Vaso com flores (1933), de Guignard
— Este seu
Guignard é falso ou verdadeiro? — perguntou-lhe o visitante,
coçando o queixo, de um modo ainda mais suspeitoso do que a
pergunta.
— Ora essa, por
que duvida?
— Eu não duvido
nada, só que existem por aí uns cinquenta quadros falsos de
Guignard, e então…
— Então o quê?
— Esse também
podia ser. Só isso.
— Pois não é,
não senhor. Qualquer um vê logo que se trata de Guignard autêntico,
Guignard da melhor época.
— Não ponho em
dúvida sua palavra, Deus me livre. Mas nunca se sabe se um quadro é
autêntico ou não. Nunca. Não há prova irrefutável.
— Mesmo que se
tenha visto o pintor trabalhando nele?
— Em geral, o
pintor não trabalha à vista dos outros. No máximo dá uma
pincelada, um toque. Até os retratos, não sabia? são feitos em
grande parte na ausência dos retratados. Todo artista tem um
auxiliar, espécie de primo pobre, que imita à perfeição a maneira
do mestre…
— Guignard tinha
alunos; e daí? Vai me dizer que os alunos pintavam e ele assinava?
— O senhor é que
parece estar insinuando isso. Eu digo apenas que assinatura pode ser
autêntica num quadro falso. Veja Picasso. Picasso assina falsos
Picassos por blague ou para ajudar pobres-diabos. Pode parecer
maluquice, mas para mim o pintor é o primeiro falsificador de sua
obra, ele se copia e manda os outros copiarem…
— Não diga uma
besteira dessas.
— Vejo que não
gostou. Natural, tem amor a seu Guignard, quer preservá-lo de
suspeitas. Pois, meu caro, o pintor, quando famoso, não chega para
as encomendas, e aí então é que assina apenas o que os outros
pintam para ele. Como foi ele que mandou pintar, a falsificação é
relativa, ou por outra, é endossada, fica sendo autoria. Pode se
distinguir entre a falsificação original e a falsificação falsa
mesmo, à revelia do autor.
— Nunca ouvi
tanta bobagem na minha vida.
— O senhor acha
que é bobagem? Bem, está no seu direito. Mas me diga só uma coisa:
viu Guignard pintar este quadro?
— Não, mesmo
porque quando comprei o quadro, ele já tinha morrido. Mas comprei de
uma pessoa que o comprou de Guignard.
— Está vendo? É
a tal coisa. O pintor morreu, não pode dar testemunho. A pessoa
afirma uma coisa, o senhor acredita, em sua boa-fé; e assim por
diante. Aí é que nunca mais se apura a verdade.
— Acho uma
impertinência de sua parte…
— Perdão. Eu
seria incapaz de duvidar de sua palavra e de sua inteligência.
Porque acredito nas duas é que estou lhe abrindo os olhos. Não ouso
pretender o título de seu amigo, mas a minha lealdade…
— …
— Porque leal eu
sou, mesmo para os desconhecidos. Faço questão. Fomos apresentados
há meia hora, na conversa calhou o senhor dizer que tinha um ótimo
Guignard, eu fiquei curioso de ver, o senhor me trouxe aqui… Não
foi?
— Foi.
— Pois então.
Fiquei com medo do senhor ter um falso Guignard, e preveni. Não há
razão para se queimar.
— Está bem.
— Talvez tenha
feito mal em alertá-lo. O senhor vai ficar preocupado, cismado. Não
desejo isso. Vamos fazer uma coisa? Para o senhor não se chatear, eu
compro o seu quadro, mesmo tendo as maiores dúvidas sobre a
autenticidade. Repare bem: a fluidez da pintura é demasiado fluida
para ser original… Um mestre nunca vai ao extremo de sua
potencialidade; deixa que os outros exacerbem sua maneira. Este
Guignard é tão leve, tão aéreo, que só mesmo de alguém muito
habilidoso, que procurasse ser mais Guignard do que o próprio
Guignard… Não há dúvida, para mim não é Guignard. Quanto quer
por isto?
— Quero que o
senhor vá para o inferno, sim?
Carlos Drummond
de Andrade, in 70 historinhas
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