Os
palhaços são punidos pelo riso que provocam. A punição de
Nietzsche foi o seu exílio da comunidade acadêmica. Roupas e
jeitos de palhaço não combinam com os jeitos e as vestes acadêmicas
dos eruditos. Um professor da universidade de Berlim, movido por bons
sentimentos, escreveu-lhe dizendo que ele deveria tentar um estilo
diferente, porque ninguém leria coisas como as que ele escrevia.
Seus companheiros eram as crianças. Ele escreveu:
“Enquanto
eu dormia um carneiro comeu as minhas vestes acadêmicas – comeu e
disse: ‘Zaratustra não é mais um erudito’. Disse e solenemente
se afastou com orgulho. Uma criança me contou. ‘Mudei-me da casa
dos eruditos e bati a porta ao sair. Por muito tempo a minha alma
assentou-se faminta à sua mesa. Não sou como eles, treinados a
buscar o conhecimento como especialistas em rachar fios de cabelo ao
meio. Amo a liberdade. Amo o ar sobre a terra fresca. É melhor
dormir em meio às vacas que em meio às suas etiquetas e
respeitabilidades.’ Gosto de me deitar onde as crianças brincam,
ao lado da parede caída, entre cardos e popoulas vermelhas. Para as
crianças eu ainda sou um erudito, e também para os cardos e
papoulas. Eles são inocentes até mesmo em sua malícia. Mas para o
carneiro eu não mais sou um erudito; assim o meu destino o decreta –
bendito seja! ”
“Sou
muito quente, queimado pelos meus próprios pensamentos;
frequentemente eles quase me deixam sem fôlego. Tenho, então, de ir
para fora, longe de todos os quartos empoeirados. Mas eles se
assentam frios na sombra fria: em tudo eles desejam ser meros
espectadores e cuidam de não se assentar onde o sol queima o lugar
por onde se anda. Como aqueles que ficam nas ruas e observam as
pessoas que passam, eles também esperam e observam os pensamentos
que outros pensaram. Se a gente os agarra com as mãos deles sai uma
nuvem de poeira como a que sai dos sacos de farinha,
involuntariamente; mas quem adivinharia que a poeira deles vem do
grão e do deleite amarelo dos campos de verão? Quando eles posam
como sábios, seus pequenos epigramas e verdades me congelam: a sua
sabedoria frequentemente tem um cheiro como se ela viesse dos
pântanos; na verdade, eu até ouvi rãs coaxando de dentro dela.
Eles são habilidosos e têm dedos espertos; por que razão haveria
minha simplicidade de desejar estar perto da sua multiplicidade? Os
seus dedos entendem tudo o que seja tecer, tricotar e dar nós: é
assim que eles tricotam as meias do espírito.”
Num
lugar do Ecce Homo, Nietzsche escreveu uma frase latina como
se fosse seu programa filosófico existencial: “Ridendo dicere
severum”, rindo, dizer as coisas sérias…
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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