quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Martin Scorsese e a linguagem cinematográfica dos grandes blockbusters

Após semanas de debate sobre o futuro do cinema e repercussões a torto e a direita da polêmica declaração de Martin Scorsese sobre o Universo Cinematográfico Marvel, o cineasta publicou um artigo de opinião no jornal The New York Times explicando a extensão de sua fala e aprofundando o tema.
O diretor do recente O Irlandês, da Netflix, escreve defendendo a sua afirmação anterior e detalhando que seu ponto de vista refere-se tanto à linguagem cinematográfica como forma de arte e às consequências da massificação de grandes blockbusters para a distribuição de obras autorais e independentes.

Ele escreveu:

Muitas franquias cinematográficas são feitas por pessoas de talento artístico considerável. Você pode ver isso na tela. O fato de os filmes em si não me interessarem é uma questão de gosto e temperamento pessoais. Sei que, se eu fosse mais jovem, talvez eu me empolgasse com estes filmes e talvez até quisesse fazer um. Mas eu cresci quando eu cresci e desenvolvi um senso de que filmes — o que eles eram e o que eles poderiam ser — estava tão longe do universo Marvel quanto a Terra está de Alpha Centauri.
Para mim, para os cineastas que eu amo e respeito, para os meus amigos que começaram a fazer filmes na mesma época em que eu comecei, cinema era sobre revelação — estética, emocional e espiritual. Era sobre os personagens — a complexidade das pessoas e suas naturezas contraditórias e paradoxais, a forma como podem machucar umas às outras e amar umas às outras e de repente se virem cara a cara com si mesmas.
Era sobre confrontar o inesperado nas telas e na vida que ela dramatiza e interpreta, engrandecendo o senso do que é possível na forma da arte.
E essa é a chave para nós: era uma forma de arte. Houve um debate na época, e nós defendemos o cinema como uma arte no mesmo patamar da literatura, da música ou da dança. E nós entendemos que a arte poderia ser encontrada em muitos lugares e formas diferentes — em Capacete de Aço de Sam Fuller ou Quando Duas Mulheres Pecam de Ingmar Bergman, em Dançando nas Nuvens de Stanley Donen e Gene Kelly e em Scorpio Rising de Kenneth Anger, em Viver a Vida de Jean-Luc Godard e Os Assassinos de Don Siegel.
(...)
Sessenta ou 70 anos depois, ainda estamos assistindo àqueles filmes e nos deliciando com eles. Mas é pelo choque e pela emoção que voltamos? Eu acho que não. Os cenários de Intriga Internacional são incríveis, mas eles não seriam nada mais do que uma sucessão de composições dinâmicas e elegantes e cortes sem a emoção dolorosa no centro da história e com o personagem de Cary Grant.
(...)
Alguns dizem que os filmes de Hitchcock eram muito parecidos, e talvez isso seja verdade — o próprio Hitchcock se questionava quanto a isso. Mas essa semelhança nos filmes de franquia de hoje é ainda outra coisa. Muitos dos elementos que definem o cinema como eu conheço estão ali nos filmes da Marvel. O que não está é a revelação, o mistério ou o perigo emocional genuíno. Nada está em risco. Os filmes são feitos para satisfazer uma leva específica de demandas, e são desenhados como variações em um número finito de temas.
Eles são sequências no nome mas refilmagens em espírito, e tudo neles é oficialmente sancionado porque não tem como ser de outra forma. Essa é a natureza das franquias cinematográficas modernas: com pesquisas de mercado, testadas pelo público, vetadas, modificadas, vetadas mais uma vez e novamente modificadas, até que estejam próprias para o consumo.
Outra forma de colocar isso seria na forma como eles são tudo o que os filmes de Paul Thomas Anderson, Claire Denis, Spike Lee, Ari Aster, Kathryn Bigelow ou Wes Anderson não são. Quando eu vejo filmes feitos por qualquer um destes cineastas, eu sei que vou ver algo absolutamente novo e serei tomado de surpresa. Meu senso do que é possível em narrativas com imagens em movimento e com som sempre será expandido.
Então, você se pergunta, qual é o meu problema? Por que não simplesmente deixar filmes de super-heróis e outras franquias em paz? A razão é simples. Em muitos lugares neste país e ao redor do mundo, franquias são agora a escolha primária se você quer exibir algo nas telonas. É um tempo arriscado em exibição, e há menos cinemas independentes do que nunca. A equação se inverteu e o streaming se tornou o principal sistema de entrega. Ainda assim, eu não conheço um único cineasta que não queira fazer filmes para a telona, para serem projetados em frente a públicos no cinema.
(...)
E se você me disser que isso é simplesmente uma questão de oferta e demanda, de dar às pessoas o que elas querem, terei que discordar. É uma questão de ovo-e-galinha. Se as pessoas recebem apenas um único tipo de coisa e é vendido para elas eternamente um único tipo de coisa, é claro que elas vão querer mais de um único tipo de coisa.
Mas você pode argumentar, será que essas pessoas não podem ir para suas casas e assistir a qualquer outra coisa na Netflix, iTunes ou Hulu? Claro — em qualquer lugar que não seja a telona, onde o cineasta pretendia que o seu filme fosse visto.
Nos últimos 20 anos, como sabemos, o negócio cinematográfico mudou em todas as frentes. Mas a mudança mais grave aconteceu da noite para o dia: a gradual mas frequente eliminação do risco. Muitos filmes hoje são produtos perfeitamente manufaturados para o consumo imediato. Muitos deles são bem feitos por times ou indivíduos talentosos. Mesmo assim, falta a eles algo essencial ao cinema: a visão unificada de um artista. Porque, é claro, o artista individual é o fator mais arriscado de todos.
Certamente, não estou querendo dizer que os filmes deveriam ser uma forma de arte subsidiada, ou que um dia já foram. Quando o sistema de estúdios de Hollywood ainda estava vivo e muito bem, a tensão entre artistas e as pessoas que mandavam no negócio era constante e intensa, mas era uma tensão produtiva que nos deu alguns dos melhores filmes já feitos — nas palavras de Bob Dylan, o melhor deles foi “heróico e visionário”.
Hoje, a tensão se foi, e há alguns neste negócio absolutamente indiferentes à questão da arte e com uma atitude a respeito da história do cinema que ao mesmo tempo é desdenhosa e proprietária, uma combinação letal. A situação, infelizmente, é que agora somos dois campos diferentes: há o entretenimento audiovisual mundial, e há o cinema. Eles ainda se sobrepõem de vez em quando, mas isso é incrivelmente raro. E eu temo que a dominação financeira de um esteja sendo usada para marginalizar e diminuir a existência do outro.
Para qualquer um que sonhe em fazer filmes ou quem está começando, a situação neste momento é brutal e inabitável para a arte. E o simples ato de escrever essas palavras me enche de uma terrível tristeza.”
Martin Scorsese, in The New York Times
Acesse a matéria do Adoro Cinema aqui.

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