Com
a Revolução Russa, Mayer Guinzburg ficou ainda mais revoltado —
continua Avram. — Acordava à noite gritando: “Às barricadas!”
Não me chamava de Avram, mas sim Companheiro Irmão; e dizia: o que
é meu é teu, o que é teu é meu — não há mais propriedade
privada. Resolveu que usaríamos até a mesma escova de dentes, e, de
fato, jogou fora a sua. Eu não quis contrariá-lo, mas deixei de
escovar os dentes: tive muitas cáries por causa disto. Estas coisas
todas faziam nosso pai sofrer muito. Nosso pai queria que Mayer fosse
rabino; à noite colocava diante do filho os livros sagrados. Mayer
abria-os de má vontade. Nosso pai incentivava-o com sábias
palavras: — Estuda, filho, estuda. Lembra-te que Rabi Iochanan ben
Zacai dizia: “ Foste criado para estudar a Torá.
Tonto
de sono, Mayer respondia: — Mas Simeon, filho de Rabi Gamaliel,
dizia: “ “Passei a vida entre sábios e nada achei de melhor do
que o silêncio. O essencial não é estudar, é fazer”.
Mayer
queria espicaçar; mas nosso pai não percebia; ao contrário,
encantava-se com a polêmica: — Simeon? Era inexperiente. Rabi
Gamaliel, seu pai, sabia o que estava dizendo quando recomendou:
“Procure um mestre”.. Eu sou o teu mestre, meu filho.
— Na
Guemara — contestava o perverso Mayer — está escrito: “Se o
discípulo percebe que seu mestre erra, deve corrigi-lo”.
A
testa de nosso pai vincava-se: — Em que estou errado, meu filho? —
Em me obrigar a estudar estas bobagens — gritava Mayer — quando
estou louco de sono! É um absurdo! — Na Guemara está escrito: —
respondia nosso pai docemente — “Se um grande homem disser uma
coisa que te pareça absurdo, não rias; tenta entendê-lo”. Eu
também estou com sono; e se fico aqui contigo é porque Rabi Hananiá
ben Teradion dizia: “Quando dois homens se reúnem para discutir a
Torá o Santo Espírito paira sobre eles”. Estamos com fome, é
certo. Mas o que importa? Está escrito: “Eis como vive o
estudioso: come uma côdea de pão com sal; bebe água moderadamente;
dorme no chão; suporta privações”. A maior riqueza é o estudo,
a religião.
— Não!
— gritava Mayer. — A maior riqueza é a posse dos meios de
produção, estás ouvindo? Estudo, religião! É bem como diz Marx:
a religião é o ópio dos povos! — Quem é este Marx? —
perguntava nosso pai, espantado. — E o que ele sabe da felicidade
dos homens? — Sabe tudo! Sabe que não deve haver fome, nem
injustiça. Não deve haver “meu” nem “teu”; deve ser: “O
que é meu é teu; o que é teu, é meu”.
Nosso
pai abanava tristemente a cabeça.
— Na
Mishná está escrito que há quatro tipos de homens: o vulgar diz:
“O que é meu é meu; o que é teu é teu”; o perverso diz: “O
que é meu é meu; e o que é teu também é meu”. Quanto a mim,
prefiro as palavras do homem santo, que diz: “O que é meu é teu;
e o que é teu é teu”. Mas tu, meu filho, dizes: “O que é meu é
teu; e o que é teu é meu”. E isto, segundo a Mishná, são as
palavras do excêntrico, do estranho entre os homens. Acho que vais
sofrer muito, filho.
Nosso
pai tinha razão. Fez o que pôde para salvar Mayer Guinzburg, o
Capitão Birobidjan. Se não conseguiu, não foi culpa sua.
Eu
era mais velho do que Mayer e mais ajuizado. Eu era bom filho. Eu
casei cedo. Eu dei a meus pais muitos netos, todos inteligentes
(Mayer — sempre desprezou seus sobrinhos). Mas Mayer Guinzburg...
“O que é meu é teu, e o que é teu é meu.”
Um
excêntrico.
Moacyr
Scliar, in O exército de um homem
só
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