Sei
que estou fazendo apenas um trabalho para liberais e moralistas
políticos, raça suspeita e condenada à desaparição, longe, bem
longe da esfera onde o governo descreve esplendidamente a sua órbita
vitoriosa. Posso, pois, demorar-me em remirar com amor a imagem das
cousas extintas, uma vez que escrevo talvez mais para os que vivem no
passado que para os que sonham no futuro, e certamente nada para os
que se comprazem no presente.
Coube-nos
por fadário viver na era dos estadistas que não têm opiniões.
Creio que esta é mesmo a frase sacramental. E essa casta de homens,
obrigados a receber cada manhã o santo e a senha da convicção, que
hão de advogar nas 12 horas seguintes, passam por exigências de
atividade sobre-humanas. Não é para eles que eu traço estes
esboços retrospectivos. Vejo a intolerância da força mostrando as
unhas nas assembleias deliberantes, a canina facúndia, de que falava
Quintiliano, ululando na voz dos amigos do poder; e não me atrevo a
perturbar os ideais da época. O homem que atravessa uma quadra de
epidemia convulsionária, conservando as qualidades de observador, já
não deve pouco ao céu, e por felicíssimo há de dar-se, se não
sente converter-se-lhe n’alma a curiosidade em desprezo, em fel a
piedade. É preciso tornar o gentio político como ele é, e deixá-lo
acabar, de si mesmo, pelos vícios, que paulatinamente vão fazendo
recuar ante a civilização o elemento selvagem. Até então
deixemo-los retoiçar nas festas da aldeia, agachar-se aos pés dos
ídolos da tribo; e, se se julgam livres, porque são bárbaros, se
se reputam heroicos, porque são maus, se se gabam de disciplinados,
porque são inconscientes, não há mudá-los. Nesses estados
embrionários do entendimento, a que o fanatismo chega a degradar os
partidistas, a inteligência do degenerado não distingue, às vezes,
a lua, que se espelha no pântano, da rã que coaxa na esteira
luminosa do astro. Quisquis amat ranam, ranam putat esse Dianam.
Se
Voltaire dizia que “basta um tolo para desonrar uma nação”, é
naturalmente porque Voltaire acreditava existir alguma relação
natural entre o valor das nações e o siso comum dos homens que as
representam. Mas Voltaire escrevia para outro hemisfério, e não
conhecia a América Meridional. Os progressos da ciência política
neste continente inverteram as bases lógicas dessa opinião; e se o
filósofo de Ferney não recebe em plena face o epíteto vibrado por
ele contra as demências de seu tempo, é que o vingador dos crimes
da degradação da justiça naquela época, o homem que se revoltava
contra os assassínios judiciários de Calas e La Barre, como nós
contra as tentativas de homicídio administrativo dos nossos
conterrâneos, perseguidos pela crueldade política, teve o espírito
de mudar-se para vida melhor, antes de lhe caber uma vez a palavra,
como deputado da oposição, frente a frente com uma maioria
republicana de bíceps reforçados.
Eu
não me atrevo a dizer, algumas vezes, a verdade, senão porque
percebo que estou fora do meu tempo. Os homens práticos, que passam
por mim, distraídos nas grandes cogitações, administradores,
estadistas, magistrados, hão de fazer-me a justiça de não levar à
má parte, isto é, de não tomar estritamente a sério as divagações
de um retrógrado, uma espécie de alma do outro mundo, que pretende
impor à República a obrigação de ser menos antirrepublicana do
que a monarquia. A última das Repúblicas devia apresentar qualquer
novidade conspícua, no confronto com as suas irmãs prenascidas. O
governo atual salvou, pois, o nosso amor-próprio, depondo
solenemente os compromissos liberais, que embaraçam, noutros países,
os ademanes do governo democrático. Uma democracia emancipada se
moque bien de tout ça. Em política, como em poesia, o nome
de decadentes deixou de ser uma depreciação: é o título de uma
escola, é a fórmula de um progresso. Deixem-me, pois, terminar o
meu quadro histórico neste canto de esquecimento, que eu amurei com
três ou quatro ideias velhas para horizonte de minha velhice, que se
aproxima. Se a tela for importuna aos olhos dos felizes, creiam que
não vale a pena usar dos direitos incontestáveis do governo,
confiscando-lhe a propriedade ao autor, ou mandando-o aprender a amar
a República, em paragens onde as sentenças de morte não encontrem
testemunhas. Deixem a rabugice do antiquário ao pó do tempo. E
verão como este justifica os governos de aço.
Rui
Barbosa, in Antologia
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