terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Cinzas (trecho final)

[...] Sentou-se junto ao Lobo. Suas pernas ficaram balançando no ancoradouro. A única coisa que nele se movia era o cigarro apagado, que ia de um canto para outro da boca. Tinha se levantado da mesa depois de ter provado uns bocados. Quanto tempo fazia que ele tinha perdido o prazer de desfrutar de uma refeição? Quanto tempo fazia que ela já não sentia vontade de preparar para ele frango à calabresa ou ravioles caseiros? Quanto tempo fazia que a vida perigosa e o dinheiro tinham terminado?
Veja esta noite tão estranha – disse a Galega.
Colou-se a ele e agarrou em seu braço.
Cheiro coisa feia, homem. Vem coisa ruim. Vamos embora daqui. O que estamos esperando?
O Lobo não respondeu. Então ela perguntou pelo Colt. Tinha revirado a casa e não tinha encontrado o revólver.
Ele, com um puxão, se desvencilhou do seu braço.
Já sei. Você o vendeu – disse a Galega.
Ele se levantou. Ela se pôs na sua frente. – Você vai me contar – disse ela.
Ele a empurrou para o lado e ela o perseguiu, aos tropeções, segurando-o pela camisa e golpeando-lhe o peito.
Você está doente, Lobo. Está louco. O que estamos esperando? Que venham matar-nos? Eu já não posso viver assim. Porque eu, agora, eu... Quero que você saiba que...
Lobo cuspiu o cigarro e disse:
Reze. Se quiser, ou lembrar.
Ela deu um passo para trás e seus olhos brilharam:
Você já não tem grandeza nenhuma, nem para se gabar, Lobo.
Com a mão aberta, ele deu um tapa no rosto dela.

O riacho carregava uma água barrenta em direção ao rio aberto. A maré estava subindo.
O matador, escondido atrás dos juncos, estava com o dedo no gatilho do fuzil. Tinha amarrado seu barco na entrada de um canal e se aproximou, rodeando a ilha pelo lado de trás. Estava perto dos acossados. De onde estava, apesar de estar escuro e dos salgueiros, dava para ver bem os dois. Sempre pensara que matá-los de longe não teria graça. “Meu corpo é do tamanho do caixão desse homem”, tinha pensado sempre, “e o corpo dele tem o tamanho do meu”. Também sempre soube que era preciso matar a Galega, para que o Lobo morresse de verdade. Uma ou outra vez nas perseguições que o levaram a cidades e praias distantes, pensou que não seria má ideia amarrá-los cara a cara, levá-los para o barco e jogá-los no mar, para que tivessem o tempo suficiente de, atados um ao outro, odiarem-se até o fundo da alma antes que a sede queimasse suas gargantas. Mas decidiu-se pelas balas. Ia precisar de muita bala para acabar com as sete vidas que eles tinham.
Agora estava à mão. Era fácil.
Levantou o fuzil e o apoiou ao longo do rosto.
Então, ouviu a discussão.
Viu o Lobo dar o tapa e a Galega cair no chão. Viu quando o Lobo caiu de joelhos. O Lobo apertou a cabeça entre as mãos. O matador pensou ouvi-lo gemer. O Lobo passou a mão no rosto da Galega, pegou água do rio e molhou seu rosto. A Galega não reagia.
Mas o matador não matou. Passou anos perseguindo-os, mas não os matou. Talvez porque, junto com o momento da morte, chegou a revelação de que o castigo não está na morte, mas no mal que sua sombra faz; talvez porque tenha percebido que acossar era o que dava sentido a seus próprios dias de perseguidor.
Abaixou o fuzil.

Alonso cruzou com o barco que voltava. Na escuridão, ainda conseguiu ver os ataúdes. O forasteiro remava em pé, como na viagem de ida, sem pressa. Alonso deteve seu bote e esperou com os remos no ar. O forasteiro não voltou a cabeça.
Não há nada que fazer”, pensou Alonso. Mas seguiu viagem rio acima. Não demorou a ver a ilha aparecendo como um castelo de árvores na neblina negra: havia alguma coisa nela, uma luminosidade fantasmagórica, que gelava o sangue.
Alonso não escutou quando a Galega disse ao Lobo:
Não voltarei. Não estou esquecendo nada aqui.
A Galega estava em pé no ancoradouro, com a mala ao lado, esperando. Sozinha.
Está vivo? – perguntou Alonso.
Sim – disse a Galega.
Alonso viu seu rosto machucado mas não perguntou nada mais. Colocou a mala no bote e ela se sentou, de frente para a proa.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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