domingo, 3 de novembro de 2019

Leite derramado - 4

antes de exibir A alguém o que lhe dito, você me faça o favor de submeter o texto a um gramático, para que seus erros de ortografia não me sejam imputados. E não se esqueça que meu nome de família é Assumpção, e não Assunção, como em geral se escreve, como é capaz de constar até aí no prontuário. Assunção, na forma assim mais popular, foi o sobrenome que aquele escravo Balbino adotou, como a pedir licença para entrar na família sem sapatos. Curioso é que seu filho, também Balbino, foi cavalariço do meu pai. E o filho deste, Balbino Assunção Neto, um preto meio roliço, foi meu amigo de infância. Esse me ensinou a soltar pipa, a fazer arapucas de caçar passarinho, me fascinavam seus malabarismos com uma laranja nos pés, quando nem se falava em futebol. Mas depois que entrei no ginásio, minhas idas à fazenda escassearam, ele cresceu sem estudos e perdemos as afinidades. Só o reencontrava nas férias de julho, e então volta e meia lhe pedia um favor à-toa, mais para agradar a ele mesmo, que era de índole prestativa. Às vezes também o chamava para ficar por ali à disposição, porque a quietude da fazenda me aborrecia, naquele tempo a gente era veloz e o tempo se arrastava. Daí a eterna impaciência, e adoro ver seus olhos de rapariga rondando a enfermaria: eu, o relógio, a televisão, o celular, eu, a cama do tetraplégico, o soro, a sonda, o velho do Alzheimer, o celular, a televisão, eu, o relógio de novo, e não deu nem um minuto. Também acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus, para pensar no galã da novela, nas mensagens do celular, na menstruação atrasada. Você me olha assim como eu na fazenda olhava um sapo, horas e horas estático, fito a fito no sapo velho, para poder variar com os pensamentos. Durante um período, para você ter uma ideia, encasquetei que precisava enrabar o Balbino. Eu estava com dezessete anos, talvez dezoito, o certo é que já conhecia mulher, inclusive as francesas. Não tinha, portanto, necessidade daquilo, mas do nada decidi que ia enrabar o Balbino. Então lhe pedia que fosse catar uma manga, mas tinha de ser aquela manga específica, lá no alto, que nem madura estava. Balbino pronto me obedecia, e suas passadas largas de galho em galho começaram de fato a me atiçar. Acontecia de ele alcançar a tal manga, e eu lhe gritar uma contraordem, não é essa, é aquela mais na ponta. Fui tomando gosto por aquilo, não havia dia em que não mandava o Balbino trepar nas mangueiras uma porção de vezes. E eu já desconfiava que ele também se movia ali no alto com malícias, depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os joelhos juntos, para recolher as mangas que eu largava no chão. Estava claro para mim que o Balbino queria me dar a bunda. Só me faltava ousadia para a investida final, e cheguei a ensaiar umas conversas de tradição senhorial, direito de lei -, primícias, ponderações tão acima de seu entendimento, que ele já cederia sem delongas. Mas por esse tempo felizmente aconteceu de eu conhecer Matilde, e eliminei aquela bobagem da cabeça. No entanto garanto que a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor. Nisso não puxei ao meu pai, que só apreciava as louras e as ruivas, de preferência sardentas. Nem à minha mãe, que ao me ver arrastando a asa para Matilde, de saída me perguntou se por acaso a menina não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele quase castanha, era a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai. Eu já a tinha visto de relance umas vezes, na saída da missa das onze, ali mesmo na igreja da Candelária. Na verdade nunca a pude observar direito, porque a menina não parava quieta, falava, rodava e se perdia entre as amigas, balançando os negros cabelos cacheados. Saía da igreja como quem saísse do cinema Pathé, onde na época exibiam fitas em série americanas. Mas agora, no momento em que o órgão dava a introdução para o ofertório, bati sem querer os olhos nela, desviei, voltei a mirá-la e não a pude mais largar. Porque assim suspensa e de cabelos presos, mais intensamente ela era ela em seu balanço guardado, seu tumulto interior, seus gestos e risos por dentro, para sempre, aí. Então, não sei como, em plena igreja me deu grande vontade de conhecer sua quentura. Imaginei que abraçá-la de surpresa, para ela pulsar e se debater contra o meu peito, seria como abafar nas mãos o passarinho que capturei na infância. Estava eu com essas fantasias profanas, quando minha mãe me tomou pelo braço para a comunhão. Hesitei, remanchei um pouco, não me sentia digno do sacramento, mas recusá-lo à vista de todos seria um desacato. Com certo medo do inferno, fui afinal me ajoelhar ao pé do altar e cerrei os olhos para receber a hóstia sagrada. Quando os reabri, Matilde se virava para mim e sorria, sentada ao órgão que não era mais um órgão, era o piano de cauda da minha mãe. Tinha os cabelos molhados sobre as costas nuas, mas acho que agora já entrei no sonho.
Chico Buarque de Holanda, in Leite derramado

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