quinta-feira, 2 de agosto de 2018

O dia da casa cair

Era fim de outubro, em ano resseco. Um cachorro soletrava, longe, um mesmo nome, sem sentido. E ia, no alto do mato, a lentidão da lua.
Dona Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios, escutou aquela resposta, e não deu ar de seus pensamentos ao pobre camarada Quim. Mas muitos que eles eram, a rodar por lados contrários e a atormentar-lhe a cabeça, e ela estava cansada, pelo que, dali a pouco, teve vontade de chorar. E até a Mimita, que tinha só dez anos e já estava na cama, sorriu para dizer:
Eu gosto, minha mãe, de voltar para o Morro Azul...
E então Dona Dionóra enxugou os olhos e também sorriu, sem palavra para dizer. De voltar para o retiro, sem a companhia do marido, só tinha por que se alegrar. Sentia, pelo desdeixo. Mas até era bom sair do comércio, onde todo o mundo devia estar falando da desdita sua e do pouco-caso, que não merecia.
E ela conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a menina se importava.
Dela, Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda — no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul — ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. E sem efeito eram sempre as orações e promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo menos, até a meio caminho direito.
Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai pancrácio.
E ela, Dionóra, tivera culpa, por haver contrariado e desafiado a família toda, para se casar.
Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dividas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca.
Dionóra amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais. Agora, porém, tinha aparecido outro. Não, só de pôr aquilo na ideia, já sentia medo... Por si e pela filha... Um medo imenso.
Se fosse, se aceitasse de ir com o outro, Nhô Augusto era capaz de matá-la. Para isso, sim, ele prestava muito. Matava, mesmo, como dera conta do homem da foice, pago por vingança de algum ofendido. Mas, quem sabe se não era melhor se entregar à sina, com a proteção de Deus, se não fosse pecado... Fechar os olhos.
E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E tinha uma força grande, de amor calado, e uma paciência quente, cantada, para chamar pelo seu nome: ...Dionóra...
Dionóra, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém não toma vocês de mim!...” Bom... Como um sonho... Como um sono...
Dormiu.
E, assim, mal madrugadinha escassa, partiram as duas — Dona Dionóra, no cavalo de silhão, e a Mimita, mofina e franzi na, carregada à frente da sela do camarada Quim.
Pernoitaram no Pau Alto, no sítio de um tio nervoso, que riscava a mesa com as unhas e não se cansava de resmungar:
Fosse eu, fosse eu... Uma filha custa sangue, filha é o que tem de mais valia...
Sorte minha, meu tio...
Sorte nunca é de um só, é de dois, é de todos... Sorte nasce cada manhã, e já está velha ao meio-dia...
Culpa eu tive, meu tio...
Quem não tem, quem não teve? Culpa muita, minha filha... Mãe do Nhô Augusto morreu, com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era p’ra chefe de família... Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...
De manhã, com o sol nascendo, retomaram a andadura. E, quando o sol esteve mais dono de tudo, e a poeira era mais seca, Mimita começou a gemer, com uma dor de pontada, e pedia água. E, depois, com um sorriso tristinho, perguntava: — Por que é que o pai não gosta de nós, mãe?
E o Quim Recadeiro ficava a bater a cabeça, vez e vez, com muita circunspecção tola, em universal assentimento.
Mas, na passagem do brechão do Bugre, lá estava seu Ovídio Moura, que tinha sabido, decerto, dessa viagem de regresso.
Dionóra, você vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo, e nunca mais você há-de me ver!
Mas Dona Dionóra foi tão pronta, que ele mesmo se espantou.
Nhô Augusto é capaz de matar a gente, seu Ovídio... Mas eu vou com o senhor, e fico, enquanto Deus nos proteger...
Seu Ovídio pegou a menina do colo do Quim, que nada escutara ou entendera e passou a cavalgar bem atrás. E, quando chegaram no pilão-d’água do Mendonça, onde tem uma encruzilhada, e o camarada viu que os outros iam tomando o caminho da direita, estugou o cavalo e ainda gritou, para corrigir:
Volta para trás, minha patroa, que o caminho por aí é outro!
Mas seu Ovídio se virou, positivo:
Volta você, e fala com o seu patrão que Siá Dona Dionóra não quer viver mais com ele, e que ela de agora por diante vai viver comigo, com o querer dos meus parentes todos e com a bênção de Deus!
Quim Recadeiro, no primeiro passo, ainda levou a mão ao chapéu de palha, cumprimentando:
Pois sim, seu Ovídio... Eu dou o recado...
Ficou parado, limpando suor dos cabelos, sem se resolver. Mas, fim no fim, num achamento, se retesou nos estribos, e gritou: — Homem sujo!... Tomara que uma coruja ache graça na tua porta!...
Jogou fora, e cuspiu em cima. E tocou para trás, em galope doido, dando poeira ao vento. Ia dizer a Nhô Augusto que a casa estava caindo.
Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremotos, é um dia de chegada infalível, — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora. E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da porta da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há para se receber uma surpresa má.
Guimarães Rosa, in A hora e a vez de Augusto Matraga

Nenhum comentário:

Postar um comentário