Ou
melhor, paisagens. Paisagens são feitas com campos, florestas,
montanhas, rios, mares, nuvens – “coisas” que existem fora de
nós, que os sentidos percebem e nós lhes damos nomes. As paisagens
da alma, entretanto, não são feitas de “coisas”. São feitas de
sentimentos. E os sentimentos, não temos como dizê-los, os sentidos
não conseguem fotografá-los. Então um artista que mora dentro da
gente, o tal de Inconsciente, lança mão de um artifício: ele veste
os sentimentos da paisagem de dentro com as coisas da paisagem de
fora. Um medo muito grande aparece como um precipício; o tédio se
parece com uma chuva persistente em meio a brumas... Vingança? Um
tigre... A perda de um amor? Um velório. E a experiência de
liberdade? Você nunca voou nos sonhos?... Desta forma, o “artista”
torna visíveis as paisagens da alma por meio de metáforas. O
“artista”, além de ser pintor é também poeta. Os sonhos são
efêmeras visões das paisagens da alma, as paisagens que fazem a
nossa pele do lado de dentro, o lado do coração. Quando a gente vê
uma paisagem de fora e se emociona, a emoção não vem da paisagem
de fora. Vem é da paisagem de dentro. Geralmente se pensa que a
função dos psicanalistas é curar doenças da alma. Não concordo.
Não sei se eles podem curar alguma coisa. O que acho é que eles são
os guias que nos levam a visitar as paisagens da alma que nós mesmos
desconhecemos. Bosques escuros, mares profundos, montanhas cobertas
de neve, campos floridos, cemitérios... Essa aventura não cura
nada. Ela nos conduz por experiência de tristeza e beleza. E isso
nos torna mais sábios. A sabedoria é uma forma de cura. Mas preciso
confessar que as trilhas mais fascinantes da minha alma, não foi a
minha psicanalista que me revelou. Foram os livros. Desses, o mais
extraordinário é A história sem fim, de Michael Ende. Tentaram
transformá-lo em filme. O filme ficou fantástico. Até vou vê-lo
com minhas netas. Mas muita coisa se perdeu no caminho do livro para
o cinema. O outro é Viagem a Ixtlan, as lições de feitiçaria do
bruxo D. Juan. É infinitamente
superior aos livros que se veem nas livrarias e que contam estórias
de mundos mágicos. Pena que não tenha sido reeditado. Quando me
mudei para um condomínio, a vizinhança inteira me sendo
desconhecida, tratei de me aproximar: distribuí alguns livros para
os vizinhos mais próximos, adultos, e estórias infantis para as
crianças. Deu resultado. Algumas crianças perceberam que gosto
delas, que gosto de brincar, e vêm me visitar. Estou no laptop
trabalhando e ouço um suave barulho na porta. Já sei! São eles.
Eles entram, conversamos e brincamos. Pela vontade deles, ficariam
horas na minha casa. Mas eu tenho que trabalhar. E digo a eles que é
hora de se irem, por causa do meu trabalho. Aí um deles, deve ter
uns oito anos, me fez uma pergunta: “Por que é que você não pede
ao seu chefe dois dias de folga?”. Respondi: “Porque o meu chefe
é terrível, me vigia o dia inteiro, me cobra as coisas que tenho de
fazer. Os olhos dele me vigiam dia e noite...”. Ele ficou assustado
que eu tivesse um chefe assim. Perguntou-me o seu nome. Inventei um
nome qualquer. Não podia dar o nome verdadeiro do meu chefe, que
seria Rubem Alves. Ele não entenderia.
Rubem
Alves, in
Do universo à jabuticaba
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