sexta-feira, 1 de março de 2019

Imagens da selva

Mergulhado nessas lembranças, desperto subitamente com o ruído do mar. Escrevo na Isla Negra, na costa, perto de Valparaíso. Acalmaram-se há pouco os grandes vendavais que açoitavam o litoral. O oceano - que, mais do que eu o olho de minha janela, me olha a mim com seus mil olhos de espuma - conserva ainda no marulhar a persistência terrível da tempestade.
Anos distantes! Reconstituí-los é como se o som das ondas que agora escuto entrasse intermitentemente dentro de mim, às vezes embalando-me para dormir, outras vezes com a brusca cintilação de uma espada. Recolherei essas imagens sem cronologia, tal como estas ondas que vão e vêm.
1929, de noite. Vejo a multidão agrupada na rua. É uma festa muçulmana. Prepararam uma vala comprida no meio da rua e rechearam-na de brasas. Aproximo-me. O vigor das brasas que foram se acumulando sob uma camada levíssima de cinza, sobre a faixa escarlate do fogo vivo, escalda meu rosto. Logo aparece um personagem estranho. Com o rosto tisnado de branco e vermelho vem sobre os ombros de quatro homens vestidos também de vermelho. Quando o descem, começa a andar cambaleante sobre as brasas, gritando enquanto caminha:
- Má! Má!
A multidão imensa devora atônita a cena. O mago já percorreu incólume a comprida faixa de brasas. Um homem então se separa da multidão, tira as sandálias e faz com os pés descalços o mesmo percurso. Interminavelmente vão se apresentando voluntários. Alguns se detêm na metade da trincheira para afundar os calcanhares no fogo ao grito de Má! Má!, uivando com gestos horríveis, desviando o olhar para o céu. Outros passam com crianças nos braços. Ninguém se queima ou talvez se queimem e ninguém sabe.
Junto ao rio sagrado eleva-se o templo de Khali, a deusa da morte. Entramos misturados a centenas de peregrinos que chegaram dos confins da província hindu para pedir sua bênção. Atemorizados, maltrapilhos, são empurrados pelos brâmanes que a cada passo cobram tributos por alguma coisa. Os brâmanes levantam um dos sete véus da deusa execrável e, quando o levantam, soa um golpe de gongo que parece desabar o mundo. Os peregrinos caem de joelhos, saúdam de mãos postas, tocam o chão com a testa e continuam andando até o próximo véu. Os sacerdotes fazem-nos convergir para um pátio onde decapitam bodes com uma única machadada e cobram novos tributos. Os balidos dos animais feridos são afogados pelos golpes do gongo. As paredes de cal suja são salpicadas de sangue até o teto. A deusa é uma imagem de face escura e olhos brancos. Uma língua escarlate de dois metros desce de sua boca até o chão. De suas orelhas e de seu pescoço pendem colares de crânios e emblemas da morte. Os peregrinos dão suas últimas moedas antes de serem empurrados para a rua.
Os poetas que me rodeavam para dizer suas canções e seus versos eram muito diferentes daqueles peregrinos submissos. Acompanhando-se com seus tamborins, vestidos com suas talares roupas brancas, sentados de cócoras sobre a relva, cada um deles lançava um grito rouco e entrecortado, e de seus lábios saía uma canção que tinham composto com a mesma forma e métrica das canções antigas e milenares. Mas o sentido das canções tinha mudado. Não eram canções de sensualidade, de gozo, mas canções de protesto, canções contra a fome, canções escritas nas prisões. Muitos destes jovens poetas que encontrei ao longo da Índia e cujos olhares sombrios não poderei esquecer, acabavam de sair da prisão e iam voltar para dentro de seus muros talvez amanhã. Porque eles pretendiam sublevar-se contra a miséria e contra os deuses. Esta é a época que nos foi reservada para viver. E este é o século de ouro da poesia universal. Enquanto os novos cânticos são perseguidos, um milhão de homens dormem noite após noite nas estradas, nos arredores de Bombaim. Dormem, nascem e morrem. Não há casas nem pão, nem medicamentos. Foi assim que a Inglaterra, civilizada e orgulhosa, deixou o seu império colonial. Despediu-se de seus antigos súditos sem deixar-lhes escolas nem indústrias, nem habitações, nem hospitais, mas somente prisões e montes de garrafas de uísque vazias.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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