Com o chileno Roberto Bolaño e o brasileiro Graciliano Ramos como guias, uma crônica sampleada de discos de vinil
“Ô
Josué, nunca vi tamanha desgraça/ Quanto mais miséria tem, mais
urubu ameaça”, solta o vinil, o blues espiritual do Chico Science,
e lá vai o homem-caranguejo
vestido de petróleo em vez da
lama do mangue. Os tambores da Nação Zumbi pesam uma tonelada de
denúncia desde os anos 1990. É história, bróder.
Lascou a tabaca de Xôla, linda e
folclórica cadela recifense, a autêntica e verdadeira travesti
canina que representa hoje o cão sem plumas do poeta João Cabral de
Melo Neto. Xôla sem pelo e sem esperança foi vítima do vinhoto das
usinas que matou muitos rios e riachos de Pernambuco.
“Uma vida sururu”, emenda o
marisqueiro que disso vive, ostra oleada, repetindo o Luis da Silva
do livro Angústia
e sua existência entre a burocracia da repartição e o ostracismo —
obra universal do gênio russo-alagoano chamado Graciliano Ramos, o
melhor livro brasileiro de todos os tempos.
O marisqueiro esmorecido diante de tanto
piche nas beiras do Manguaba e do Camaragibe, o marisqueiro já não
enfia as ventas na fartura faz é tempo, imagina agora, só imagina a
riqueza, qual Baleia sonhando preás, no que chegamos a Vidas
Secas, o segundo maior livro
da humanidade depois de Angústia.
Ah esse mundão que já foi a lagoa do
Mundaú.
Xola me lambe a cara, no carinho das
arruaças mundanas, que cachorra, e sigo nessa crônica sampleada: “O
que não tem governo, nem nunca terá”, eis o scratch do outro
Chico, didáticos arranhões de um DJ no disco de cera de carnaúba,
a santa palmeira que está sendo demolida. “Deus é uma coisa
brasileira, nordestinamente paciente./ Oh! blood moon.”, deixou aí
uma raspinha vinilizada do santo Belchior.
E sabe quem baixa no terreiro agora? O
Gog, rapaz, meu Victor Hugo lá das quebradas de Brasília, cabra
forte de Riacho Fundo, também autor de Os
Miseráveis, lembro bem do
nosso encontro na quebrada do DF no ano da graça de 1997, esse poeta
sempre teve a palavra desigualdade
como relâmpago de tempestade sobre o cerrado, você já se molhou
com uma chuva forte sobre o federal distrito?
Desigualdade, repete o coro dos
descontentes.
Entre todas as palavras do momento, a
mais flamejante talvez seja: desigualdade. E nem é uma boa palavra,
incomoda. Começa com des. Des de desalento, des de desespero, des de
desesperança. Des, definitivamente, não é um bom prefixo.
Desigualdade.
A danada pisca qual um velho neon da rua
Augusta, que me desculpem a infâmia. Haveremos de falar dos nossos
velhos inconscientes envelhecidos e fosforescentes. A vida é a
palavra que brilha.
A palavra do ano, talvez da década,
doravante ouviremos falar muito dela. No dicionário Oxford? Pouco
importa. A palavra que demole as estatísticas do mercado.
Babélica e falante quais os mendigos e
povos de rua da cidade mais rica do pais, você, palavrinha maldita,
já andava pela São João com a Ipiranga, você já viu que alguma
coisa acontece.
Tal vocábulo acaba de ser reescrito, com
fumaça, nos céus da América
Latina, por aviões de uma certa
esquadrilha. Não apenas no Chile do gênio-mor Roberto
Bolaño, o incrível &
superlativo monstro que nos deixou o legado da Estrela
Distante e A
Literatura Nazista na América,
entre outras ideias selvagens que fazem terremotos na estante.
A diferença é que nem todo mundo
consegue olhar para cima e ler nos céus como se fosse uma lousa azul
do professor Paulo Freire.
De-si-gual-da-de.
Como se fosse a faísca, o corisco da
sabedoria, quase um Pentecostes bíblico, um bacurau pedagógico. A
palavra mágica que fez o milagre de Angicos, no Rio Grande do Norte,
quando o método Paulo Freire, em apenas 40 horas de aula alfabetizou
300 extraordinários seres humanos. Maio de 1963.
Há quem mire os céus e não veja nada
ainda, como se morasse em São Paulo e a ideia de paraíso fosse o
termômetro da Faria Lima.
Há quem não veja nem soletre, mas está
escrita no destino de todos os busões da cidade, sentido
centro/subúrbio, está na linha reta dos trens e nas curvas da
avenida Sapopemba. Está igualmente nas letras garrafais do desespero
dos alcoólatras.
“Não espere nada do centro se a
periferia está morta”, já dizia a banda “mundo livre s/a”
quando o modelo escola de Chicago
começou a gerar o ovo do desastre.
Desigualdade, quem te escreveu com muita
força, furando o papel carbono da história, foi o poeta mineiro
Adão Ventura, me contou o Ricardo Aleixo lá no “Além da letra”,
o festival de literatura e música de Gonçalves, serra da
Mantiqueira, Minas Gerais. A palavra desigualdade dança no vento e
ventre das águas do Jequitinhonha, recitou o redemoinho.
Solano Trindade, no semáforo, sinal
fechado, fez seu primeiro rap, “tem gente com fome, tem gente com
fome”, somente com substantivos deste mesmo dicionário. Você
ainda não conhece o Solano? Corra, dá tempo.
Dá tempo para você entender que vivemos
uma desigualdade fela da puta. Pegue um busão da Paulista para a
Cidade Tiradentes, nem carece recorrer às estatísticas do Nordeste,
passe o vale-transporte (enquanto
ele ainda existe sob o comando de Paulo
Guedes) na catraca e simbora. Dos
Jardins ao extremo leste há uma viagem no tempo, sem direito a
ficção científica. O patrão jardinesco vive 23 anos a mais, em
média, do que um humaníssimo habitante da CT, por todas as razões
sociais que a gente bem conhece. Que merda.
Evitei as estatísticas nessa crônica.
Poderia matar de desesperança os leitores, os números rendem
manchetes, mas carecem de rostos humanos. A ideia era apenas refletir
sobre a palavra desigualdade nesse perigo da hora. E repare que é a
visão de um brasileiro que veio das vidas secas e vive hoje uma
situação privilegiada diante da maioria dos viventes.
Pega a visão, imprensa, só há uma
possibilidade de fazer a grande cobertura: mire-se na desigualdade,
talvez não haja mais jeito de achar que os pontos da bolsa de
valores signifiquem a ideia de fazer um país.
Xico Sá, in
El
País, 28/10/2019 (acesse
aqui)
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