Uma
bruma fresca, o anúncio da madrugada, vai-se desprendendo da terra e
vaga, cinzenta, pelo ar. Ela passou toda a noite com os olhos
abertos. Finalmente saiu do único lençol, tão suavemente como foi
possível; a cama uivou, como de costume, com toda essa grita de
velha louca das molas arrebentadas, mas ele não acordou. É estranho
que ele continue dormindo. Realmente muito estranho que consiga. Ela
olhou para ele, tomando distância; fez um longo esforço para
senti-lo longe ou alheio ou não senti-lo. O ar estava um pouco frio
e ela envolveu-se na camisa dele, que encontrou tateando, caída
junto a uma das absurdas patas de bronze, patas como garras, da cama.
Neste casarão abandonado pelos donos, as tábuas apodrecidas são
armadilhas mortais no chão ou lançam golpes súbitos no rosto dos
incautos; os ratos leram e esvaziaram toda uma biblioteca de livros
amarelecidos; os generais e coronéis, pintados a óleo com
monóculos, bigodões e medalhas, parecem ainda acreditar em sua
própria imortalidade, impávidos apesar das manchas de bolor e
umidade que os deixaram aleijados ou manetas ou leprosos e já não
resta nenhuma das molduras de bronze ao redor dos quadros antigos.
Ela
nunca mais pisará, e sabe disso, este lugar onde foi feliz. Este é
o único tipo de perigo que realmente teme: estará proibido olhar,
proibido retroceder até este tempo que agora está terminando e até
esta armação de uma fazenda em ruínas. Começou a caminhar,
descalça, pelo terraço, até aborrecer-se dos passos de preso,
cinco, seis, ida e volta, e ficou sentada sobre a moldura da janela
aberta. No dormitório há uma poltrona de monarca, com a heráldica
ainda visível no encosto de caioba, mas não tem assento; sobram uma
ou duas molas soltas, como de uma caixa de surpresas sem palhaço.
Ela
apoia
a cabeça, suavemente, contra o marco de madeira da janela. Olha em
direção ao leste, lá em cima, em direção aos arvoredos que se
erguem no horizonte de montanhas. O bosque se confunde ainda com o
negror desafiante da noite; logo as primeiras estrias do sol partirão
as sombras em pedaços e a natureza recobrará suas formas e seus
limites. Ah, como gostaria de deixar-se ganhar pela pulsação da
terra, lenta, lenta. Esfrega os olhos, acende o cigarro que tem há
tempos apertado entre os dentes: ah, se pudesse, o pulsar da terra
que dorme, sem ansiedades nem ruídos, se pudesse flutuar, fazer sua
a profunda respiração da terra.
Ele
continua dormindo. É estranho que durma tanto. Não se consegue
nunca dormir mais do que algumas horas, e até isso é difícil, por
culpa do maldito zumbido que não se apaga nunca no centro de sua
cabeça. A camisa dele, aberta sobre os peitos dela, parece um
camisolão de fantasma; chega até seus joelhos, ou quase. O vento
sopra, em rajadas leves, e então a camisa vira vela de barquinho, e
a pele dela se estremece pelo roçar do tecido: a camisa branca dele,
que tem o cheiro dele e a forma do corpo dele. Ela pensa que pedirá
que deixe a camisa. Não, um presente não, não quero que me dê
como presente; quero tê-la, mas que continue sendo sua. Ele não a
vê, não vê nada, nem ao menos sabe que pela primeira vez desde
aquela vez está conseguindo dormir longamente: dormir, que festa,
parece mentira.
Ele
abre, finalmente, os olhos, para fechá-los em seguida. Pisca, não
quer acreditar: desapareceu essa fúria de abelhas no crânio. A luz
recorta o corpo dela contra o vão da janela e acende uma aura
dourada que faz com que tudo fique mais baixo, ao longo do perfil de
seu corpo. Está toda luminosa, do queixo erguido e do longo pescoço
em arco até os joelhos onde descansa a mão com o cigarro abandonado
entre os dedos. Os jasmins erguem-se ao lado do terraço. A camisa
esvoaça; os jasmins balançam levemente. Ele escuta o silêncio,
sente seu gosto. Ela vira a cabeça, olha-o sem sorrir. Uma suave
rajada de vento empurra seu cabelo negro. É como se estivesse
vendo-a a galope, a primeira vez que a viu, a galope lento, com os
cabelos negros também galopando e o rosto que virou para olhá-lo,
sem susto, balançando-se ao ritmo do cavalo que ele não via, por
cima das pontas de lança ainda verdes do milho. Ele sim, sorri.
