Passou-se
nos coloniais tempos, eu ainda antecedia a adolescência. A vida
decorria num tal Esturro, bairro cheio de vizinhança. Nesse
lugarinho, os portugueses punham sua existência a corar. Aqueles não
ascendiam a senhores, mesmo seus sonhos eram de pequena ambição. Se
exploravam era arredondando as alheias quinhentas. Se roubavam era
para nunca ficarem ricos. Os outros, os verdadeiros senhores, nem eu
sabia onde moravam. Com certeza, nem moravam. Morar é um verbo que
apenas se usa nos pobres.
Nós
morávamos nesse bairrinho de ruas poeirentas, onde o poente começava
mais cedo que no resto da cidade. Tudo decorria sem demais. Nosso
vizinho era a única, intrigante personagem: homem graúdo,
barbalhudo, voz de trovoada. Mas afável, de maneiras e requintes.
Lhe chamavam o Zé Paulão. O português trabalhava nos pesados
guindastes, em rudes alturas. Seu tipo era o de um galo de hasteada
crista, cobridor de vastas capoeiras. Mas vivendo totalmente sozinho.
Os homens se admiravam da sua sozinhidez, as mulheres maldiziam
aquele desperdício. Todos comentavam: homem tão humano, macho tão
dotado de machezas e vivendo apenas de si para si. Nem nunca se lhe
testemunhavam nenhumas companhias. Afinal, Deus não deu nozes a
ninguém, comentavam as mulheres.
Dele
se sabia apenas o condensado sumário: sua esposa fugira. Quais as
razões de se desconsumar um tal casamento ninguém sabia. Ela era a
tugazinha modesta, filha de lavradores muito campestres. Linda, de
despontante idade. Uma vez a vimos, saindo de casa, sustosamente
branca. Vinha pelo meio da avenida em certo e exposto perigo. Os
carros rangiam, derrapados. A branca moça não parecia nem ouvir.
Então, eu vi: a moça chorava, em aberto pranto. Meu pai estancou a
nossa viatura e lhe perguntou qual podia ser nossa valência. Mas a
mulher não ouvia, sonambulante. Decidiu meu pai escoltar a criatura,
protegendo-a dos perigos da avenida, até ela se perder no último
escuro. Só então confirmámos: a mulher saía de casa, em muito
definitiva partida.
Desse
momento em adiante, só a solidão aconchegou o Zé Paulão. O que se
semelhava, na pública vizinhança. Só nós sabíamos, porém, o
conteúdo da autêntica verdade. No quintal de trás, onde não se
punham os alheios olhos, nós víamos, cada vez em quando, roupas de
mulher se estendendo no sol. O Paulão, afinal, tinha seus esquemas.
Mas ficava em nós o nosso segredo. Minha família queria gozar,
exclusiva, aquela revelação. Os outros que sentissem pena do
solitário. Nós, sozinhos, conhecíamos as traseiras da realidade.
E
outro segredo nós guardávamos: de noite escutávamos os femininos
passos do outro lado da parede. Em casa de Zé Paulão, não havia
dúvida, tiquetaqueavam sapatos de tacão alto. Rodavam no quarto,
corredor e salas noturnas do vizinho.
— Grande
malandrão, este Paulão!
Minhas
tias autenticavam as malícias, riso por trás dos dentes, dentes por
trás das mãos. E se falava muito da misteriosa mulher: quem seria
que nunca se via entrar nem sair? Minha mãe apostava: consistiria em
dona alta, muito mais alta que o Paulão. Os passos pareciam antes de
uma gorda, contrafalava minha tia. Vai ver que é tão gorda que
não consegue passar a porta, brincava nosso pai. E ria:
— É
por isso que a gaja não sai nunca!
Eu
sonhava: a mulher seria a mais bela, tão bela e fina que só podia
circular de noite. Os olhos deste mundo não lhe mereciam. Ou seria
uma anja? O Paulão, lá nas alturas do guindaste, a tinha
desavisadamente pegado. Certo é que a misteriosa mulher do lado me
enchia os sonhos, me engelhava os lençóis e me fazia sair do corpo.
Uma
noite eu exercia a minha infância com as miudagens, brincando às
aventuras, heróis dos mais pistoleiros filmes. Subindo os telhados,
eu escapava de mortal perseguição, enganando as centenas de índios.
Em derradeiro instante, saltei para a varanda do vizinho Paulão.
Ainda senti as imaginárias setas me raspando a alma. Suspirei e
aproveitei para carregar a minha plástica pistola. Então, a luz se
acendeu no interior da casa. Me agachei, receando ser confundido com
um vulgar larápio. Apanhar uns sopapos do corpãozudo vizinho não
seria bom agrado. Me afundei no canto de um escuro. Nem via nem me
podia ser visto. Então, meus ouvidos se arrepiaram. Os tacões! A
tal misteriosa mulher devia rondar os anexos aposentos. Não pude
evitar espreitar. Foi quando vi as longas saias de uma mulher. Me
alertei todo: finalmente estava ali, ao alcance de um olhar, a mulher
de nossos mistérios. Estava ali aquela que dava tema aos meus
desejos. Que se lixassem os índios, que se danasse o Paulão. Me
cheguei mais para a luz, desafiando os preceitos da prudência.
Agora, se via a sala toda do vizinho. A fascinável dama estava de
costas. Não era afinal tão alta, nem tão gorda como as suposições
da minha família. De repente, a mulher se virou. Foi o baque, a
terra se abrindo num total abismo. Os olhos de Zé Paulão,
ornamentados de pinturas, me fitaram num relâmpago. A luz se apagou
e eu saltei daquela varanda com o coração hecatombando num
poscepício.
Voltei
a casa de cabeça desafinada. Me fechei no meu quartinho, manipulando
silêncios. Horas mais tarde, no retângulo do jantar, o tema voltou.
Nosso vizinho, esse eterno namorador, ainda há pouco lá andavam
os tacões. Era meu pai, inaugurando as más-línguas. Vocês
o que têm é inveja de não poderem fazer o mesmo, sentenciava minha
tia. E se riam, em concerto. Apenas eu me fiquei, calado em
deveres de tristeza.
Mais
tarde, quando todos dormiam na soltura do sono, ouvi os tacões
altos. Em meus olhos sobrou uma funda, inexplicável tristeza.
Chorava de quê, afinal? Minha mãe, em suspeitas que apenas as mães
são capazes, invadiu o quarto, enchendo-o de luz.
— Por
que choras, meu filho?
Então
anunciei o falecimento de incerta moça que eu amara muito. Ela se
retirara de minha esperança, traindo-me com um homem da vizinhança.
Minha mãe se fingiu, em seu umbilical condão. E sorriu estranhas
suspeições. Me ternurou seus dedos em meus cabelos e disse:
— Deixa,
amanhã mudas para outro quarto, nunca mais vais escutar esses
sapatos…
Mia
Couto, in
Estórias abensonhadas
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