quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O morador distante

Sempre me deu vontade de morar numa dessas antigas ruazinhas pintadas numa tela. Se, porém, me mostrassem o original, ficaria indiferente, creio eu. Dizeres que no mundo da tela não há poluição sonora etc. seria um motivo demasiadamente óbvio. Que há lá tranquilidade, há. Mas tranquilidade eu consigo em certas horas aqui mesmo, em certas casas à prova de crianças. Verdade que é uma tranquilidade intermitente — por isso mesmo ótima. Não é como essa tranquilidade dos campos — contínua, anestesiante. E, depois, vocês nem imaginam como o gado é contagioso! A gente chega a ter medo de ficar mugindo...
Bem, no que estava eu ruminando? A ruazinha aquela! Me lembro especialmente de uma tela de Sisley. Por que Sisley? Porque, na minha provinciana adolescência — época em que a gente devorava a vida através dos livros —, eu me deliciava na Biblioteca Pública do Estado com as revistas de arte à disposição do público: Art et Décoration, Die Kunst, L’Art Vivant, Le Crapouillot — são as que me lembram agora. De modo que, se não cito nenhum pintor nacional, como alguns reclamariam, a culpa não é minha. Aquele recolhimento fervoroso entre os livros — menos os de estudo — foi a época mais viva que eu tive, antes que a vida propriamente dita me pegasse, me rolasse, me não sei o quê. Daí se explica certo europeísmo encontradiço em meus poemas: aqui uma referência à Condessa de Noialles, ali a Gertrude Stein (uma europeia, sim!), mais além à pintora Marie Laurencin. Não houve, pois, esnobismo. Nem me estou desculpando de coisa alguma. Estou apenas dando o depoimento de alguém da minha geração.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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