quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Capítulo 6: Ele foi procurar o juiz Thatcher – Huck decide partir – Pensando sobre tudo – Economia política – Agitando por todos os lados

Bem, logo, logo o velho tava de pé e andando por tudo de novo, e então ele foi procurar o juiz Thatcher no tribunal pra obrigar o juiz a entregar o dinheiro, e ele também procurou por mim porque não parei de ir pra escola. Ele me pegou algumas vezes e me surrou, mas continuei indo pra escola do mesmo jeito, e eu fugia ou corria mais do que ele, no mais das vezes. Antes eu não queria muito ir pra escola, mas acho que agora eu ia pra fazer pirraça com o papai. Aquele julgamento no tribunal era um negócio lento; parecia que eles nunca iam começar; assim, de vez em quando, eu arrumava emprestados dois ou três dólares do juiz pro papai, pra não levar uma surra. Toda vez que pegava algum dinheiro, ele ficava bêbado; e toda vez que ficava bêbado, ele armava uma confusão na cidade; e toda vez que armava confusão, ele acabava preso. Ele simplesmente tinha nascido pra essas coisas – esse tipo de confusão era bem a cara dele.
Ele passou a rondar demais a casa da viúva, por isso ela acabou falando que, se ele não parasse de andar por ali, ela ia arrumar encrenca pra ele. Bem, ele não era louco? Disse que ia mostrar quem era o dono de Huck Finn. Então, ele ficou à minha espreita um dia na primavera, e me pegou e levou num bote rio acima, uns cinco quilômetros, e cruzou o rio até a margem de Illinois, onde tinha muita árvore e nenhuma casa a não ser uma velha cabana de toras, num lugar onde a mata era tão fechada que ninguém podia ver a cabana, se não sabia onde ela ficava.
Ele me mantinha perto dele o tempo todo, e eu não tinha chance de sair correndo. A gente vivia naquela velha cabana, e de noite ele sempre trancava a porta e colocava a chave embaixo da cabeça. Ele tava com uma espingarda que tinha roubado, acho eu, e a gente pescava e caçava, e era disso que a gente vivia. De tempos em tempos, ele me trancava na cabana e ia até o armazém, cinco quilômetros até as barcas, e trocava peixe e caça por uísque, levava a bebida pra casa, se embebedava e se divertia, e me dava uma surra. A viúva ela logo descobriu onde eu tava e mandou um homem pra tentar me pegar, mas papai enxotou ele com a espingarda, e não levou muito tempo pra eu me acostumar a viver ali onde tava, e eu gostava daquela vida, de tudo menos a parte das surras.
Era meio preguiçoso e bastante divertido ficar deitado bem à vontade o dia todo, fumando e pescando, sem livros nem estudo. Dois meses ou mais se passaram, e as minhas roupas ficaram todas rasgadas e sujas, e eu não entendia como é que eu tinha chegado a gostar tanto da casa da viúva, onde eu tinha que me lavar, e comer no prato, e pentear o cabelo, e ir pra cama e levantar na hora certa, sempre me chateando com um livro, e a velha srta. Watson sempre me espiando o tempo todo. Eu não queria voltar nunca mais. Tinha parado de rogar praga porque a viúva não gostava, mas agora eu tinha voltado a praguejar, porque papai não tinha nada contra. Pensando bem, foram uns tempos bem bons ali na mata.
