segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Conto um conto de Babalu

Uma bruma fresca, o anúncio da madrugada, vai-se desprendendo da terra e vaga, cinzenta, pelo ar. Ela passou toda a noite com os olhos abertos. Finalmente saiu do único lençol, tão suavemente como foi possível; a cama uivou, como de costume, com toda essa grita de velha louca das molas arrebentadas, mas ele não acordou. É estranho que ele continue dormindo. Realmente muito estranho que consiga. Ela olhou para ele, tomando distância; fez um longo esforço para senti-lo longe ou alheio ou não senti-lo. O ar estava um pouco frio e ela envolveu-se na camisa dele, que encontrou tateando, caída junto a uma das absurdas patas de bronze, patas como garras, da cama. Neste casarão abandonado pelos donos, as tábuas apodrecidas são armadilhas mortais no chão ou lançam golpes súbitos no rosto dos incautos; os ratos leram e esvaziaram toda uma biblioteca de livros amarelecidos; os generais e coronéis, pintados a óleo com monóculos, bigodões e medalhas, parecem ainda acreditar em sua própria imortalidade, impávidos apesar das manchas de bolor e umidade que os deixaram aleijados ou manetas ou leprosos e já não resta nenhuma das molduras de bronze ao redor dos quadros antigos.
Ela nunca mais pisará, e sabe disso, este lugar onde foi feliz. Este é o único tipo de perigo que realmente teme: estará proibido olhar, proibido retroceder até este tempo que agora está terminando e até esta armação de uma fazenda em ruínas. Começou a caminhar, descalça, pelo terraço, até aborrecer-se dos passos de preso, cinco, seis, ida e volta, e ficou sentada sobre a moldura da janela aberta. No dormitório há uma poltrona de monarca, com a heráldica ainda visível no encosto de caioba, mas não tem assento; sobram uma ou duas molas soltas, como de uma caixa de surpresas sem palhaço.
Ela apoia a cabeça, suavemente, contra o marco de madeira da janela. Olha em direção ao leste, lá em cima, em direção aos arvoredos que se erguem no horizonte de montanhas. O bosque se confunde ainda com o negror desafiante da noite; logo as primeiras estrias do sol partirão as sombras em pedaços e a natureza recobrará suas formas e seus limites. Ah, como gostaria de deixar-se ganhar pela pulsação da terra, lenta, lenta. Esfrega os olhos, acende o cigarro que tem há tempos apertado entre os dentes: ah, se pudesse, o pulsar da terra que dorme, sem ansiedades nem ruídos, se pudesse flutuar, fazer sua a profunda respiração da terra.
Ele continua dormindo. É estranho que durma tanto. Não se consegue nunca dormir mais do que algumas horas, e até isso é difícil, por culpa do maldito zumbido que não se apaga nunca no centro de sua cabeça. A camisa dele, aberta sobre os peitos dela, parece um camisolão de fantasma; chega até seus joelhos, ou quase. O vento sopra, em rajadas leves, e então a camisa vira vela de barquinho, e a pele dela se estremece pelo roçar do tecido: a camisa branca dele, que tem o cheiro dele e a forma do corpo dele. Ela pensa que pedirá que deixe a camisa. Não, um presente não, não quero que me dê como presente; quero tê-la, mas que continue sendo sua. Ele não a vê, não vê nada, nem ao menos sabe que pela primeira vez desde aquela vez está conseguindo dormir longamente: dormir, que festa, parece mentira.
