quarta-feira, 8 de maio de 2019

O calhambeque quebrou de novo

Quando a carne de porco e as batatas estavam prontas, as famílias sentaram-se ao redor da comida, no chão, e começaram a comer. Estavam silenciosos e olhavam para o fogo. Wilson, que acabava de arrancar uma fatia de carne com os dentes, suspirou de satisfação.
É bom a gente comer carne de porco — disse.
A gente tinha dois porcos — esclareceu o pai —, e achamos que era melhor a gente comer eles duma vez. Vender não adiantava; dava muito pouco dinheiro. Depois que a gente se acostumar com a viagem e a mãe puder fazer pão, bem, então vai ser bom mesmo; vamo poder admirar a paisagem sabendo que tem duas barricas de carne na bagagem. Faz quanto tempo que o senhor e sua mulher estão viajando?
Wilson limpou os dentes com a língua e palitou os resíduos.
Nós não tivemos sorte — falou. — Já faz três semanas que estamos fora de casa.
Meu Deus, e nós queremos estar na Califórnia dentro de dez dias!
Al interrompeu-o:
Não sei, pai. Com esse carregamento pesado não vai ser fácil assim, talvez a gente nunca possa chegar até lá. Principalmente se tiver montanhas pela frente.
Silenciaram todos em volta da fogueira. Tinham a cabeça pendida para a frente e seus cabelos e suas testas brilhavam à luz vermelha. Em cima daquela pequena cúpula, cintilavam fracamente as estrelas do céu do verão. Sobre o colchão, afastada do fogo, a avó choramingava qual um cachorrinho. Todos os olhares convergiram para ela.
A mãe disse:
Rosasharn, seja boazinha e vai se deitar com a avó. Ela precisa de alguém. Agora ela já sabe.
Rosa de Sharon levantou-se e foi para junto da avó. Deitou-se ao lado dela, no colchão, e o murmúrio abafado de ambas chegou até o grupo que rodeava a fogueira. Rosa de Sharon e a avó cochichavam.
Noah disse:
É engraçado, o avô morreu e eu sinto a mesma coisa que antes. Não tou triste, nem nada.
É a mesma coisa — disse Casy. — O avô e as terras de vocês eram a mesma coisa.
Al disse:
É uma pena! Ele sempre dizia o que ia fazer quando pudesse ter tanta uva que desse pra amassar os cacho e escorrer o suco pela cara, e coisas assim.
Casy disse:
Dizia isso de gozação, mas sem a intenção de fazer. O avô não morreu esta noite; já estava morto quando nós tiramos ele de casa.
O senhor tem certeza disto? — perguntou o pai.
Bem, não é bem isso. Ele naturalmente respirava — esclareceu Casy. — O que quero dizer é que ele já estava praticamente morto. Ele e as terras formavam um só e ele sabia disso.
E o senhor sabia que ele ia morrer? — perguntou tio John.
Sim — disse Casy —, eu sabia.
John encarou-o fixamente e o horror se lhe estampou nas faces.
E o senhor não disse nada a ninguém?
Para quê? — fez Casy.
A gente... podia fazer alguma coisa.
Fazer o quê?
Não sei, mas...
Não — disse Casy —, não se poderia fazer nada. O caminho de vocês já estava traçado, e o avô não poderia participar dele. Mas ele não sofreu nada. Só hoje de manhã, quando começou a movimentação toda. Ele ficou aqui, na terra que era a terra dele. Não teve forças para deixá-la.
Tio John suspirou profundamente.
Wilson disse:
Nós tivemos que abandonar meu irmão Will. — As cabeças de todos voltaram-se para ele. — A gente tinha dezesseis hectares. Ele é mais velho que eu. Nenhum de nós sabia dirigir bem. Bom, nós resolvemos ir embora e vender tudo que possuíamos. Will comprou um carro e o vendedor o apresentou a um rapaz que ia ensinar ele a dirigir. Então, na tarde em que nós íamos partir, algum tempo antes da nossa saída, Will e tia Minnie ficaram praticando um pouco de direção. Will chegou numa curva e gritou: “Anda, moreno!”, como se fosse para um cavalo, recuou contra uma cerca e gritou de novo: “Aiô!” Pisou fundo no acelerador e despencou no fundo de um barranco. E aí, acabou-se. Ele não tinha mais nada para vender e ficou sem carro. Mas isso foi culpa dele mesmo. Ficou tão danado que nem quis vir conosco. Ficou lá xingando Deus e o mundo.
E que é que ele vai fazer agora?
Nem sei. Ele ficou tão aborrecido que nem pôde pensar no que ia fazer. E nós não pudemos esperar. Só tinhamos oitenta e cinco dólares. Não podíamos ficar e dividir o dinheiro; aliás já se foi o dinheiro quase todo na viagem. Só tínhamos viajado cento e cinquenta quilômetros quando quebrou uma coisa no diferencial e tivemos que pagar trinta dólares pelo conserto. Depois precisamos comprar um pneu e logo depois estourou uma vela de ignição, e a Sairy ficou doente. Tudo isto nos reteve por mais de dez dias. E agora esse calhambeque aí quebrou de novo e o dinheiro está nas últimas. Nem sei se chegaremos algum dia à Califórnia. Se ao menos eu entendesse de automóveis e pudesse consertar o carro!
Al perguntou com ar de importância:
Que é que o carro tem, afinal?
Bem, resolveu não andar mais. O motor pega e para logo em seguida. Depois pega outra vez e torna a parar depois de rodar um pedacinho à toa.
Então ele pega só um minuto, mais ou menos?
Sim, senhor. E não quer andar mais, posso botar quanta gasolina quiser no tanque. Está cada vez pior, e agora não anda nem pra trás nem pra frente.
Al se tornou compenetrado e senhor de si:
Deve ser entupimento dos tubos de condução de gasolina. Vou ver se faço uma limpeza neles.
E também o pai estava muito orgulhoso dos conhecimentos de Al.
Ele entende um bocado de automóveis — disse, satisfeito.
Pois eu lhe ficaria muito agradecido — disse Wilson. — A gente tem a impressão de que é uma verdadeira criança por não saber lidar com este troço. Quando chegar à Califórnia, vou tratar logo de comprar um bom carro. Talvez esse não estrague tão depressa.
Sim, se a gente conseguir chegar na Califórnia. Chegar até lá é que é a dificuldade — disse o pai.
John Steinbeck, in As vinhas da Ira

Nenhum comentário:

Postar um comentário