Mas em pouco tempo papai ficou jeitoso demais com a vara de nogueira, e eu não tava aguentando. Tava cheio de vergões por todo o corpo. Ele passou a sair muito também, a me deixar trancado na cabina. Uma vez ele me trancou e sumiu por três dias. A solidão foi terrível. Achei que ele tinha se afogado e que eu nunca mais ia conseguir sair dali. Tava apavorado. Decidi que ia dar um jeito de fugir. Eu tinha tentado sair daquela cabana muitas vezes, mas não conseguia achar jeito de escapar. Não tinha nenhuma janela bem grande por onde um cachorro conseguisse passar. Eu não podia subir pela chaminé, era estreita demais. A porta tinha umas tábuas de carvalho sólidas e grossas. Papai tomava muito cuidado pra não deixar uma faca ou qualquer coisa na cabana quando ele tava fora. Acho que eu já tinha revirado o lugar umas cem vezes. Bem, eu ficava um tempão vasculhando a cabana, porque era quase que a única maneira de matar o tempo. Mas desta vez finalmente encontrei uma coisa: achei uma velha serra enferrujada sem o cabo; tava enfiada entre um caibro e as madeiras do telhado. Engraxei a serra e pus mãos à obra. Tinha uma velha manta de cavalo pregada contra as toras bem no fundo da cabana atrás da mesa, pra não deixar o vento soprar pelas frestas e apagar a vela. Fui pra baixo da mesa, levantei a manta e comecei a serrar uma parte da grande tora de baixo, um buraco grande pra eu poder passar. Bem, era um trabalho demorado, mas eu tava chegando perto do fim quando ouvi a espingarda de papai na mata. Dei um sumiço nos sinais do meu trabalho, deixei cair a manta e escondi a serra; pouco depois, papai entrou.
Papai não tava de bom humor – ou seja, tava em seu estado natural. Disse que foi na cidade e que tudo tinha dado errado. O seu advogado disse que achava que ia ganhar a ação e conseguir o dinheiro, se começassem o julgamento, mas tinha muitos jeitos de adiar a ação por bastante tempo, e o juiz Thatcher sabia como fazer isso. E disse que as pessoas falavam que ia ter outro julgamento pra me separar dele e me mandar pra viúva, minha guardiã, e elas achavam que ia dar certo dessa vez. Isso foi um choque e tanto, porque eu não queria mais voltar pra casa da viúva e viver tão esturricado e civilizado, como diziam. Então o velho passou a praguejar e rogou praga pra tudo e pra todos que passavam pela sua cabeça, e aí praguejou contra todos de novo pra ter certeza que não tinha pulado ninguém, e depois disso arrematou com uma espécie de praga geral pra todo mundo, inclusive um monte de gente de quem não sabia o nome, e assim chamava fulano não-sei-das-quantas quando chegava na vez delas, e seguia rogando suas pragas.
Ele disse que queria ver a viúva me ganhar. Disse que ia ficar à espreita e, se tentassem pregar uma peça dessas nele, ele sabia de um lugar a uns nove ou onze quilômetros pra me esconder, onde podiam me procurar até morrer que não iam conseguir me achar. Isso me deixou bem preocupado de novo, mas só por um minuto, porque eu achava que não ia mais estar por perto quando isso fosse acontecer.
O velho me mandou ir até o bote buscar as coisas que ele tinha conseguido. Tinha um saco de vinte e dois quilos de milho, um pedaço de toicinho, munição, um jarro de quatro galões de uísque, um livro velho e dois jornais para servir de bucha, além de um pouco de estopa. Carreguei uma parte lá pra cima, voltei e me sentei na proa do bote pra descansar. Fiquei pensando em tudo e imaginei dar no pé com a espingarda e algumas linhas, e entrar na mata na hora de fugir. Pensei em não parar num só lugar, mas sair andando pelo campo, em geral de noite, e caçar e pescar pra me manter vivo, e assim ir pra tão longe que nem o velho nem a viúva iam conseguir me encontrar. Pensei em fazer o buraco com a serra e partir naquela noite, se papai ficasse bastante bêbado, e eu achava que ele ia ficar. Tava tão cheio desses pensamentos que não percebi quanto tempo passei ali, até que o velho gritou e perguntou se eu tava dormindo ou afogado.
