quarta-feira, 8 de maio de 2019

O palhaço e o erudito

Os palhaços são punidos pelo riso que provocam. A punição de Nietzsche foi o seu exílio da comunidade acadêmica. Roupas e jeitos de palhaço não combinam com os jeitos e as vestes acadêmicas dos eruditos. Um professor da universidade de Berlim, movido por bons sentimentos, escreveu-lhe dizendo que ele deveria tentar um estilo diferente, porque ninguém leria coisas como as que ele escrevia. Seus companheiros eram as crianças. Ele escreveu:
Enquanto eu dormia um carneiro comeu as minhas vestes acadêmicas – comeu e disse: ‘Zaratustra não é mais um erudito’. Disse e solenemente se afastou com orgulho. Uma criança me contou. ‘Mudei-me da casa dos eruditos e bati a porta ao sair. Por muito tempo a minha alma assentou-se faminta à sua mesa. Não sou como eles, treinados a buscar o conhecimento como especialistas em rachar fios de cabelo ao meio. Amo a liberdade. Amo o ar sobre a terra fresca. É melhor dormir em meio às vacas que em meio às suas etiquetas e respeitabilidades.’ Gosto de me deitar onde as crianças brincam, ao lado da parede caída, entre cardos e popoulas vermelhas. Para as crianças eu ainda sou um erudito, e também para os cardos e papoulas. Eles são inocentes até mesmo em sua malícia. Mas para o carneiro eu não mais sou um erudito; assim o meu destino o decreta – bendito seja! ”
Sou muito quente, queimado pelos meus próprios pensamentos; frequentemente eles quase me deixam sem fôlego. Tenho, então, de ir para fora, longe de todos os quartos empoeirados. Mas eles se assentam frios na sombra fria: em tudo eles desejam ser meros espectadores e cuidam de não se assentar onde o sol queima o lugar por onde se anda. Como aqueles que ficam nas ruas e observam as pessoas que passam, eles também esperam e observam os pensamentos que outros pensaram. Se a gente os agarra com as mãos deles sai uma nuvem de poeira como a que sai dos sacos de farinha, involuntariamente; mas quem adivinharia que a poeira deles vem do grão e do deleite amarelo dos campos de verão? Quando eles posam como sábios, seus pequenos epigramas e verdades me congelam: a sua sabedoria frequentemente tem um cheiro como se ela viesse dos pântanos; na verdade, eu até ouvi rãs coaxando de dentro dela. Eles são habilidosos e têm dedos espertos; por que razão haveria minha simplicidade de desejar estar perto da sua multiplicidade? Os seus dedos entendem tudo o que seja tecer, tricotar e dar nós: é assim que eles tricotam as meias do espírito.”
Num lugar do Ecce Homo, Nietzsche escreveu uma frase latina como se fosse seu programa filosófico existencial: “Ridendo dicere severum”, rindo, dizer as coisas sérias…
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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