domingo, 3 de novembro de 2019

Estadistas sem opinião

Sei que estou fazendo apenas um trabalho para liberais e moralistas políticos, raça suspeita e condenada à desaparição, longe, bem longe da esfera onde o governo descreve esplendidamente a sua órbita vitoriosa. Posso, pois, demorar-me em remirar com amor a imagem das cousas extintas, uma vez que escrevo talvez mais para os que vivem no passado que para os que sonham no futuro, e certamente nada para os que se comprazem no presente.
Coube-nos por fadário viver na era dos estadistas que não têm opiniões. Creio que esta é mesmo a frase sacramental. E essa casta de homens, obrigados a receber cada manhã o santo e a senha da convicção, que hão de advogar nas 12 horas seguintes, passam por exigências de atividade sobre-humanas. Não é para eles que eu traço estes esboços retrospectivos. Vejo a intolerância da força mostrando as unhas nas assembleias deliberantes, a canina facúndia, de que falava Quintiliano, ululando na voz dos amigos do poder; e não me atrevo a perturbar os ideais da época. O homem que atravessa uma quadra de epidemia convulsionária, conservando as qualidades de observador, já não deve pouco ao céu, e por felicíssimo há de dar-se, se não sente converter-se-lhe n’alma a curiosidade em desprezo, em fel a piedade. É preciso tornar o gentio político como ele é, e deixá-lo acabar, de si mesmo, pelos vícios, que paulatinamente vão fazendo recuar ante a civilização o elemento selvagem. Até então deixemo-los retoiçar nas festas da aldeia, agachar-se aos pés dos ídolos da tribo; e, se se julgam livres, porque são bárbaros, se se reputam heroicos, porque são maus, se se gabam de disciplinados, porque são inconscientes, não há mudá-los. Nesses estados embrionários do entendimento, a que o fanatismo chega a degradar os partidistas, a inteligência do degenerado não distingue, às vezes, a lua, que se espelha no pântano, da rã que coaxa na esteira luminosa do astro. Quisquis amat ranam, ranam putat esse Dianam.
Se Voltaire dizia que “basta um tolo para desonrar uma nação”, é naturalmente porque Voltaire acreditava existir alguma relação natural entre o valor das nações e o siso comum dos homens que as representam. Mas Voltaire escrevia para outro hemisfério, e não conhecia a América Meridional. Os progressos da ciência política neste continente inverteram as bases lógicas dessa opinião; e se o filósofo de Ferney não recebe em plena face o epíteto vibrado por ele contra as demências de seu tempo, é que o vingador dos crimes da degradação da justiça naquela época, o homem que se revoltava contra os assassínios judiciários de Calas e La Barre, como nós contra as tentativas de homicídio administrativo dos nossos conterrâneos, perseguidos pela crueldade política, teve o espírito de mudar-se para vida melhor, antes de lhe caber uma vez a palavra, como deputado da oposição, frente a frente com uma maioria republicana de bíceps reforçados.
Eu não me atrevo a dizer, algumas vezes, a verdade, senão porque percebo que estou fora do meu tempo. Os homens práticos, que passam por mim, distraídos nas grandes cogitações, administradores, estadistas, magistrados, hão de fazer-me a justiça de não levar à má parte, isto é, de não tomar estritamente a sério as divagações de um retrógrado, uma espécie de alma do outro mundo, que pretende impor à República a obrigação de ser menos antirrepublicana do que a monarquia. A última das Repúblicas devia apresentar qualquer novidade conspícua, no confronto com as suas irmãs prenascidas. O governo atual salvou, pois, o nosso amor-próprio, depondo solenemente os compromissos liberais, que embaraçam, noutros países, os ademanes do governo democrático. Uma democracia emancipada se moque bien de tout ça. Em política, como em poesia, o nome de decadentes deixou de ser uma depreciação: é o título de uma escola, é a fórmula de um progresso. Deixem-me, pois, terminar o meu quadro histórico neste canto de esquecimento, que eu amurei com três ou quatro ideias velhas para horizonte de minha velhice, que se aproxima. Se a tela for importuna aos olhos dos felizes, creiam que não vale a pena usar dos direitos incontestáveis do governo, confiscando-lhe a propriedade ao autor, ou mandando-o aprender a amar a República, em paragens onde as sentenças de morte não encontrem testemunhas. Deixem a rabugice do antiquário ao pó do tempo. E verão como este justifica os governos de aço.
Rui Barbosa, in Antologia

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