terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A alma é uma paisagem

Ou melhor, paisagens. Paisagens são feitas com campos, florestas, montanhas, rios, mares, nuvens – “coisas” que existem fora de nós, que os sentidos percebem e nós lhes damos nomes. As paisagens da alma, entretanto, não são feitas de “coisas”. São feitas de sentimentos. E os sentimentos, não temos como dizê-los, os sentidos não conseguem fotografá-los. Então um artista que mora dentro da gente, o tal de Inconsciente, lança mão de um artifício: ele veste os sentimentos da paisagem de dentro com as coisas da paisagem de fora. Um medo muito grande aparece como um precipício; o tédio se parece com uma chuva persistente em meio a brumas... Vingança? Um tigre... A perda de um amor? Um velório. E a experiência de liberdade? Você nunca voou nos sonhos?... Desta forma, o “artista” torna visíveis as paisagens da alma por meio de metáforas. O “artista”, além de ser pintor é também poeta. Os sonhos são efêmeras visões das paisagens da alma, as paisagens que fazem a nossa pele do lado de dentro, o lado do coração. Quando a gente vê uma paisagem de fora e se emociona, a emoção não vem da paisagem de fora. Vem é da paisagem de dentro. Geralmente se pensa que a função dos psicanalistas é curar doenças da alma. Não concordo. Não sei se eles podem curar alguma coisa. O que acho é que eles são os guias que nos levam a visitar as paisagens da alma que nós mesmos desconhecemos. Bosques escuros, mares profundos, montanhas cobertas de neve, campos floridos, cemitérios... Essa aventura não cura nada. Ela nos conduz por experiência de tristeza e beleza. E isso nos torna mais sábios. A sabedoria é uma forma de cura. Mas preciso confessar que as trilhas mais fascinantes da minha alma, não foi a minha psicanalista que me revelou. Foram os livros. Desses, o mais extraordinário é A história sem fim, de Michael Ende. Tentaram transformá-lo em filme. O filme ficou fantástico. Até vou vê-lo com minhas netas. Mas muita coisa se perdeu no caminho do livro para o cinema. O outro é Viagem a Ixtlan, as lições de feitiçaria do bruxo D. Juan. É infinitamente superior aos livros que se veem nas livrarias e que contam estórias de mundos mágicos. Pena que não tenha sido reeditado. Quando me mudei para um condomínio, a vizinhança inteira me sendo desconhecida, tratei de me aproximar: distribuí alguns livros para os vizinhos mais próximos, adultos, e estórias infantis para as crianças. Deu resultado. Algumas crianças perceberam que gosto delas, que gosto de brincar, e vêm me visitar. Estou no laptop trabalhando e ouço um suave barulho na porta. Já sei! São eles. Eles entram, conversamos e brincamos. Pela vontade deles, ficariam horas na minha casa. Mas eu tenho que trabalhar. E digo a eles que é hora de se irem, por causa do meu trabalho. Aí um deles, deve ter uns oito anos, me fez uma pergunta: “Por que é que você não pede ao seu chefe dois dias de folga?”. Respondi: “Porque o meu chefe é terrível, me vigia o dia inteiro, me cobra as coisas que tenho de fazer. Os olhos dele me vigiam dia e noite...”. Ele ficou assustado que eu tivesse um chefe assim. Perguntou-me o seu nome. Inventei um nome qualquer. Não podia dar o nome verdadeiro do meu chefe, que seria Rubem Alves. Ele não entenderia.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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