Era fim de outubro,
em ano resseco. Um cachorro soletrava, longe, um mesmo nome, sem
sentido. E ia, no alto do mato, a lentidão da lua.
Dona Dionóra, que
tinha belos cabelos e olhos sérios, escutou aquela resposta, e não
deu ar de seus pensamentos ao pobre camarada Quim. Mas muitos que
eles eram, a rodar por lados contrários e a atormentar-lhe a cabeça,
e ela estava cansada, pelo que, dali a pouco, teve vontade de chorar.
E até a Mimita, que tinha só dez anos e já estava na cama, sorriu
para dizer:
— Eu gosto, minha
mãe, de voltar para o Morro Azul...
E então Dona
Dionóra enxugou os olhos e também sorriu, sem palavra para dizer.
De voltar para o retiro, sem a companhia do marido, só tinha por que
se alegrar. Sentia, pelo desdeixo. Mas até era bom sair do comércio,
onde todo o mundo devia estar falando da desdita sua e do pouco-caso,
que não merecia.
E ela conhecia e
temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como
um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a
menina se importava.
Dela, Dionóra,
gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais,
sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de
pior. Na fazenda — no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro
do Morro Azul — ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo
do truque e as caçadas. E sem efeito eram sempre as orações e
promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo menos, até a meio
caminho direito.
Fora assim desde
menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai
pancrácio.
E ela, Dionóra,
tivera culpa, por haver contrariado e desafiado a família toda, para
se casar.
Agora, com a morte
do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais
estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com
dividas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as
terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer
ânsia por diante, sem portas, como parede branca.
Dionóra amara-o
três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais.
Agora, porém, tinha aparecido outro. Não, só de pôr aquilo na
ideia, já sentia medo... Por si e pela filha... Um medo imenso.
Se fosse, se
aceitasse de ir com o outro, Nhô Augusto era capaz de matá-la. Para
isso, sim, ele prestava muito. Matava, mesmo, como dera conta do
homem da foice, pago por vingança de algum ofendido. Mas, quem sabe
se não era melhor se entregar à sina, com a proteção de Deus, se
não fosse pecado... Fechar os olhos.
E o outro era
diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais
do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E
tinha uma força grande, de amor calado, e uma paciência quente,
cantada, para chamar pelo seu nome: ...Dionóra...
“Dionóra, vem
comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém não toma vocês de
mim!...” Bom... Como um sonho... Como um sono...
Dormiu.
E, assim, mal
madrugadinha escassa, partiram as duas — Dona Dionóra, no cavalo
de silhão, e a Mimita, mofina e franzi na, carregada à frente da
sela do camarada Quim.
Pernoitaram no Pau
Alto, no sítio de um tio nervoso, que riscava a mesa com as unhas e
não se cansava de resmungar:
— Fosse eu, fosse
eu... Uma filha custa sangue, filha é o que tem de mais valia...
— Sorte minha,
meu tio...
— Sorte nunca é
de um só, é de dois, é de todos... Sorte nasce cada manhã, e já
está velha ao meio-dia...
— Culpa eu tive,
meu tio...
— Quem não tem,
quem não teve? Culpa muita, minha filha... Mãe do Nhô Augusto
morreu, com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era p’ra
chefe de família... Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um
tio era criminoso, de mais de uma morte, que vivia escondido, lá no
Saco-da-Embira... Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o
menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e
ladainha...
De manhã, com o
sol nascendo, retomaram a andadura. E, quando o sol esteve mais dono
de tudo, e a poeira era mais seca, Mimita começou a gemer, com uma
dor de pontada, e pedia água. E, depois, com um sorriso tristinho,
perguntava: — Por que é que o pai não gosta de nós, mãe?
E o Quim Recadeiro
ficava a bater a cabeça, vez e vez, com muita circunspecção tola,
em universal assentimento.
Mas, na passagem do
brechão do Bugre, lá estava seu Ovídio Moura, que tinha sabido,
decerto, dessa viagem de regresso.
— Dionóra, você
vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo, e nunca mais você
há-de me ver!
Mas Dona Dionóra
foi tão pronta, que ele mesmo se espantou.
— Nhô Augusto é
capaz de matar a gente, seu Ovídio... Mas eu vou com o senhor, e
fico, enquanto Deus nos proteger...
Seu Ovídio pegou a
menina do colo do Quim, que nada escutara ou entendera e passou a
cavalgar bem atrás. E, quando chegaram no pilão-d’água do
Mendonça, onde tem uma encruzilhada, e o camarada viu que os outros
iam tomando o caminho da direita, estugou o cavalo e ainda gritou,
para corrigir:
— Volta para
trás, minha patroa, que o caminho por aí é outro!
Mas seu Ovídio se
virou, positivo:
— Volta você, e
fala com o seu patrão que Siá Dona Dionóra não quer viver mais
com ele, e que ela de agora por diante vai viver comigo, com o querer
dos meus parentes todos e com a bênção de Deus!
Quim Recadeiro, no
primeiro passo, ainda levou a mão ao chapéu de palha,
cumprimentando:
— Pois sim, seu
Ovídio... Eu dou o recado...
Ficou parado,
limpando suor dos cabelos, sem se resolver. Mas, fim no fim, num
achamento, se retesou nos estribos, e gritou: — Homem sujo!...
Tomara que uma coruja ache graça na tua porta!...
Jogou fora, e
cuspiu em cima. E tocou para trás, em galope doido, dando poeira ao
vento. Ia dizer a Nhô Augusto que a casa estava caindo.
Quando chega o dia
da casa cair — que, com ou sem terremotos, é um dia de chegada
infalível, — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor
de fora. E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer.
Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da porta da
rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar
que há para se receber uma surpresa má.
Guimarães Rosa,
in A hora e a vez de Augusto Matraga
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