Ele abre, finalmente, os olhos, para fechá-los em seguida. Pisca, não quer acreditar: desapareceu essa fúria de abelhas no crânio. A luz recorta o corpo dela contra o vão da janela e acende uma aura dourada que faz com que tudo fique mais baixo, ao longo do perfil de seu corpo. Está toda luminosa, do queixo erguido e do longo pescoço em arco até os joelhos onde descansa a mão com o cigarro abandonado entre os dedos. Os jasmins erguem-se ao lado do terraço. A camisa esvoaça; os jasmins balançam levemente. Ele escuta o silêncio, sente seu gosto. Ela vira a cabeça, olha-o sem sorrir. Uma suave rajada de vento empurra seu cabelo negro. É como se estivesse vendo-a a galope, a primeira vez que a viu, a galope lento, com os cabelos negros também galopando e o rosto que virou para olhá-lo, sem susto, balançando-se ao ritmo do cavalo que ele não via, por cima das pontas de lança ainda verdes do milho. Ele sim, sorri. Estivera preso pelo som; recebe o silêncio como a liberdade. Devora com os olhos esta imagem dela, brilhante de luz dourada, para imprimir este resplendor por cima de todas as outras imagens da memória: esta janela, esta boca do dia. Respira fundo, deixa-se invadir pelo intenso aroma dos jasmins. Abre a boca mas ela se adianta e, sem olhar para ele, diz:
Já sei que você vai embora. Sei que você vai hoje, agora.
Ele se assusta. Tinha esquecido. É incrível. A voz baixa, quase rouca, da mulher soa a notícia, não a recriminação. Mas tinha realmente se esquecido? Esta mulher, esta menina: deslizava nela como por uma veia. Morde os lábios:
Sabe? Não sinto nem um pouco a tortura do zumbido. Ia dizer isso para você. Não sinto nada. Entende o que isso quer dizer? Agora posso pensar, posso falar, posso... é como um presente!
Estava tão acostumado. Sempre despertava acossado por esse rumor intenso, insuportável. Nos primeiros tempos apertava os ouvidos com as mãos, gritava. Tinha gritado no primeiro dia, quando despertou naquela rede, com o corpo desfeito e uma dor como se todos os nervos estivessem à mostra. Depois soube que estava debaixo de uma cabana de folhas de palmeira, longe de tudo, a salvo de tudo, e que aqueles rostos nebulosos pertenciam à boa gente que o tinha recolhido, meio morto, no aterro. Foram eles que o curaram. Durante mais de dois meses, deram-lhe de beber, a água em gotas, ajudaram-no a mover-se aos poucos, cobriram sua pele, de acordo com a zona e com a ferida, com algas, unguentos e óleos vegetais. Desapareceram as chagas, os ossos se recompuseram, e os dentes, que dançavam na boca, recobraram sua firmeza. Mas ficou o mancar ao caminhar, lembranças das porradas que os soldados lhe haviam dado às toneladas, e ficou o zumbido. O zumbido o acompanhava dia e noite, às vezes muito intenso, enlouquecedor, às vezes distante e quase imperceptível, como se necessitasse dele para não esquecer as sessões de dias e noites de interrogatórios, os fios amarrados às orelhas e aos testículos ou metidos até o fundo dos ouvidos e do nariz e do rabo, as mordidas da eletricidade arrancando-lhe as vísceras aos pedaços a cada golpe na alavanca da bateria manejada por um oficial de bigodes vermelhos.
Com as mãos na nuca, ele diz:
Talvez não seja mais que uma trégua, não sei. Mas me sinto tão bem. Tão diferente.
E diz:
Sonhei com um pássaro gigante, que tinha uma cidade dentro. O pássaro subia e subia...
Ela move a cabeça, os olhos tristes, a boca contente. Tantas coisas que queria dizer.
Você vai ficar doente, aí na janela.
Dizer-lhe: desde que conheço você, todos dizem que estou mudada. Dizer-lhe: quero ter você como tenho minhas mãos e minhas pernas. Dizer-lhe: já sei que para você também será difícil. Mas eu não sei o que quero nem para que nasci, para que fui feita, porque....
E simplesmente comprova, sem o menor dramatismo:
Eu já sabia que você ia embora.
Ele franze o cenho, não diz nada. Olha para ela. Queria lambê-la, como um sorvete. Nunca havia sentido, com ninguém, o que sente com ela. Seria possível, agora, voltar a ser nada mais que a metade de alguma coisa? Será necessário arrepender-se de ter sido feliz? Ela, que nem ao menos conhece seu verdadeiro nome.
