sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Garranchos [VII]

Eu tinha deixado a cidade na agonia da luz elétrica e noctivagava estrada em fora. Passei as águas verdes e podres do velho açude, passei a padaria Mog e caminhei ainda.
Mas ao enfrentar a casa dos mortos, branca na treva, tolheu-me os passos uma visão: era uma procissão de almas que se iam, enchendo o caminho de espanto e de medo! Fiquei branco com elas; as pernas tremiam-me como tenros galhos que o vento açoitasse; os cabelos encrisparam-se-me. Estive quase a pedir socorro! Mas ninguém me valeria, porque só almas me rodeavam...
Depois uma que me ficara perto falou:
O senhor vota no governo, pois não vota? Então vai fazer-me um grande favor. Fui eleitor também. Votava na chapa oficial. Ora o senhor me vai levar um recado lá para a rua. Está vendo? Depois que o portão caiu, os companheiros deixaram-me só! Vão-se sem mais aquelas, sem licença de ninguém. De tantos habitantes desta casa imensa, já poucos restam. Eu gosto de cumprir ordens. Fui militar. Um dia, por uma simples infração, mandaram-me ao xadrez, quinze dias, a pão e água! Depois deste castigo, nunca mais desobedeci. Ninguém nos disse ainda que nós podíamos ir; por isso continuo no meu posto. É certo que arrancaram o portão, mas nada nos disseram... Vê o senhor? Aquilo ali faz dó! Os cães invadem-nos os leitos, os porcos chafurdam tudo, as galinhas nos martirizam remexendo a terra que nos cobre, à cata de alimentos. É uma invasão danada! A vida aqui vai se tornando insuportável! Os outros fogem apavorados! Parece até que me julgam alguma autoridade aqui, porque saem às escondidas. Mas eu fico, todo cheio de aflições. O senhor parece ter bom coração, porque está com os olhos cheios d’água. Quando chegar à rua, vá ao palacete da águia e faça-me o favor de dizer tudo isto ao governo e pedir-lhe que mande um portão para cá. Do contrário isto ficará às moscas.
É certo que não fui pessoalmente à intendência; mas creio que reproduzindo aqui, textualmente, as palavras que ouvi à alma, satisfaço-lhe o pedido.
Graciliano Ramos, in Garranchos

Nenhum comentário:

Postar um comentário