Quando
eu era mais jovem do que sou agora, achava que era relativamente
simples escrever livros, e mesmo livros de boa qualidade. Eu
achava que não era necessário nada além de colecionar um bom
acervo de palavras da literatura clássica, encontrar algum tema pelo
qual se tenha algum apreço e então investir-se da postura de um
calmo amanuense e acrescentar uma folha escrita atrás da outra até
se chegar a um livro. E todos ficariam contentes.
Não
se trata de uma experiência insignificante, para alguém que
escolheu a tarefa de escrever livros como a coisa mais importante da
sua vida, descobrir que o livro é uma trapaça e que um livro jamais
poderá ser um bom livro a não ser que o fato de ser um livro seja
algo secundário. O livro é uma ilusão. Um indivíduo que escreve
livros não escreve livros.
A
gente deve conhecer tanto o espírito quanto o estilo da nossa língua
materna nas diversas fases de sua literatura, além de ser capaz de
ler fluentemente em algumas das principais línguas de cultura da
nossa época e, se possível, ser razoavelmente capaz de escrever
nestas mesmas línguas. De fato, estes são requisitos mínimos de
formação para alguém a quem se exige um conhecimento preciso das
palavras e das ideias, já que estas são a matéria-prima da sua
arte, são a sua madeira e a sua argila.
Gramáticos
e professores defendem amiúde nos jornais a importância de os
escritores dominarem a ortografia. Trata-se de uma verdade
incontestável. Os escritores deveriam não apenas dominar a
ortografia, mas sim dominar pelo menos três ou quatro ortografias
do seu idioma materno. Não é mais do que natural que um corredor
profissional possua três pares de tênis. Porém, não se deve
esquecer jamais que mesmo uma pessoa de pés descalços consegue ir
mais longe do que alguém com três pares de tênis.
Amiúde,
alguns energúmenos erguem sua voz para afirmar que o escritor deve
ser nacional e não internacional. Quanto a isso, não resta qualquer
dúvida, pois é um fato consumado que todos os bons escritores são
tanto nacionais quanto internacionais a um só tempo.
O
ser humano é – e, em especial, atualmente – pelo menos tão
internacional quanto as aves. Um bom livro que é escrito na China
também é escrito para a Islândia. Os idiomas são meramente
recipientes diferentes para pensamentos, ideias e ideais que são
atualmente mais internacionais do que em qualquer outro momento da
história da humanidade.
Ninguém
consegue se tornar um escritor razoável em nossa época, ou em
qualquer outra, salvo se se esforçar em aprender o que deve ser
aprendido no decorrer de uma vida breve visando fortalecer o
espírito, não importa se este aprendizado venha de Berlim, de
Londres, de Nova Iorque, de Moscou ou de Reiquiavique. O mundo é um
só e o homem existe no mundo.
Quanto
mais o autor se torna bitolado e faz profissão de fé do isolamento
e do ódio à humanidade, tanto mais distante estará de ser um
representante de seu tempo ou de qualquer tempo. Ele deve se deixar
inundar pela vida do mundo inteiro, do século inteiro, caso pretenda
infundir vida à sua obra.
Em
geral, temos pouquíssima ideia disso quando começamos a escrever
livros. Porém, quando menos se espera, nos damos conta de que o
livro é mera ilusão, e de que a missão do escritor é arcar com o
carma do seu século.
O
vocabulário de um autor maduro não consiste de paráfrases
cuidadosamente colhidas nos clássicos. Sua linguagem é, sim, o
resultado de um sério conflito interior, sendo um caso perdido
tentar explicar aos outros a natureza deste conflito.
Desconfio
que os autores maduros têm em
comum o fato de ver a forma como devem
coadunar seus pensamentos e o seu mundo em palavras, a cada novo
livro, como um problema eternamente insolúvel. Às vezes –
provavelmente na maioria das vezes – o autor resolve esta questão
dizendo aquilo que gostaria de dizer.
