Encontrei
esta manhã Eulálio morto. Pobre Eulálio. Estava caído aos pés da
minha cama, com um enorme escorpião, um bicho horrível, também
morto, preso entre os dentes. Morreu em combate, como um bravo, ele
que não se achava corajoso. Enterrei-o no quintal, amortalhado num
lenço de seda, um dos meus melhores lenços, junto ao tronco do
abacateiro. Escolhi a face do abacateiro voltada para poente, úmida,
coberta de musgo, porque ali faz sempre sombra. Eulálio, como eu,
não apreciava o sol. Vai fazer-me falta. Decidi começar a escrever
este diário, hoje mesmo, para persistir na ilusão de que alguém me
escuta. Nunca mais terei um ouvinte como ele. Acho que era o meu
melhor amigo. Deixarei, suponho, de o encontrar em sonhos. A memória
que me resta dele, aliás, parece-se cada vez mais, a cada hora que
passa, com uma construção de areia. A memória de um sonho. Talvez
eu o tenha sonhado inteiramente – a ele, a José Buchmann, a
Edmundo Barata dos Reis. Não me atrevo a escavar o quintal, junto à
buganvília, porque me aterroriza a possibilidade de não encontrar
nada. A Ângela Lúcia, se a sonhei, sonhei-a muito bem. Os postais
que me continua a enviar, um a cada três ou quatro dias, são quase
reais. Comprei na Altair, através da Internet, um imenso mapa do
mundo. A loja da Altair em Barcelona é a minha livraria preferida.
Sempre que vou a Barcelona guardo dois ou três dias para me perder
na Altair, a consultar livros e mapas, álbuns de fotografias, a
planear as viagens que farei um dia; a planear principalmente aquelas
viagens que nunca farei. Pendurei o mapa na parede da sala, preso a
uma placa de corticite, ao lado das polaroides de Ângela Lúcia.
Todos os postais trazem uma nota mencionando o local onde a imagem
foi recolhida e assim posso facilmente acompanhar o percurso dela
(espetei em cada localidade um alfinete de cabeça verde). Vejo que
Ângela desceu o Amazonas até Belém do Pará. Calculo que tenha
depois alugado um carro, ou, parece-me o mais provável, apanhado um
ônibus, em direcção ao Sul. Enviou-me de São Luís do Maranhão a
silhueta em chamas de um pequeno barco com uma vela quadrada: Rio
Anil, nove de fevereiro. Quatro dias depois chegou-me a imagem de
uma mão de criança lançando um avião de papel. Um rio desliza ao
fundo, gordo e pardo sob o lento sol: Ilhas Canárias, Delta do
Parnaíba, treze de fevereiro. Não me é difícil imaginar o caminho
que tomará nos próximos dias. Comprei ontem um bilhete para o Rio
de Janeiro. Voarei depois de amanhã do aeroporto Santos Dumont para
Fortaleza. Creio que não me vai ser difícil dar com ela. Se José
Buchmann conseguiu encontrar um patrício, um acorrentado, dentro de
uma cabina telefônica, em Berlim, tendo por única referência um
semáforo, mais rapidamente eu encontrarei uma mulher que gosta de
fotografar nuvens. Não sei o que farei quando a encontrar. Espero
que tu, meu bom Eulálio, onde quer que estejas, me ajudes a tomar a
decisão correcta. Sou animista. Sempre fui, mas só há pouco isso
me ocorreu. Passa-se com a alma algo semelhante ao que acontece à
água: flui. Hoje está um rio. Amanhã estará mar. A água toma a
forma do recipiente. Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém,
não é uma garrafa. Eulálio será sempre Eulálio, quer encarne (em
carne), quer em peixe. Vem-me à memória a imagem a preto e branco
de Martin Luther King discursando à multidão: eu tive um sonho. Ele
deveria ter dito antes: eu fiz um sonho. Há alguma diferença,
pensando bem, entre ter um sonho ou fazer um sonho.
Eu
fiz um sonho.
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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