Vou trazer café.
Sobrou?
Um pouco.
Bom.
Escuta o breve ruído de cozinha, e em seguida ela regressa, precedida pelo aroma do café e os rangidos do chão, com duas xícaras fumegantes nas mãos. Sentam-se frente a frente, as pernas cruzadas, em cima da cama. Ela, que talvez pense que seu crânio vibra porque vibra e pronto. Ela, que nem sabe qual foi o lugar onde ele nasceu. Ela, que não faz perguntas. Que aceita o que ele disser: “Venho da lua”. Que faz cara de quem acredita, quando ele conta: “Da lua, como aqueles índios de Zulia. Lá de cima eu via a terra, os vales verdes, as árvores cheias de frutas, uma mulher igual a você. E ficava tentado e queria vir. Então me despedi de minha gente e me pendurei por um cipó comprido, e quando eu estava quase chegando na terra o cipó arrebentou. É por isso que não posso voltar, e é por isso que fiquei assim, manco, com esta perna sempre atrasada, sempre atrás: por causa do tombo”. Ela, que diz: “Mago”.
Conta um conto para mim, Mago.
Agora o dia avança como um trem desesperado. É pouco o tempo que sobra. Semana passada recebeu a notícia. Soube, além disso, dos companheiros mortos. Soube, embora já o soubesse antes, que a dor se multiplica e a alegria não. Mário. Também chamado Jacaré. Tratei de não lembrar-me dele nunca, porque não queria trazer-lhe má sorte. E para que serviu isso? De que valeu?
Olha para o relógio e ela vê quando ele olha o relógio: olha para ele com olhos opacos, apertando os dentes. Mudo, com a xícara de café vazia entre os dedos, ele escuta os minutos caminhando, sente o passar implacável da manhã rumo ao meio-dia.
Não se anima a tocá-la, nem a dizer-lhe nada. Os corpos nus nem ao menos se roçam. A cada pequeno movimento, a cama protesta, range, geme. De qualquer maneira, se ela conhecesse a verdadeira história ou a loucura dos protestos, as coisas mudariam? Como? Já não há tempo para nada. Poderia dizer-lhe: “Não é uma vingança pessoal, entende? Esta raiva coincide com a necessidade de vingança de milhões de homens, embora essa vingança não tenha ainda despertado. Entende?” Poderia explicar-lhe que os companheiros caídos aparecem na sua frente o tempo todo. Poderia dizer-lhe que é preciso nadar para não se afogar, e que não existe outra maneira de fazê-lo nem de explicá-lo. Volto a lutar contra a corrente, poderia dizer isso, embora não veja ainda a costa. Embora nunca, nunca veja a costa. Há anos estou nisso, e devo a isso todos os anos que tenho pela frente. Ou dizer-lhe qual foi meu nome, com o qual eu nasci, dar-lhe um sinal de identidade anterior a tantos passaportes falsos e a tantas fronteiras atravessadas? Para quê? Você mesma contou-me que entre os índios do Alto Orinoco é proibido mencionar os mortos: eles sim, são sábios, você disse. Não vale a pena. Nem pedir a você que me espere, embora morra de vontade de pedir, voltarei para buscar você, não deixe de me esperar, nunca, logo, quando: voltarei e... chegarão outros homens, ela os amará: esta certeza passa por sua cabeça como uma sombra de asa de pássaro gigante, o mesmo com o qual havia sonhado. Passa por sua cabeça e dói. Calhorda – se acusa. Sente-se inútil. Tudo se faz tão difícil. Ir embora, é um dever ou um furto? Pensa: será duro partir e duro viver sem você: matar você na memória, para que não doa. Poderei? E ela, como se tivesse escutado, pensa que sente ódio dele porque ele poderá.