Por
detrás de uma única oração podem estar várias noites de vigília,
toda a batalha do escritor,
a expressão de todas as forças de que ele foi capaz de lançar mão.
E, no entanto, a frase
sai-lhe
torta. Porém, também pode ocorrer, e quando menos se espera, o
escritor dar com um novo tom, ainda que apenas com três palavras,
mais ou menos, um tom que é tão poderoso, tão robusto e tão sútil
ao mesmo tempo que todas as vozes […] Uma frase curta que talvez
encerre o segredo de uma vida inteira, de um século inteiro, de um
mundo inteiro:
“O
crux ave spes unica”
(“Salve
a cruz, nossa única esperança”);
“To
be or not to be: that is the question”
(“Ser
ou não ser, eis a questão”);
“Deyr
fé”
(“O
gado morre” [verso inicial das estrofes 76 e 77 do poema medieval
islandês Hávamál
(“O
Cantar do Altíssimo”): “Deyr fé, /deyja frændur, / deyr
sjálfur ið sama. / En orðstír / deyr aldregi / hveim er sér
góðan getur. // Deyr fé, / deyja frændur, / deyrsjálfur ið
sama. / Eg veit einn / að aldrei deyr: / dómur um dauðn hvern”.
(“Morre o gado / morrem os parentes / morre a gente mesmo. / Já a
reputação / não morre jamais / de quem boa a tem. // Morre o gado,
/ morrem os parentes, / morre a gente mesmo. / Mas de algo sei / que
não morre jamais: / o bom nome do morto”);
“Upp
upp mín sál”
(“Ao
alto, ao alto, minh’alma” [do verso inicial da invocação do
livro Passíusalmar
(“Salmos
da Paixão”) do poeta islandês Hallgrímur Pétursson (1614-74):
“Upp, upp mín sál og allt mitt geð, / upp mitt hjarta og rómur
með, / hugur og tunga hjálpi til, / herrans pínu ég minnast vil“
(“Ao alto, ao alto, minh’alma e toda a minha mente, / ao alto,
meu coração e minha voz candente, / que a mente e a língua possam
me ajudar, / pois a paixão do Senhor pretendo lembrar“);
“Ung
var ég gefin Njáli”
(“Jovem,
minha mão foi concedida a Njáll” [do capítulo 129 da
Brennu-Njáls
saga
(“Saga de Njáll, o Queimado”), saga de islandeses anônima do
século XII: “Eg
var ung gefin Njáli og hefi eg því heitið honum að eitt skyldi
ganga yfir okkur bæði” (“Jovem, minha mão foi concedida a
Njáll, a quem jurei que o mesmo destino seria partilhado por nós
ambos”.).
Poucos
jovens atenderiam ao chamado da literatura se soubessem o que lhes
aguarda. Eu, pelo menos, não o teria feito. Na vida do escritor
criativo não há dia santo nem de descanso, não há paz nem
tranquilidade, e a recompensa é ínfima. Mesmo com tudo isso, o
escritor não conta nem com uma mínima migalha de garantia de que
irá conseguir, no lapso da sua vida, realizar algo que chegue perto
de ser bem feito, o que dirá algo para além disso. Cem jovens
escritores começam suas carreiras com um talento semelhante, com uma
formação semelhante, sendo, porém, totalmente casual qual deles
irá criar uma obra que possa ser considerada razoável. Sempre me
parece algo absolutamente circunstancial quando alguém consegue
compor nem que seja uma única frase bem escrita.
O
que mais chama a atenção, porém, talvez seja o fato de que mesmo o
mais corriqueiro dos simplórios é capaz de pensar e de dizer do
nada coisas que os maiores escritores e gênios não foram capazes
nem de dizer nem de pensar, apesar de terem sacrificado toda a sua
vida a isso.
Halldór Laxness, escritor
islandês, ganhador do prêmio Nobel de Literatura