Toda
essa liberdade que se pode reconhecer nos meus livros resulta
fundamentalmente da posição em que me coloco como um narrador
realmente onisciente, onipresente e que, de certa maneira, está
disposto a manipular tudo o que vem relacionado não só com a
narrativa propriamente dita, mas também com as ilusões do próprio
leitor. Imagino-me muito mais como alguém que está falando do que
como alguém que está escrevendo. Isso explica as digressões, as
interrupções, o deixar coisas em suspenso para retomá-las mais
adiante enquanto se introduz um comentário irônico de tipo
sociológico ou até político. Quando se chega ao final do livro,
capta-se a imagem de uma coerência completa, que não decorre de
nenhum esquema rígido prévio. Isso tem como resultado uma completa
liberdade no ato de escrever, que me permite introduzir no livro
situações que nunca teria sido capaz de imaginar antes de me pôr a
escrevê-lo e que surgem do próprio processo de criação do livro.
Quando eu digo que começo a ter dúvidas sobre se sou realmente um
romancista, não digo de brincadeira, digo muito sinceramente, porque
começo a compreender que o romancista é provavelmente algo
diferente do que eu sou. Sou uma espécie de poeta que vai
desenvolvendo uma ideia. Nos meus livros as coisas acontecem um pouco
como uma fuga musical. Há um tema que depois é sujeito a
tratamentos diferentes quanto a timbres e movimentos. Isso pode
ocorrer em algum de meus livros. Chega-se ao final da leitura com a
impressão de ter lido um longo poema.
José
Saramago, in As palavras de Saramago
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