Carreguei todas as coisas pra cabana, e então já tava quase escuro. Enquanto eu cozinhava o jantar, o velho tomou um ou dois tragos e meio que se animou, e começou a esbravejar de novo. Ele tinha andado bêbado pela cidade e passado a noite caído na sarjeta, tava uma figura e tanto de se olhar. Alguém podia pensar que ele era Adão, porque tava que era barro puro. Toda vez que a bebida começava a fazer efeito, ele quase sempre atacava o governo. Desta vez, disse:
E chamam isso de governo! Ora, é só olhar e ver como é. Aqui tá uma lei pronta pra arrancar o filho de um homem – o próprio filho de um homem, que ele teve todo o trabalho e toda a ansiedade e todos os gasto pra criar. Sim, quando esse homem conseguiu criar finalmente esse filho, e ele agora tá pronto pra trabalhar e começar a fazer alguma coisa pelo pai e dar um descanso pra ele, aí a lei sem mais nem menos ataca o pai. E eles chamam isso de governo! E não é tudo, inda não. A lei defende esse velho juiz Thatcher e ajuda ele a me manter longe da minha propriedade. Isso é o que a lei faz. A lei pega um homem que vale seis mil dólares e até mais, e tranca ele numa velha cabana estropiada como essa, e deixa ele andar com roupas que não servem prum porco. Chamam isso de governo! Um homem não pode ter seus direitos num governo desses. Às vezes fico pensando muito em sair do país pra sempre. Sim, e isso eu disse pra eles, disse tudo isso na cara do velho Thatcher. Muitos escutaram e podem contar por aí o que eu disse. Disse eu, por dez centavos vô deixar este maldito país e nunca mais vô chegar nem perto dele. Foram estas as palavras. Disse, olha o meu chapéu – se é que dá pra chamar isso de chapéu –, a aba levanta e o resto baixa até cobrir o meu queixo, e então já não é mais um chapéu na verdade, mais parece como se a minha cabeça tivesse sido enfiada no joelho do cano do fogão. Olhem aqui, disse eu – um chapéu desses pra eu usar – um dos homens mais ricos dessa cidade, se eu tivesse os meus direitos.
Oh, sim, este é um governo maravilhoso, maravilhoso. Ora, olha aqui. Tinha um preto liberto ali, de Ohio, um mulato, quase tão branco como um branco. Ele também tinha a camisa mais branca que ocê já viu e o chapéu mais brilhante; e num existia homem naquela cidade com roupa tão fina como a dele; e ele tinha um relógio e uma corrente de ouro, e uma bengala com um cabo de prata – o velho nababo grisalho mais terrível do estado. E que ocê acha? Eles diziam que ele era professor numa universidade, que sabia falar todo tipo de língua e conhecia tudo. E isso inda num é o pior. Diziam que ele podia votar quando tava em casa. Ora, isso soltô a minha língua. Pensei, o que vai acontecer com esse país? Era dia de eleição, e eu tava pronto pra sair e votar se a bebedeira deixasse eu chegar até lá; mas quando me contaram que num estado desse país eles deixam esse preto votar, eu caí fora. Disse que não vô votar nunca mais. Foram bem essas palavras que eu disse, todos me ouviram, e por mim o país pode apodrecer – nunca mais vô votar na minha vida. E ver o jeitão calmo daquele preto – ora, ele não ia me deixar passar se eu não empurrasse ele pra fora do caminho. Perguntei pras pessoas, por que esse preto não é leiloado e vendido? – isso é que eu quero saber. E que ocê acha que elas disseram? Ora, disseram que ele só podia ser vendido depois de passar seis meses no estado, e ele inda não andava por ali todo esse tempo. Aí, ora – isso é esquisito. Chamam isso de governo, não podem vender um preto liberto se ele não ficar seis meses no estado. Aí tá um governo que se chama de governo, e finge ser governo, e pensa que é governo e mesmo assim tem que ficar parado seis mês inteiro antes de pôr as mãos num preto liberto de camisa branca, infernal, ladrão, rondando pra atacar, e...”
Papai continuava falando tanto que não via pra onde tava sendo carregado pelas velhas pernas, assim é que caiu de pernas pro ar na tina de carne de porco salgada e esfolou as duas canelas, e o resto das suas palavras foi todo com a linguagem mais apimentada – a maior parte atirada contra o preto e o governo, apesar de também investir contra as tinas, durante o longo discurso, aqui e ali. Ele pulou bastante pela cabana, primeiro numa perna e depois na outra, segurando primeiro uma canela e depois a outra, e no final atirou de repente o pé esquerdo pra frente e acertou um chute na tina com tanta força que ela chegou a balançar. Mas não foi de bom alvitre, porque essa era a bota que tinha alguns dos dedos do pé aparecendo na ponta; por isso, ele deu um uivo que fez todo mundo se arrepiar, caiu na poeira e rolou ali, segurando os dedos dos pés; e as pragas que rogou então tavam acima de tudo o que já tinha dito antes. Ele mesmo disse isso, mais tarde. Ele tinha escutado o velho Sowberry Hagan nos seus melhores dias e disse que as suas pragas tavam muito acima das do velho, também, mas acho que era um exagero, talvez.
