terça-feira, 29 de outubro de 2019

Um pombo chamado amor

O pombo que mudou a vida de Pequeno Soba – e ainda lhe matou a fome – chamava-se Amor. Acham ridículo? Queixem-se a Maria Clara. Foi ela quem lhe deu o nome. A futura esposa de Magno Moreira Monte era, por alturas da Independência, uma jovem estudante liceal. O pai, Horácio Capitão, funcionário da alfândega, criava pombos-correios. Os pombos batizados por Maria Clara tendiam a ser campeões. Fora o caso, antes de Amor, de Namorado (1968), Amoroso (1971), Clamoroso (1973) e Encantado (1973). Amor esteve quase para ser jogado fora, ainda no ovo. Não presta, explicou Horácio Capitão à filha: Repara na casca, rugosa, muito grossa. Um pombo saudável, forte, bom voador, nasce de ovos com a casca lisa e brilhante. A rapariga rodou o ovo entre os dedos compridos, e vaticinou:
Será um campeão, pai. Vou chamar-lhe Amor.
Amor veio à luz com as pernas finas. Piava muito na tigela. Além disso, a plumagem atrasou-se. Horácio Capitão não escondia o desgosto e a repugnância:
Devíamos desfazer-nos dele, Maria Clara. O raio do bicho nunca voará bem. É um perdedor. Um columbófilo tem de saber distinguir os pombos bons dos pombos ruins. Os maus deitamos fora, não perdemos tempo com eles.
Não!, insistia a filha: Tenho absoluta fé neste pombo. Amor nasceu para vencer.
Amor começou de fato a desenvolver-se. Infelizmente, cresceu demais. Ao vê-lo gordo, muito maior do que os pombos da mesma ninhada, Horácio Capitão voltou a abanar a cabeça:
Devíamos comê-lo. Pombos grandes só têm alguma chance nas provas de velocidade. Não servem para longas distâncias.
Enganou-se. Amor correspondeu às expectativas de Maria Clara. 1974 e 1975 foram para ele anos de glória. Revelou-se rápido, determinado, com uma arreigada paixão pelo pombal:
O filho da puta demonstra apego ao território, reconheceu finalmente Horácio Capitão: O apego ao território é a principal característica de um bom voador.
Ao dar de caras com um espelho, Horácio Capitão via um homem alto e musculado, o que ele não era, muito pelo contrário, media pouco mais de um metro e sessenta, e exibia uns braços lassos, ombros estreitos, ossos de passarinho. Nunca recuava diante de qualquer confronto, e, tendo oportunidade, desferia o primeiro soco, sofrendo a seguir os do adversário, sofrendo-os mesmo muito, na carne frágil, mas sempre teso como um colosso. Nascera em Luanda, numa família da pequena burguesia mestiça, e só uma vez visitara Portugal. Não obstante sentia-se, as palavras são dele, um português dos sete costados. A Revolução de Abril deixou-o furioso e atordoado. Nuns dias mais furioso, noutros mais atordoado, ora de olhar perdido no céu, ora vociferando contra os traidores e os comunistas que, sem vergonha, pretendiam vender Angola ao império soviético. Assistiu, horrorizado, ao início da guerra civil e ao triunfo do MPLA, e dos seus aliados cubanos e do Bloco de Leste. Podia ter embarcado para Lisboa, como tantos outros, mas não quis:
Enquanto houver nesta terra um verdadeiro português, Angola continuará sendo Portugal.
Nos meses que se seguiram à Independência viu sucederem-se as tragédias que havia vaticinado: a fuga dos colonos e de uma boa parte da burguesia nativa, o encerramento das fábricas e do pequeno comércio, o colapso dos serviços de água, de eletricidade e de recolha de lixo, as prisões em massa, os fuzilamentos. Deixou de frequentar o pombal. Passava os dias na Biker. Eu não vos disse?!, comentava com os poucos amigos, na sua maioria antigos funcionários públicos, que continuavam a frequentar a histórica cervejaria. Tornou-se tão irritante, insistindo e insistindo nas mesmas recriminações e nos mesmos sombrios presságios, que, a partir de certa altura, os outros começaram a referir-se a ele como o Eu-Não-Vos-Disse.
Certa manhã de cacimbo, ao abrir o jornal, deu com a fotografia de um comício. Viu, em primeiro plano, Maria Clara abraçada a Magno Moreira Monte, e correu a mostrar o jornal a um antigo informante da polícia política portuguesa, Artur Quevedo, o qual, após a Independência, passara a fazer pequenos biscates para os novos serviços de informação e segurança:
Conheces este gajo? Quem é este gajo?
Quevedo encarou o amigo, compadecido:
Um comunista fanático. O pior dos comunistas, inteligente, determinado, e com um ódio visceral aos portugueses.
