Os pessegueiros, os grupos de nogueira e as copas baixas, verde-escuras, das laranjeiras. E telhados vermelhos entre as árvores, e celeiros... celeiros cheios. Al saltou e estirou as pernas.
Mãe, chegamos! — gritou.
Ruthie e Winfield escorregaram de cima do caminhão até o chão e agora ali quedavam, silenciosos e assombrados, embaraçados diante do espetáculo do grande vale. Ao longe flutuava fina cerração, e as terras iam adquirindo contornos suaves ao longe. A roda de um moinho brilhou ao sol, e suas pás em movimento pareciam um pequeno heliógrafo. Ruthie e Winfield olhavam-no, e Ruthie sussurrou:
É a Califórnia.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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