sábado, 19 de agosto de 2017

Ele encontrou a morte sozinho


Bateram na porta; mas ele não respondeu. Ouviu que continuaram batendo em todas as portas, acordando as pessoas. A correria de Fulgor — reconheceu os seus passos — até a porta grande se deteve um momento, como se tivesse intenção de tornar a bater na sua porta. Depois, a correria continuou.
Rumor de vozes. Arrastar de passos vagarosos como se carregassem algo pesado.
Ruídos vagos.
Veio à sua memória a morte de seu pai, também num amanhecer como aquele; embora naquela época a porta estivesse aberta e transluzia a cor acinzentada de um céu feito de cinzas, triste, do jeito que era. E uma mulher contendo o pranto, recostada contra a porta. Uma mãe de que ele já tinha se esquecido e esquecido muitas vezes, dizendo a ele: “Mataram o seu pai!” Com aquela voz quebrada, desfeita, unida apenas pelo fiapo do soluço.
Não quis nunca reviver essa lembrança porque trazia outras, como se rompesse um silo repleto e depois quisesse conter os grãos. A morte de seu pai que arrastou outras mortes e em cada uma delas estava sempre a imagem da cara despedaçada: um olho roto, olhando vingativo para o outro. E outro e outro mais, até que havia apagado essa imagem da memória quando já não houve mais ninguém que a recordasse.
Descansa ele aqui! Não, assim não. É preciso entrar com a cabeça para trás. Você! Está esperando o quê?
Tudo em voz baixa.
E ele?
Ele está dormindo. Não o acordem. Não façam barulho.
Lá estava ele, enorme, olhando a manobra de enfiar um vulto embrulhado em sacos velhos, amarrado com cordas de cânhamo como se estivesse sendo amortalhado.
Quem é? — perguntou.
Fulgor Sedano se aproximou e disse a ele:
É Miguel, dom Pedro.
O que foi que fizeram com ele? — gritou.
Esperava ouvir: “Mataram.” E já estava reunindo sua fúria, armando duras montanhas de rancor; mas ouviu as palavras suaves de Fulgor Sedano, que lhe diziam:
Ninguém fez nada com ele. Ele encontrou a morte sozinho.
Havia lamparinas de querosene azulando a noite.
... O cavalo matou-o — um deles se atreveu a dizer.
Foi estendido na cama, depois de terem jogado o colchão no chão, deixando as tábuas nuas onde acomodaram o corpo já desprendido das cordas com que vinha sendo puxado e arrastado. Colocaram suas mãos sobre o peito e taparam sua cara com um pano negro. “Parece maior do que era”, disse em segredo Fulgor Sedano.
Pedro Páramo tinha ficado sem expressão alguma, como se estivesse alheio ao redor. Seus pensamentos seguiam-se uns a outros sem se alcançar nem se juntar. No fim disse:
Estou começando a pagar. Mais vale começar cedo, para terminar logo.
Não sentiu dor.
Quando falou às pessoas reunidas no pátio para agradecer a companhia, abrindo passo para a voz através do pranto das mulheres, não cortou nem o suspirar de suas palavras. Depois se ouviu naquela noite apenas o campear dos cascos do potrinho alazão de Miguel Páramo na terra.
Amanhã você manda matar esse animal para que não continue sofrendo — ordenou a Fulgor Sedano.
Está bem, dom Pedro. Entendo. O coitado deve sentir-se desolado.
É o que eu também acho, Fulgor. E aproveita para dizer a essas mulheres que não armem tanto escândalo, é alvoroço demais para o meu morto. Se fosse delas, não chorariam com tanta vontade.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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