Depois do jantar, papai pegou o jarro, disse que tinha ali bastante uísque pra duas bebedeiras e um delirium tremens. Era sempre o que dizia. Achei que ele ia ficar bêbado de cair em uma hora mais ou menos, e então eu roubava a chave, ou dava um jeito de sair, de uma ou outra maneira. Ele bebeu e bebeu, e caiu sobre os cobertores em pouco tempo, mas a sorte não tava do meu lado. Ele não dormiu profundamente, mas continuou inquieto. Ele gemeu, choramingou e se debateu de um lado pro outro durante muito tempo. No final me deu tanto sono que eu não conseguia ficar de olho aberto, por mais que tentasse, e antes de me dar conta já tava num sono profundo, e a vela ardendo.
Não sei quanto tempo dormi, mas de repente escutei um grito terrível e me levantei. Era o papai, com um ar de louco, pulando pra todos os lados e gritando alguma coisa sobre cobras. Ele disse que elas tavam subindo pelas suas pernas, e então ele dava um pulo e gritava, dizendo que uma tinha picado a sua cara – mas eu não via nenhuma cobra. Ele começou a correr pela cabana gritando: “Tira esse bicho! Tira esse bicho! Tá me picando o pescoço!”. Nunca vi um homem de olhos tão malucos. Pouco depois ele tava sem forças e caiu ofegante; rolou no chão mais de uma vez, muito rápido, chutando as coisas de um lado e de outro, e batendo e agarrando o ar com as mãos, e gritando e dizendo que tava nas garras dos diabos. Cansou em pouco tempo e ficou quieto por alguns minutos, choramingando. Depois ficou ainda mais quieto e não fez mais nenhum ruído. Eu escutava as corujas e os lobos, bem longe na mata, e tudo parecia terrível de tão quieto. Ele tava deitado num canto. Dali a pouco levantou parte do corpo e prestou atenção, com a cabeça prum lado. Disse muito baixo:
Tum, tum, tum, são os mortos, tum, tum, tum, tão vindo me pegar, mas não vô... Oh! Tão aqui! Não me toca... tira as mãos... tão frias, solta... Oh, deixa em paz um pobre-diabo!
Aí ele caiu de quatro e engatinhou suplicando que deixassem ele em paz, se enrolou no cobertor e foi rolando pra baixo da velha mesa de pinho, inda suplicando, e depois começou a chorar. Eu podia escutar o choro dele através do cobertor.
Dali a pouco voltou a rolar e se levantou com um pulo, com ar de louco, e ele me vê e vem pra cima de mim. Ele me perseguiu dando várias voltas pelo lugar com um canivete grande, me chamando de Anjo da Morte e dizendo que ia me matar, assim eu não ia mais poder vir pra buscar ele. Supliquei e disse que era eu, o Huck, mas ele riu um riso muito estridente, e berrou e praguejou, e continuou me caçando. Uma hora, quando me virei um pouco e escapei debaixo do seu braço, ele avançou a mão e me pegou pelo casaco entre os ombros, e eu achei que tava ferrado, mas consegui tirar o casaco rápido como um raio e me salvei. Pouco depois ele tava exausto e se deixou cair com as costas contra a porta, e disse que ia descansar um minuto e aí me matava. Colocou o canivete embaixo dele, e disse que ia dormir e ficar forte, e aí ele ia mostrar quem era o bam-bam-bam.
Ele cochilou logo em seguida. E, depois de um tempo, peguei a velha cadeira de palhinha e subi do jeito mais fácil pra não fazer barulho e trouxe a espingarda pra baixo. Enfiei a vareta pelo cano pra ter certeza que tava carregada e então coloquei a arma sobre o barril de nabos, apontada na direção de papai, e me sentei atrás pra esperar ele se mexer. E o tempo então se arrastou lento e quieto.
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

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