Horácio voltou para casa em pânico. A sua filha, a sua menina, a sua princesa, caíra nas mãos de um subversivo. Não saberia o que dizer à falecida mulher quando a voltasse a ver. O coração acelerou enquanto avançava. A fúria foi tomando conta dele. Já gritava quando abriu a porta:
Maria Clara!
A filha acudiu, vinda da cozinha, limpando as mãos ao avental:
Pai?!
Quero que a menina comece a fazer as malas. Vamos para a metrópole.
O quê?!
Maria Clara completara 17 anos. Herdara da mãe a beleza plácida, e do pai a coragem e a teimosia. Monte, oito anos mais velho, fora seu professor de português, em 1974, o ano da euforia. Atraiu-a nele os defeitos de Horácio. Deixou-se também seduzir pela voz grave com que o professor lia, nas aulas, os versos de José Régio: A minha vida é um vendaval que se soltou. / É uma onda que se alevantou. / É um átomo a mais que se animou... / Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / – Sei que não vou por aí!
A moça despiu o avental. Pisou-o, furiosa:
Vá o senhor. Eu fico no meu país.
Horácio esbofeteou-a:
Tens 17 anos, e és minha filha. Fazes o que eu mandar. Para já ficas fechada em casa, não quero que faças mais nenhum disparate.
Instruiu a empregada para que não deixasse sair Maria Clara e foi comprar passagens de avião. Vendeu o carro, por um preço ridículo, a Artur Quevedo, e entregou-lhe uma cópia das chaves de casa:
Vais lá todos os dias abrir as janelas, regar o jardim, para que as pessoas pensem que continua habitada. Não quero os comunistas a ocupar-me a casa.
Maria Clara servia-se dos pombos, há várias semanas, para se comunicar com o amante. Horácio cortara o telefone, depois que começara a receber chamadas anónimas com ameaças de morte. As ameaças não estavam relacionadas com questões políticas. Nada a ver. O funcionário da alfândega suspeitava de um colega invejoso. Monte, por seu lado, viajava muito, cumprindo missões secretas, por vezes em zonas de combate. Maria Clara, que, a essa altura, cuidava sozinha do pombal, dava-lhe três, quatro pombos, os quais ele ia soltando, ao crepúsculo, com versos de amor e notícias breves atadas às patas.
Maria Clara conseguiu enviar, através da empregada, uma mensagem a uma amiga, e esta foi à procura de Monte. Encontrou-o em Viana, investigando rumores sobre a organização de um golpe militar, envolvendo oficiais negros, descontentes com a predominância de brancos e mestiços no mais alto escalão das forças armadas. Monte sentou-se e escreveu:
Amanhã. Seis horas, lugar habitual. Muito cuidado. Amo-te.
Colocou a mensagem num pequeno cilindro de plástico e prendeu-o à perna direita de um dos dois pombos que havia trazido. Soltou o pombo.
Maria Clara aguardou em vão por uma resposta. Chorou a noite inteira. Não protestou no caminho para o aeroporto. Não falou até desembarcarem em Lisboa. Permaneceu pouco tempo na capital portuguesa. Cinco meses após completar 18 anos regressou a Luanda e casou-se com Monte. Horácio engoliu o orgulho, fez as malas, e seguiu a filha. Veio a saber, muito mais tarde, que o futuro genro evitara por várias vezes a sua prisão, nos anos tumultuosos que se seguiram à Independência. Nunca lhe agradeceu. Todavia, no funeral, foi dos que mais o chorou.
Deus pesa as almas numa balança. Num dos pratos fica a alma, no outro as lágrimas dos que a choraram. Se ninguém a chorou, a alma desce para o inferno. Se as lágrimas forem suficientes, e suficientemente sentidas, ascende para o céu. Ludo acreditava nisto. Ou gostaria de acreditar. Foi o que disse a Sabalu:
Vão para o Paraíso as pessoas de quem os outros sentem a falta. O Paraíso é o espaço que ocupamos no coração dos outros. Isto era o que me contava a minha avó. Não acredito. Gostaria de acreditar em tudo o que é simples – mas careço de fé.
Monte teve quem o chorasse. Custa-me imaginá-lo no Paraíso. Talvez purgue, porém, em algum recanto obscuro da imensidão, entre o sereno esplendor do Céu e as convulsas trevas do Inferno, jogando xadrez com os anjos que o guardam. Se os anjos souberem jogar, se jogarem bem, isso para ele será quase o Paraíso.
Quanto a Horácio Capitão, o Eu-Não-Vos-Disse, passa as tardes num bar decrépito, na Ilha, bebendo cerveja, e discutindo política, na companhia do poeta Vitorino Gavião, de Artur Quevedo e de mais duas ou três velhas carcaças dos tempos do caprandanda. Ainda hoje não reconhece a Independência de Angola. Acha que assim como o comunismo acabou, um dia a Independência também acabará. Continua a criar pombos.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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