quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Darl



Contra a escura moldura da porta ele parece materializar-se, saindo da escuridão, garboso, em suas roupas de baixo, como um cavalo de raça, no inicio de seu resplendor. Salta para o chão tendo no rosto uma expressão de furiosa incredulidade. Ele me viu sem virar a cabeça ou os olhos nos quais o resplendor nada como dois pequenos archotes. "Vamos", ele diz pulando a elevação na direção do celeiro.
Por um instante mais longo ele corre prateado ao luar, depois salta qual figura chata recortada de uma folha de flandres contra uma abrupta e inaudível explosão, enquanto todo o feno do celeiro pega. fogo imediatamente, como se estivesse, recheado de pólvora,. Entra em, relevo a fachada da frente, de forma cônica, com o quadrado orifício do portal Interrompido somente pela forma quadrada e acachapada do caixão sobre os cavaletes, qual escaravelho "cubista. Atrás de mim, Pai e Gillespie e Mack e Dewey Dell e Vardaman saem da casa.
Para perto do caixão, inclinado, e me olha, o rosto furioso. Em cima, as labaredas soam como trovões; uma corrente de ar frio nos atinge: nela ainda não há calor, e um punhado de gravetos ergue-se de súbito e é sugado rapidamente para os estábulos, onde um cavalo relincha. "Depressa", eu digo. "Os cavalos." Ele me fita mais algum tempo, depois olha o telhado em cima, e em seguida salta na direção da cavalariça onde o cavalo relincha. O cavalo pula e escoiceia, e o som das patas ao tombarem é amortecido pelo crepitar das "chamas. O ruído assemelha-se ao de um trem interminável atravessando uma ponte sem fim. Gillespie e Mack passam por mim, em suas camisas de dormir que descem até os joelhos; gritam, e seus gritos, finos, altos e inexpressivos, resultam, ao mesmo tempo, profundamente selvagens e tristes: "... vaca... cavalariça ..." A camisa de Gillespie enfuna-se, à sua frente, com a corrida, transformando-se em balão á altura das coxas peludas.
A porta da cavalariça fechou-se. Jewel força-a com as nádegas e aparece de costas arqueadas, os músculos desenhados através da roupa, a puxar o cavalo para fora, pelo focinho. No clarão, os olhos do cavalo rolam com um fogo suave, rápido, selvagem e opalino; seus músculos ondulam e correm, enquanto ele sacode a cabeça em várias direções, levantando Jewel do chão. Jewel puxa-o -aos poucos, com um esforço terrível; e novamente me lança por cima do ombro um único olhar furioso e breve. Mesmo quando estão fora do celeiro, o cavalo continua à lutar, na tentativa de retroceder para a porta, até que Gillespie passa por mim, nu em pelo, a camisa de dormir enrolada na cabeça da mula, e bate no cavalo enlouquecido, a fim de afastá-lo da porta.
Jewel retrocede a correr; novamente olha para o caixão. Mas não para. "Onde está a vaca?", grita, ao passar por mim. Eu o acompanho. Na cavalariça, Mack está lutando com a outra mula. Quando a cabeça do animal é colhida pelo clarão, eu posso ver também o selvagem rolar de seus olhos, mas sem qualquer som. Deixa-se ficar ali, com as patas dianteiras para cima, observando Mack por sobre o lombo, sempre que ele se aproxima. Ele olha para nós, que estamos atrás, e seus olhos e boca são três buracos redondos no rosto onde as sardas parecem ervilhas numa travessa. Sua voz é aguda, alta, remota.
"Não posso fazer nada..." É como se o som lhe fosse arrancado dos lábios e, disperso no ar, nos falasse de Uma imensa e esgotante distância. Jewel desliza à nossa frente; a mula gira e escoiceia, mas ele já lhe agarrou a cabeça. Eu digo ao ouvido de Mack: "A camisa de dormir. Ao redor da cabeça da mula."
Mack me encara. Depois, arranca a camisa e envolve a cabeça da mula, e imediatamente o animal fica dócil. Jewel está gritando para ele: "E a vaca? E a vaca?"
"Nos fundos", grita Mack. "Na última cavalariça. A vaca nos observa quando entramos. Está acuada a um canto, de cabeça baixa, mas ainda ruminando rapidamente. Não se move, porém. Jewel faz uma pausa, olhando para cima, e subitamente todo o pavimento do feno se dissolve. Ele se transforma simplesmente em fogo; começa a tombar uma fina chuva de faíscas. Jewel olha em volta. Atrás, embaixo do pilão, há um banco de ordenhar, de três pernas. Ele o agarra e começa a golpear ás tábuas da parede dos fundos. Derruba uma, outra, mais outra; nós arrancamos os pedaços que restam. Enquanto estamos encurvados, aumentando a abertura, alguma coisa acomete, de trás, contra nós.
É a vaca. Com um silvo único, rompe entre nós e passa pela brecha e entra na claridade externa, com a cauda ereta e rígida qual vassoura pregada na extremidade de sua espinha.
Jewel entra no celeiro.
"Ei", eu digo. "Jewel!" E o agarro, mas ele se livra, afastando minha mão com um golpe.
"Seu louco", eu digo, "não está vendo que nunca chegará lá embaixo?"
O corredor parece um projetor que espalhasse uma chuva de fogo.
"Venha", eu digo, "vamos por aqui."
Quando saímos pela brecha, ele começa a correr.
"Jewel", eu digo, correndo atrás dele.
Ele dispara pela esquina. Quando chego ali, ele já está quase na outra esquina, correndo contra o clarão, como aquela silhueta recortada em folha de flandres. Pai e Gillespie e Mack encontram-se afastados, observando o celeiro que está encarnado contra a escuridão e onde, por algum tempo, o luar se desvaneceu.
''Agarrem-no!", eu grito. "Detenham-no!"
Quando chego em frente da casa, ele está lutando com Gillespie; um, em roupa de baixo, e outro nu em pelo. Parecem duas figuras de um friso grego, isoladas de qualquer realidade pelo rubro clarão. