sexta-feira, 1 de março de 2019

1919

Com a Revolução Russa, Mayer Guinzburg ficou ainda mais revoltado — continua Avram. — Acordava à noite gritando: “Às barricadas!” Não me chamava de Avram, mas sim Companheiro Irmão; e dizia: o que é meu é teu, o que é teu é meu — não há mais propriedade privada. Resolveu que usaríamos até a mesma escova de dentes, e, de fato, jogou fora a sua. Eu não quis contrariá-lo, mas deixei de escovar os dentes: tive muitas cáries por causa disto. Estas coisas todas faziam nosso pai sofrer muito. Nosso pai queria que Mayer fosse rabino; à noite colocava diante do filho os livros sagrados. Mayer abria-os de má vontade. Nosso pai incentivava-o com sábias palavras: — Estuda, filho, estuda. Lembra-te que Rabi Iochanan ben Zacai dizia: “ Foste criado para estudar a Torá.
Tonto de sono, Mayer respondia: — Mas Simeon, filho de Rabi Gamaliel, dizia: “ “Passei a vida entre sábios e nada achei de melhor do que o silêncio. O essencial não é estudar, é fazer”.
Mayer queria espicaçar; mas nosso pai não percebia; ao contrário, encantava-se com a polêmica: — Simeon? Era inexperiente. Rabi Gamaliel, seu pai, sabia o que estava dizendo quando recomendou: “Procure um mestre”.. Eu sou o teu mestre, meu filho.
Na Guemara — contestava o perverso Mayer — está escrito: “Se o discípulo percebe que seu mestre erra, deve corrigi-lo”.
A testa de nosso pai vincava-se: — Em que estou errado, meu filho? — Em me obrigar a estudar estas bobagens — gritava Mayer — quando estou louco de sono! É um absurdo! — Na Guemara está escrito: — respondia nosso pai docemente — “Se um grande homem disser uma coisa que te pareça absurdo, não rias; tenta entendê-lo”. Eu também estou com sono; e se fico aqui contigo é porque Rabi Hananiá ben Teradion dizia: “Quando dois homens se reúnem para discutir a Torá o Santo Espírito paira sobre eles”. Estamos com fome, é certo. Mas o que importa? Está escrito: “Eis como vive o estudioso: come uma côdea de pão com sal; bebe água moderadamente; dorme no chão; suporta privações”. A maior riqueza é o estudo, a religião.
Não! — gritava Mayer. — A maior riqueza é a posse dos meios de produção, estás ouvindo? Estudo, religião! É bem como diz Marx: a religião é o ópio dos povos! — Quem é este Marx? — perguntava nosso pai, espantado. — E o que ele sabe da felicidade dos homens? — Sabe tudo! Sabe que não deve haver fome, nem injustiça. Não deve haver “meu” nem “teu”; deve ser: “O que é meu é teu; o que é teu, é meu”.
Nosso pai abanava tristemente a cabeça.
Na Mishná está escrito que há quatro tipos de homens: o vulgar diz: “O que é meu é meu; o que é teu é teu”; o perverso diz: “O que é meu é meu; e o que é teu também é meu”. Quanto a mim, prefiro as palavras do homem santo, que diz: “O que é meu é teu; e o que é teu é teu”. Mas tu, meu filho, dizes: “O que é meu é teu; e o que é teu é meu”. E isto, segundo a Mishná, são as palavras do excêntrico, do estranho entre os homens. Acho que vais sofrer muito, filho.
Nosso pai tinha razão. Fez o que pôde para salvar Mayer Guinzburg, o Capitão Birobidjan. Se não conseguiu, não foi culpa sua.
Eu era mais velho do que Mayer e mais ajuizado. Eu era bom filho. Eu casei cedo. Eu dei a meus pais muitos netos, todos inteligentes (Mayer — sempre desprezou seus sobrinhos). Mas Mayer Guinzburg... “O que é meu é teu, e o que é teu é meu.”
Um excêntrico.
Moacyr Scliar, in O exército de um homem só

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