Na
berma da floresta, Zero Madzero perfilou-se militarmente, bateu três
vezes com os pés no chão e, num gesto ríspido, projetou a mão de
encontro à cabeça. Ficou assim imóvel, mais rígido que pau de
cimbirre, como se esperasse uma voz de comando. Foi a mulher que o
descomandou:
— Que
se passa, marido, mordeu-lhe algum bicho?
— Não
vê que estou a fazer kukwenga?
— Fazer
o quê?
— Faço
continência.
Estava
saudando os sepultados, os que o antecederam. Ele era um Chikunda,
descendente de soldados e caçadores. Os Achikunda cumprimentavam-se
assim, de forma marcial, para se distinguirem dos outros povos, que
eles tinham por efeminados por não caçarem nem guerrearem.
Cumpridas
as saudações, Zero Madzero retirou do bolso uma porção de farinha
que espalhou junto a um tronco de embondeiro. Pediu a Mwadia que se
ajoelhasse junto com ele, fechou os olhos, bateu as mãos em concha e
falou em si-nhungwé:
“Peço-vos,
meus antepassados, que me concedam autorização para entrar nesta
floresta. Peço mais ainda que autorizem Mwadia, minha esposa, a me
acompanhar. Sendo mulher ela está interdita de entrar no bosque. Mas
o caso é demasiado imperativo. Agora, irei dormir na margem da
floresta, deitado sobre o último caminho. Amanhã regressarei para
confirmar se esta farinha foi deixada intacta como um sinal da vossa
permissão.”
Terminada
a prece, Zero Madzero se afastou para um recanto escuro e se alheou
da esposa. Adormeceu, enrolado sobre si mesmo. Mwadia passou a noite
em claro. De que valia dormir se ela não adormecia os sonhos?
Para
se distrair da insônia ela, primeiro, pensou rezar. Todos rezam para
pedir, ela rezaria para dar. Mas nenhuma palavra lhe ocorreu. Depois,
ainda cantarolou num murmúrio de voz, como um riacho na primeira
chuva. Mas de que servia cantar se a sua alma acabara ensurdecendo?
Convicta de que a sua morada não podia ser outra senão o silêncio,
Mwadia ergueu-se e pendurou a capulana num ramo. O ondear do pano a
embalou e ela, vencida pelo cansaço, entregou-se ao sono. Mas foi
escuro de pouca dura, pois logo o esposo a sacudiu:
— A
farinha está onde a deixei, vamos entrar na floresta!
O
dia estreava e o orvalho brilhava sobre o pêlo do burro como se o
bicho fosse coisa plantada, continuação de capins e seus perfumes.
Seguiram em direção ao rio, passo cauteloso, olhar atento, até que
começaram a chapinhar no chão saturado de água. O jumento Mbongolo
se apressou a beber, enquanto o pastor se abrigava na sombra de uma
frondosa mbawa. Contemplando a correnteza, Mwadia sentiu-se tomada
por um irreconhecível impulso que a fez entrar na água. A coberto
do rio, foi-se libertando das vestes. Lançou-as para a margem, peça
por peça, perante o olhar aterrado do marido. O convite dela o fazia
estremecer:
— Vá,
Madzero, se atire. Venha para a água!
A
mulher enlouquecera? Ali, na floresta dos antepassados, onde as
mulheres eram proibidas, ela se estava fazendo maior que o seu
tamanho? Mwadia ainda esperou, mas depois acabou saindo da água. Não
emergiu de corpo inteiro. Foi progredindo de gatas, como se o pudor a
impedisse de se exibir toda despida. O que ela fez, de seguida, foi
rolar-se na areia branca da margem.
— Você
está maluca, Mwadia?! Vista-se, mulher!
— Estou
vestida, marido. Estou vestida com a própria terra.
Mwadia
Malunga fez uma concha das mãos e recolheu água do rio. Depois, foi
derramando uns pingos sobre a pele. Assim, a sua nudez se revelava,
gota a gota, fresta a fresta. A terra a vestia, a água a despia.
Zero Madzero agitou os braços, em desespero, e desabafou:
— Não
posso ver isto. Você vai ser castigada sozinha!
O
homem virou costas e desandou pelo mato. Mwadia sorriu, triste. Ela
fora educada em cidade, na missão católica do Zimbabwe, perdera
alguns dos temores que mandavam em Zero. Recordou-se do tempo em que
ainda namorava, o marido respondia caloroso aos seus apelos. Ela se
despia e se deitava de lado na cama. O marido demorava-se na
contemplação do seu corpo:
— Você
está em fase de nua cheia, dizia ele, voz atabalhoada pelo
fervilhar da paixão.
Ela
fazia tenção de o tocar, mas ele ordenava que não se mexesse.
Mulher despida haveria que estar quieta. Se assim não fosse, o
desejo dele escapava, volátil como um perfume derramado. Mwadia
perguntava-se pela razão daquela exigência de imobilidade. Agora,
ela sabia. Zero Madzero sentia medo. Esse medo que os homens nutrem
das mulheres, desses antigos demônios que apenas o gesto feminino
pode soltar.
Mwadia
fechou os olhos e a si mesma se acariciou. E sonhou que as mãos que
percorriam o seu corpo eram as do burriqueiro, ante o olhar atento do
asno Mbongolo. Então, cumpriu-se o destino daquela terra de
miragens: o pastor a teve, toda ela um gemido na tempestade das suas
mãos. No final, o homem beijou-a como se faz nas cidades, nos
filmes, nos livros. Mwadia suspirou, em suave murmúrio:
— Eu
hoje estou muito eterna.
Mia
Couto, in O
outro pé da sereia
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