antes
de exibir A alguém o que lhe dito, você me faça o favor de
submeter o texto a um gramático, para que seus erros de ortografia
não me sejam imputados. E não se esqueça que meu nome de família
é Assumpção, e não Assunção, como em geral se escreve, como é
capaz de constar até aí no prontuário. Assunção, na forma assim
mais popular, foi o sobrenome que aquele escravo Balbino adotou, como
a pedir licença para entrar na família sem sapatos. Curioso é que
seu filho, também Balbino, foi cavalariço do meu pai. E o filho
deste, Balbino Assunção Neto, um preto meio roliço, foi meu amigo
de infância. Esse me ensinou a soltar pipa, a fazer arapucas de
caçar passarinho, me fascinavam seus malabarismos com uma laranja
nos pés, quando nem se falava em futebol. Mas depois que entrei no
ginásio, minhas idas à fazenda escassearam, ele cresceu sem estudos
e perdemos as afinidades. Só o reencontrava nas férias de julho, e
então volta e meia lhe pedia um favor à-toa, mais para agradar a
ele mesmo, que era de índole prestativa. Às vezes também o chamava
para ficar por ali à disposição, porque a quietude da fazenda me
aborrecia, naquele tempo a gente era veloz e o tempo se arrastava.
Daí a eterna impaciência, e adoro ver seus olhos de rapariga
rondando a enfermaria: eu, o relógio, a televisão, o celular, eu, a
cama do tetraplégico, o soro, a sonda, o velho do Alzheimer, o
celular, a televisão, eu, o relógio de novo, e não deu nem um
minuto. Também acho uma delícia quando você esquece os olhos em
cima dos meus, para pensar no galã da novela, nas mensagens do
celular, na menstruação atrasada. Você me olha assim como eu na
fazenda olhava um sapo, horas e horas estático, fito a fito no sapo
velho, para poder variar com os pensamentos. Durante um período,
para você ter uma ideia, encasquetei que precisava enrabar o
Balbino. Eu estava com dezessete anos, talvez dezoito, o certo é que
já conhecia mulher, inclusive as francesas. Não tinha, portanto,
necessidade daquilo, mas do nada decidi que ia enrabar o Balbino.
Então lhe pedia que fosse catar uma manga, mas tinha de ser aquela
manga específica, lá no alto, que nem madura estava. Balbino pronto
me obedecia, e suas passadas largas de galho em galho começaram de
fato a me atiçar. Acontecia de ele alcançar a tal manga, e eu lhe
gritar uma contraordem, não é essa, é aquela mais na ponta. Fui
tomando gosto por aquilo, não havia dia em que não mandava o
Balbino trepar nas mangueiras uma porção de vezes. E eu já
desconfiava que ele também se movia ali no alto com malícias,
depois tinha um jeito meio feminil de se abaixar com os joelhos
juntos, para recolher as mangas que eu largava no chão. Estava claro
para mim que o Balbino queria me dar a bunda. Só me faltava ousadia
para a investida final, e cheguei a ensaiar umas conversas de
tradição senhorial, direito de lei -, primícias, ponderações tão
acima de seu entendimento, que ele já cederia sem delongas. Mas por
esse tempo felizmente aconteceu de eu conhecer Matilde, e eliminei
aquela bobagem da cabeça. No entanto garanto que a convivência com
Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor. Nisso não
puxei ao meu pai, que só apreciava as louras e as ruivas, de
preferência sardentas. Nem à minha mãe, que ao me ver arrastando a
asa para Matilde, de saída me perguntou se por acaso a menina não
tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele quase castanha,
era a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa
do meu pai. Eu já a tinha visto de relance umas vezes, na saída da
missa das onze, ali mesmo na igreja da Candelária. Na verdade nunca
a pude observar direito, porque a menina não parava quieta, falava,
rodava e se perdia entre as amigas, balançando os negros cabelos
cacheados. Saía da igreja como quem saísse do cinema Pathé, onde
na época exibiam fitas em série americanas. Mas agora, no momento
em que o órgão dava a introdução para o ofertório, bati sem
querer os olhos nela, desviei, voltei a mirá-la e não a pude mais
largar. Porque assim suspensa e de cabelos presos, mais intensamente
ela era ela em seu balanço guardado, seu tumulto interior, seus
gestos e risos por dentro, para sempre, aí. Então, não sei como,
em plena igreja me deu grande vontade de conhecer sua quentura.
Imaginei que abraçá-la de surpresa, para ela pulsar e se debater
contra o meu peito, seria como abafar nas mãos o passarinho que
capturei na infância. Estava eu com essas fantasias profanas, quando
minha mãe me tomou pelo braço para a comunhão. Hesitei, remanchei
um pouco, não me sentia digno do sacramento, mas recusá-lo à vista
de todos seria um desacato. Com certo medo do inferno, fui afinal me
ajoelhar ao pé do altar e cerrei os olhos para receber a hóstia
sagrada. Quando os reabri, Matilde se virava para mim e sorria,
sentada ao órgão que não era mais um órgão, era o piano de cauda
da minha mãe. Tinha os cabelos molhados sobre as costas nuas, mas
acho que agora já entrei no sonho.
Chico
Buarque de Holanda, in Leite derramado
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