segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Dois retratos meus

Agora tinha nas mãos dois retratos meus: um, o autorretrato em versos burlescos, triste e angustiado como eu mesmo; o outro, frio e traçado com aparência de alta objetividade por um estranho, visto de fora para dentro e de cima para baixo, escrito por alguém que sabia mais, e, no entanto, também menos do que eu. E esses dois retratos, meu poema triste e balbuciante, e o inteligente estudo de mão desconhecida, ambos me causaram dor, ambos tinham razão, retratavam ambos sem rebuços minha desconsolada existência, ambos mostravam claramente o insuportável e insustentável da minha condição. Este Lobo da Estepe devia morrer, sua odiosa existência devia encontrar fim por suas próprias mãos ou havia de consumir-se no fogo mortal de uma continuada exposição de si mesmo; deveria transformar-se, tirar a máscara e defrontar-se com uma nova encarnação do seu eu. Ah, este processo não me era novo nem estranho, já o conhecia, já o havia experimentado em muitas ocasiões, algumas vezes em momentos de profundo desespero. Às vezes, o meu ser ficava reduzido a frangalhos com essas experiências destrutivas; às vezes as potências do abismo o despertavam e o destruíam; outras vezes, atraiçoava-me um período definido e particularmente adorado de minha vida e o perdia para sempre. Em certa ocasião, perdi minha condição burguesa juntamente com meus bens, e tive de aprender a renunciar à consideração daqueles que até então tiravam o chapéu diante de mim. De outra feita, minha vida familiar desmoronou-se da noite para o dia: minha mulher, atacada de loucura, expulsou-me do lar e do conforto; o amor e a confiança se converteram logo em ódio e em luta de morte; os vizinhos me olhavam cheios de compaixão e de desprezo. Foi aí que começou a minha solidão. E outra vez depois de alguns anos amargos e difíceis, depois de haver construído uma nova vida ascética e espiritual, de haver criado um ideal, numa severa solidão e penosa autodisciplina, depois de haver atingido certa tranquilidade e altivez, entregue à prática do pensamento abstrato e a uma meditação rigorosamente metódica, essa transformação vital também acabou por desabar, essa forma de vida perdeu num instante seu nobre e elevado sentido; arrastou-me de novo a viajar fatigantemente pelo mundo, amontoaram-se novas dores e novas culpas. E cada vez que arrancava uma máscara, que via ruir um ideal, cada um desses acontecimentos era precedido por um silêncio e um vazio cruéis, por um mortal isolamento e ausência de relações, um triste e sombrio inferno que agora de novo tinha de enfrentar. Não posso negar que após cada uma dessas comoções de minha vida no final sempre me restava algum proveito, um pouco mais de liberdade de espiritualidade, de profundidade, mas também de isolamento, de incompreensão, de frigidez. Vista do ângulo burguês, minha vida fora, de uma a outra dessas comoções, uma permanente descida, um afastamento cada vez maior do normal, do permitido, do são. Ao longo de alguns anos fiquei sem trabalho, sem família, sem lar; estava à margem de qualquer grupo social, sozinho, sem o amor de ninguém; inspirava suspeita a muitos, estava em contínuo e amargo conflito com a opinião e a moral públicas, e embora continuasse vivendo na esfera burguesa, era, todavia, por minha maneira de pensar e de sentir, um estranho neste mundo. Religião e pátria, família e Estado careciam de significação para mim e já nada me importava; a presunção da ciência, das profissões, das artes me causava asco; meus pontos de vista, meu gosto, todo o meu pensamento, com o que em outras épocas brilhara como homem bem conceituado, tudo estava agora abandonado e embrutecido e causava suspeita a muita gente. Se em todas as minhas dolorosas transmutações adquirira algo de indizível e imponderável, caro tivera de pagá-lo, e em cada uma delas minha vida se tornara mais dura, mais difícil, mais solitária e perigosa. Na verdade não tinha nenhum motivo para desejar a continuação deste caminho que me conduzia a atmosferas cada vez mais rarefeitas, semelhantes àquela fumaça da Canção de Outono, de Nietzsche. Ah, sim, já conhecia estes acontecimentos, essas transformações que o Destino reserva aos seus filhos diletos, aos mais difíceis de contentar; conhecia-os demasiadamente bem. Conhecia-os como um caçador diligente mas sem sorte conhece as etapas de uma caçada, como um velho jogador de Bolsa pode conhecer as etapas da especulação, do lucro, da insegurança, da insolvência, da bancarrota. Teria de voltar a sofrer tudo aquilo? Todo este tormento, toda essa extraviada necessidade, todos esses olhares de vileza e pouco valor do próprio eu, toda essa terrível angústia diante do sucumbir, todo esse temor da morte? Não era mais prudente e simples impedir a repetição de tanta dor e sair de cena? Certamente, era mais simples e razoável.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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