Ele percorre com os lábios o fio de umidade que atravessa a face dela. Sequestra seu dedo mindinho, morde, lambe e propõe: “Troco o dedo por uma história que me contaram uma vez, em uma ilha”.
Como nas mil e uma noites, pensa. Trocar uma história por um novo dia de vida. Um novo dia de vida sem aqueles ruídos insuportáveis na cabeça. Um milagre. Quer dizer que Chaplin tinha razão, quando dizia que o silêncio é o ouro dos pobres. Estou salvo? Se durasse...
Termina bem?
Você vai ver.
Se não terminar bem, não conte.
Você conhece Babalu? E Olofi? Olofi é o deus mais importante de todos. Fez o mundo com as mãos. Fez também Babalu, Babalu-ayé, o negro lindo e forte de quem todas as mulheres gostam. Deus lhe disse: “Você pode fazer o amor quando quiser, Babalu”. E Babalu ficou muito contente. Dava pulos de alegria. Mas também lhe disse: “Qualquer dia, menos nas sextas-feiras. Nas sextas-feiras, nada”. Babalu desobedeceu-o depressa. E então Deus ficou furioso. Para castigá-lo, condenou-o à lepra. Isolaram Babalu e Deus lhe disse: “Você merece”. E o pobre Babalu se queixava e Deus não o escutava, e o corpo de Babalú foi caindo, pedaço a pedaço.
Não gosto dessa história. Não continue.
Por quê?
Sou uma boba.
Não, não. Você já vai ver. Porque então chegou Oxum ao reino de Olofi. Oxum, você conhece? Não? É a deusa da sensualidade e das águas doces. É uma mulata pequeninha e tem os cabelos negros, ondulados e compridos, como você. Usa um vestido amarelo, como o seu, e gosta de comer fruta, como você. Também gosta de tocar tambor e tomar cerveja e rum e comer batata-doce.
Proibido, como hoje.
Quê?
Hoje é sexta-feira. Não tinha percebido?
Ele ri, e ela também ri. Agora se sentem melhor.
Então, Oxum chegou ao reino de Olofi para salvar Babalu da lepra. Ela dançou a noite inteira em volta da casa de Deus, e enquanto dançava ia regando em volta da casa com os sumos de seu corpo. Quando Deus saiu, bem cedinho, provou aquele mel e se deliciou. São tão saborosos os sumos de Oxum! Deus lambeu o chão até que não ficou nenhuma gota. E quis mais, mais. Quem trouxe esse mel tão delicioso? “Esse mel é meu”, disse Oxum. E disse que, se quisesse mais, teria que perdoar Babalu. Deus se negou. De jeito nenhum, disse. Ele foi castigado porque me desobedeceu. E Oxum disse: “Babalu foi castigado porque gostava muito deste mel de mulher. E agora você, Deus, você também quer desse mel. Você também quer continuar comendo esse mel”. Então Deus compreendeu tudo. Creio que foi a única vez que compreendeu tudo. E livrou Babalu de sua pena. Devolveu-lhe o corpo e a saúde. Mas impôs, claro, uma condição. Babalu curou-se da lepra mas ficou obrigado a levar todos os dias a carreta dos mortos para o cemitério. Quem for ao cemitério de manhã vai vê-lo com a carreta.
Oxum deve ter muitos poderes – diz ela.
Todos os poderes. Não existe nenhuma mulher que...
Ela é sua amiga?
Muito mais que isso. Sabe de uma coisa? Quando o deus Olofi criou as outras divindades, deu a cada uma um lápis com uma borracha na ponta, para escrever de um lado e apagar do outro. O lápis que ele deu a Oxum estava incompleto. O que ela escreve não se pode apagar. Mesmo que ela queira, não pode. O que ela faz não é possível esquecer. Nunca se pode esquecer. O que ela faz, faz para sempre.
Escutam as tosses do motor de um velho automóvel, que pára junto ao portão da casa.
E ela diz:
Agora, você vai embora.
E ele diz:
Agora, eu vou embora.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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