Estivera preso pelo som; recebe o silêncio como a liberdade. Devora
com os olhos esta imagem dela, brilhante de luz dourada, para
imprimir este resplendor por cima de todas as outras imagens da
memória: esta janela, esta boca do dia. Respira fundo, deixa-se
invadir pelo intenso aroma dos jasmins. Abre a boca mas ela se
adianta e, sem olhar para ele, diz:
– Já
sei que você vai embora. Sei que você vai hoje, agora.
Ele
se assusta. Tinha esquecido. É incrível. A voz baixa, quase rouca,
da mulher soa a notícia, não a recriminação. Mas tinha realmente
se esquecido? Esta mulher, esta menina: deslizava nela como por uma
veia. Morde os lábios:
– Sabe?
Não sinto nem um pouco a tortura do zumbido. Ia dizer isso para
você. Não sinto nada. Entende o que isso quer dizer? Agora posso
pensar, posso falar, posso... é como um presente!
Estava
tão acostumado. Sempre despertava acossado por esse rumor intenso,
insuportável. Nos primeiros tempos apertava os ouvidos com as mãos,
gritava. Tinha gritado no primeiro dia, quando despertou naquela
rede, com o corpo desfeito e uma dor como se todos os nervos
estivessem à mostra. Depois soube que estava debaixo de uma cabana
de folhas de palmeira, longe de tudo, a salvo de tudo, e que aqueles
rostos nebulosos pertenciam à boa gente que o tinha recolhido, meio
morto, no aterro. Foram eles que o curaram. Durante mais de dois
meses, deram-lhe de beber, a água em gotas, ajudaram-no a mover-se
aos poucos, cobriram sua pele, de acordo com a zona e com a ferida,
com algas, unguentos
e óleos vegetais. Desapareceram as chagas, os ossos se recompuseram,
e os dentes, que dançavam na boca, recobraram sua firmeza. Mas ficou
o mancar ao caminhar, lembranças das porradas que os soldados lhe
haviam dado às toneladas, e ficou o zumbido. O zumbido o acompanhava
dia e noite, às vezes muito intenso, enlouquecedor, às vezes
distante e quase imperceptível, como se necessitasse dele para não
esquecer as sessões de dias e noites de interrogatórios, os fios
amarrados às orelhas e aos testículos ou metidos até o fundo dos
ouvidos e do nariz e do rabo, as mordidas da eletricidade
arrancando-lhe as vísceras aos pedaços a cada golpe na alavanca da
bateria manejada por um oficial de bigodes vermelhos.
Com
as mãos na nuca, ele diz:
– Talvez
não seja mais que uma trégua, não sei. Mas me sinto tão bem. Tão
diferente.
E
diz:
– Sonhei
com um pássaro gigante, que tinha uma cidade dentro. O pássaro
subia e subia...
Ela
move a cabeça, os olhos tristes, a boca contente. Tantas coisas que
queria dizer.
– Você
vai ficar doente, aí na janela.
Dizer-lhe:
desde que conheço você, todos dizem que estou mudada. Dizer-lhe:
quero ter você como tenho minhas mãos e minhas pernas. Dizer-lhe:
já sei que para você também será difícil. Mas eu não sei o que
quero nem para que nasci, para que fui feita, porque....
E
simplesmente comprova, sem o menor dramatismo:
– Eu
já sabia que você ia embora.
Ele
franze o cenho, não diz nada. Olha para ela. Queria lambê-la, como
um sorvete. Nunca havia sentido, com ninguém, o que sente com ela.
