Quanta
coisa num minuete! como dizia o outro. Quanta coisa numa briga de
cães! Mas eu não era um discípulo servil ou medroso, que deixasse
de fazer uma ou outra objeção adequada. Andando, disse-lhe que
tinha uma dúvida; não estava bem certo da vantagem de disputar a
comida aos cães. Ele respondeu-me com excepcional brandura:
– Disputá-la
aos outros homens é mais lógico, porque a condição dos
contendores é a mesma, e leva o osso o que for mais forte. Mas por
que não será um espetáculo grandioso disputá-lo aos cães?
Voluntariamente, comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou coisa
pior, como Ezequiel; logo, o ruim é comível; resta saber se é mais
digno do homem disputá-lo, por virtude de uma necessidade natural,
ou preferi-lo, para obedecer a uma exaltação religiosa, isto é,
modificável, ao passo que a fome é eterna, como a vida e como a
morte.
Estávamos
à porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha de uma
senhora. Entramos, e o Quincas Borba, com a discrição própria de
um filósofo, foi ler a lombada dos livros de uma estante, enquanto
eu lia a carta, que era de Virgília:
“Meu
bom amigo,
Dona
Plácida está muito mal. Peço-lhe o favor de fazer alguma coisa por
ela; mora no Beco das Escadinhas; veja se alcança metê-la na
Misericórdia.
Sua
amiga sincera,”
Não
era a letra fina e correta de Virgília, mas grossa e desigual; o V
da assinatura não passava de um rabisco sem intenção alfabética;
de maneira que, se a carta aparecesse, era mui difícil atribuir-lhe
a autoria. Virei e revirei o papel.
Pobre
Dona Plácida! Mas eu tinha-lhe deixado os cinco contos da praia da
Gamboa, e não podia compreender que...
– Vais
compreender, disse Quincas Borba, tirando um livro da estante.
– O
quê? perguntei espantado.
– Vais
compreender que eu só te disse a verdade. Pascal é um dos meus avós
espirituais; e, conquanto a minha filosofia valha mais que a dele,
não posso negar que era um grande homem. Ora, que diz ele nesta
página? - E, chapéu na cabeça, bengala sobraçada, apontava o
lugar com o dedo. – Que diz ele? Diz que o homem tem “uma grande
vantagem sobre o resto do universo: sabe que morre, ao passo que o
universo ignora-o absolutamente”. Vês? Logo, o homem que disputa o
osso a um cão tem sobre este a grande vantagem de saber que tem
fome; e é isto que torna grandiosa a luta, como eu dizia.
“Sabe
que morre” é uma expressão profunda; creio todavia que é mais
profunda a minha expressão: sabe que tem fome.
Porquanto,
o fato da morte limita, por assim dizer, o entendimento humano; a
consciência da extinção dura um breve instante e acaba para nunca
mais, ao passo que a fome tem a vantagem de voltar, de prolongar o
estado consciente. Parece-me (se não vai nisso alguma imodéstia),
que a fórmula de Pascal é inferior à minha, sem todavia deixar de
ser um grande pensamento, e Pascal um grande homem.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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