terça-feira, 29 de outubro de 2019

Santelmo e fogo-fátuo

Na política brasileira avulta, há muito, a insigne classe dos insultadores, cuja função política se reduz exclusivamente ao ofício de insultar. São os magarefes de certa espécie de açougues, onde se corta, na honra das almas independentes, na fama dos homens responsáveis, no merecimento dos espíritos úteis, nos serviços dos cidadãos moderados, o bife sangrento para o estômago da democracia feroz. Esta divindade alucinada, antípoda da democracia liberal e culta, disciplinada e humana, progressista e capaz, vive deglutindo majestosamente a carniça, que lhe chacina a sua matilha de hienas. O furor difamatório, a vesânia vituperativa, a protérvia de enxovalhar os adversários mais limpos com os aleives mais torpes constituem a sua eloquência, a sua probidade, o seu patriotismo. A decomposição orgânica exala o fogo-fátuo. O ar eletrizado acende o santelmo na ponta das lanças heroicas e no topo dos mastros atrevidos, que desafiam o oceano, Dir-se-ia, contudo, a mesma luz que brilha nos dois meteoros. Mas a claridade do fogo-fátuo nasce da infecção, e atrai para o lodo; a do santelmo lampeja do fluido sublime, que rasga as nuvens, anuncia a glória, e aponta para os céus. Senhores, quando vejo bruxolear um desses pequeninos Demóstenes da diatribe, ergo a vista para o alto, onde quis que a tivéssemos Aquele que deu ao homem a fronte levantada, os homini sublime dedit... e já os não diviso. Há de ser a lamparina dos brejos, concluo então de mim para mim; e espero que o azul da chama rasteira se apague à superfície do charco.
Rui Barbosa, in Antologia

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