Recordei
outros carnavais quando fui ao enterro de d. Faride, mãe do meu
amigo Osman Nasser. Quando eu tinha uns catorze ou quinze anos de
idade, Osman beirava os trinta e era uma figura lendária na pacata
Manaus dos anos 1960.
Pacata?
Nem tanto. A cidade não era esse polvo cujos tentáculos rasgam a
floresta e atravessam o rio Negro, mas sempre foi um porto
cosmopolita, lugar de esplendor e decadência cíclicos, por onde
passam aventureiros de todas as latitudes do Brasil e do mundo.
No
fim daquela tarde triste — sol ralo filtrado por nuvens densas e
escuras —, me lembrei dos bailes carnavalescos nos clubes e dos
blocos de rua. Antes do primeiro grito de Carnaval, a folia começava
na tarde em que centenas de pessoas iam recepcionar a Camélia no
aeroporto de Ponta Pelada, onde a multidão cantava a marchinha Ô
jardineira, por que estás tão triste, mas o que foi que te
aconteceu? e depois a caravana acompanhava a Camélia gigantesca
até o Olympico Clube. Não sei se era permitido usar lança-perfume,
mas a bisnaga de vidro transparente refrescava as noites
carnavalescas, o éter se misturava ao suor dos corpos e ao sereno da
madrugada.
Não
éramos espectadores de desfiles de escolas de samba carioca; aliás,
nem havia TV em Manaus: o Carnaval significava quatro dias
maldormidos com suas noites em claro, entre as praças e os clubes. A
Segunda-Feira Gorda, no Atlético Rio Negro Clube, era o auge da
folia que terminava no Mercado Municipal Adolpho Lisboa, onde víamos
ou acreditávamos ver peixes graúdos fantasiados e peixeiros
mascarados. Havia também sereias roucas de tanto cantar, odaliscas
quase nuas e descabeladas, princesas destronadas, foliões com roupa
esfarrapada, mendigos que ganhavam um prato de mingau de banana ou
jaraqui frito. Os foliões mais bêbados mergulhavam no rio Negro
para mitigar a ressaca, outros discutiam com urubus na praia ou
procuravam a namorada extraviada em algum momento do baile, quando
ninguém era de ninguém e o Carnaval, um mistério alucinante.
Quantos
homens choravam na praia, homens solitários e tristes, com o rosto
manchado de confetes e o coração seco.
“Grande
é o Senhor Deus”, cantam parentes e amigos no enterro, enquanto eu
me lembro da noite natalina em que d. Faride distribuía presentes
para convidados e penetras que iam festejar o Natal na casa dos
Nasser.
Ali
está a árvore coberta de pacotes coloridos; na sala, a mesa cresce
com a chegada de acepipes, as luzes do pátio iluminam a fonte de
pedra, cercada de crianças. O velho Nasser, sentado na cadeira de
balanço, fuma um charuto com a pose de um perfeito patriarca. Ouço
a voz de Oum Kalsoum no disco de 78 RPM, ouço uma gritaria alegre,
vejo as nove irmãs de Osman dançar para o pai; depois elas lhe
oferecem tâmaras e pistaches que tinham viajado do outro lado da
Terra para aquele pequeno e difuso Oriente no centro de Manaus.
Agora
as mulheres cantam loas ao Senhor, rezam o Pai-Nosso e eu desvio o
olhar das mangueiras quietas que sombreiam o chão, mangueiras
centenárias, as poucas que restaram na cidade. Parece que só os
mortos têm direito à sombra, os vivos de Manaus penam sob o sol.
Olho para o alto do mausoléu e vejo a estrela e lua crescente de
metal, símbolos do islã: religião do velho Nasser. É um dos
mausoléus muçulmanos no cemitério São João Batista, mas a mãe
que desce ao fundo da terra era católica.
Reconheço
rostos de amigos, foliões de outros tempos, e ali, entre dois
túmulos, ajoelhado e de cabeça baixa, vejo o vendedor de frutas
que, na minha juventude, carregava um pomar na cabeça.
A
cantoria cessa na quietude do crepúsculo, e a vida, quando se olha
para trás e para longe, parece um sonho. Abraço meu amigo órfão,
que me cochicha um ditado árabe:
Uma
mãe vale um mundo.
Daqui
a pouco será Carnaval…
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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