Seria possível, agora, voltar a ser nada mais que a metade de alguma
coisa? Será necessário arrepender-se de ter sido feliz? Ela, que
nem ao menos conhece seu verdadeiro nome.
– Vou
trazer café.
– Sobrou?
– Um
pouco.
– Bom.
Escuta
o breve ruído de cozinha, e em seguida ela regressa, precedida pelo
aroma do café e os rangidos do chão, com duas xícaras fumegantes
nas mãos. Sentam-se frente a frente, as pernas cruzadas, em cima da
cama. Ela, que talvez pense que seu crânio vibra porque vibra e
pronto. Ela, que nem sabe qual foi o lugar onde ele nasceu. Ela, que
não faz perguntas. Que aceita o que ele disser: “Venho da lua”.
Que faz cara de quem acredita, quando ele conta: “Da lua, como
aqueles índios de Zulia. Lá de cima eu via a terra, os vales
verdes, as árvores cheias de frutas, uma mulher igual a você. E
ficava tentado e queria vir. Então me despedi de minha gente e me
pendurei por um cipó comprido, e quando eu estava quase chegando na
terra o cipó arrebentou. É por isso que não posso voltar, e é por
isso que fiquei assim, manco, com esta perna sempre atrasada, sempre
atrás: por causa do tombo”. Ela, que diz: “Mago”.
– Conta
um conto para mim, Mago.
Agora
o dia avança como um trem desesperado. É pouco o tempo que sobra.
Semana passada recebeu a notícia. Soube, além disso, dos
companheiros mortos. Soube, embora já o soubesse antes, que a dor se
multiplica e a alegria não. Mário. Também chamado Jacaré. Tratei
de não lembrar-me dele nunca, porque não queria trazer-lhe má
sorte. E para que serviu isso? De que valeu?
Olha
para o relógio e ela vê quando ele olha o relógio: olha para ele
com olhos opacos, apertando os dentes. Mudo, com a xícara de café
vazia entre os dedos, ele escuta os minutos caminhando, sente o
passar implacável da manhã rumo ao meio-dia.
Não
se anima a tocá-la, nem a dizer-lhe nada. Os corpos nus nem ao menos
se roçam. A cada pequeno movimento, a cama protesta, range, geme. De
qualquer maneira, se ela conhecesse a verdadeira história ou a
loucura dos protestos, as coisas mudariam? Como? Já não há tempo
para nada. Poderia dizer-lhe: “Não é uma vingança pessoal,
entende? Esta raiva coincide com a necessidade de vingança de
milhões de homens, embora essa vingança não tenha ainda
despertado. Entende?” Poderia explicar-lhe que os companheiros
caídos aparecem na sua frente o tempo todo. Poderia dizer-lhe que é
preciso nadar para não se afogar, e que não existe outra maneira de
fazê-lo nem de explicá-lo. Volto a lutar contra a corrente, poderia
dizer isso, embora não veja ainda a costa. Embora nunca, nunca veja
a costa. Há anos estou nisso, e devo a isso todos os anos que tenho
pela frente. Ou dizer-lhe qual foi meu nome, com o qual eu nasci,
dar-lhe um sinal de identidade anterior a tantos passaportes falsos e
a tantas fronteiras atravessadas? Para quê? Você mesma contou-me
que entre os índios do Alto Orinoco é proibido mencionar os mortos:
eles sim, são sábios, você disse. Não vale a pena. Nem pedir a
você que me espere, embora morra de vontade de pedir, voltarei para
buscar você, não deixe de me esperar, nunca, logo, quando: voltarei
e... chegarão outros homens, ela os amará: esta certeza passa por
sua cabeça como uma sombra de asa de pássaro gigante, o mesmo com o
qual havia sonhado. Passa por sua cabeça e dói. Calhorda – se
acusa. Sente-se inútil. Tudo se faz tão difícil. Ir embora, é um
dever ou um furto? Pensa: será duro partir e duro viver sem você:
matar você na memória, para que não doa. Poderei? E ela, como se
tivesse escutado, pensa que sente ódio dele porque ele poderá.
Ele
percorre com os lábios o fio de umidade que atravessa a face dela.
