Os
filmes do Antonioni e do Bergman que a gente via e discutia com tanta
seriedade anos atrás também eram uma forma de escapismo. Tanto
quanto o musical e a comédia, aquelas histórias de tédio e
indagações existenciais nos distraíam das exigências menores do
cotidiano. Fugíamos não para um mundo cor-de-rosa, mas para outro
matiz do preto, bem mais fascinante do que o das nossas pequenas
aflições. Nenhum dos personagens do Antonioni ou do Bergman, embora
enfrentassem seu vazio interior e a frieza de um universo
indiferente, parecia ter qualquer problema com o aluguel.
Claro,
o deserto emocional em que viviam os personagens do Antonioni, por
exemplo, era o deserto metafórico do capitalismo, de uma civilização
arrasada por si mesma. Mas estavam todos empregados e ganhando bem. E
como era fotogênico o seu suplício. Com Bergman experimentamos o
horror de existir, a terrível verdade de que somos uma espécie
corrupta sem redenção possível e que a morte torna tudo sem
sentido. Hoje suspeitamos de que se não vivesse na Suécia, com
educação, saúde e bem-estar garantidos do ventre até o túmulo,
ele não diria isso. É preciso estar livre das dificuldades da vida
para poder concluir, com um mínimo de estilo, que a vida é
impossível. Tínhamos uma secreta inveja desses europeus tão
bem-sucedidos no seu desespero. Não tínhamos a mesma admiração
por filmes em que as pessoas se preocupavam não com a ausência de
Deus, mas de um contracheque no fim do mês.
Os
que condenam as sociedades assistenciais costumam dizer que o Estado
superprotetor rouba dos cidadãos as dificuldades que os desafiam e
que são, afinal, o tempero da vida. E sempre citam as célebres
estatísticas sobre suicídios na Escandinávia como prova do que
acontece numa sociedade sem desafios. Pessoas morrem, sim, de
autofastio ou porque Deus não existe, mas morrem por decisão
própria. Nada decide por elas, nem a omissão de um governo nem o
azar de ter nascido no lugar errado, na época errada e na classe
errada. Não há equivalência possível entre morrer de tédio e
morrer de fome. Está certo, o assistencialismo não funciona, o
socialismo morreu, os liberais ganharam e a história acabou. Mas às
vezes eu ainda me pego sonhando em sueco com uma sociedade pronta,
sem qualquer destes desafios tropicais, em que a gente pudesse
finalmente ser um personagem do Bergman, enojado apenas com tudo e
nada mais.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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