Sequestra
seu dedo mindinho, morde, lambe e propõe: “Troco o dedo por uma
história que me contaram uma vez, em uma ilha”.
Como
nas mil e uma noites, pensa. Trocar uma história por um novo dia de
vida. Um novo dia de vida sem aqueles ruídos insuportáveis na
cabeça. Um milagre. Quer dizer que Chaplin tinha razão, quando
dizia que o silêncio é o ouro dos pobres. Estou salvo? Se
durasse...
– Termina
bem?
– Você
vai ver.
– Se
não terminar bem, não conte.
– Você
conhece Babalu? E Olofi? Olofi é o deus mais importante de todos.
Fez o mundo com as mãos. Fez também Babalu, Babalu-ayé, o negro
lindo e forte de quem todas as mulheres gostam. Deus lhe disse: “Você
pode fazer o amor quando quiser, Babalu”. E Babalu ficou muito
contente. Dava pulos de alegria. Mas também lhe disse: “Qualquer
dia, menos nas sextas-feiras. Nas sextas-feiras, nada”. Babalu
desobedeceu-o depressa. E então Deus ficou furioso. Para castigá-lo,
condenou-o à lepra. Isolaram Babalu e Deus lhe disse: “Você
merece”. E o pobre Babalu se queixava e Deus não o escutava, e o
corpo de Babalú foi caindo, pedaço a pedaço.
– Não
gosto dessa história. Não continue.
– Por
quê?
– Sou
uma boba.
– Não,
não. Você já vai ver. Porque então chegou Oxum ao reino de Olofi.
Oxum, você conhece? Não? É a deusa da sensualidade e das águas
doces. É uma mulata pequeninha e tem os cabelos negros, ondulados e
compridos, como você. Usa um vestido amarelo, como o seu, e gosta de
comer fruta, como você. Também gosta de tocar tambor e tomar
cerveja e rum e comer batata-doce.
– Proibido,
como hoje.
– Quê?
– Hoje
é sexta-feira. Não tinha percebido?
Ele
ri, e ela também ri. Agora se sentem melhor.
– Então,
Oxum chegou ao reino de Olofi para salvar Babalu da lepra. Ela dançou
a noite inteira em volta da casa de Deus, e enquanto dançava ia
regando em volta da casa com os sumos de seu corpo. Quando Deus saiu,
bem cedinho, provou aquele mel e se deliciou. São tão saborosos os
sumos de Oxum! Deus lambeu o chão até que não ficou nenhuma gota.
E quis mais, mais. Quem trouxe esse mel tão delicioso? “Esse mel é
meu”, disse Oxum. E disse que, se quisesse mais, teria que perdoar
Babalu. Deus se negou. De jeito nenhum, disse. Ele foi castigado
porque me desobedeceu. E Oxum disse: “Babalu foi castigado porque
gostava muito deste mel de mulher. E agora você, Deus, você também
quer desse mel. Você também quer continuar comendo esse mel”.
Então Deus compreendeu tudo. Creio que foi a única vez que
compreendeu tudo. E livrou Babalu de sua pena. Devolveu-lhe o corpo e
a saúde. Mas impôs, claro, uma condição. Babalu curou-se da lepra
mas ficou obrigado a levar todos os dias a carreta dos mortos para o
cemitério. Quem for ao cemitério de manhã vai vê-lo com a
carreta.
– Oxum
deve ter muitos poderes – diz ela.
– Todos
os poderes. Não existe nenhuma mulher que...
– Ela
é sua amiga?
– Muito
mais que isso. Sabe de uma coisa? Quando o deus Olofi criou as outras
divindades, deu a cada uma um lápis com uma borracha na ponta, para
escrever de um lado e apagar do outro. O lápis que ele deu a Oxum
estava incompleto. O que ela escreve não se pode apagar. Mesmo que
ela queira, não pode. O que ela faz não é possível esquecer.
Nunca se pode esquecer. O que ela faz, faz para sempre.
Escutam
as tosses do motor de um velho automóvel, que pára junto ao portão
da casa.
E
ela diz:
– Agora,
você vai embora.
E
ele diz:
– Agora,
eu vou embora.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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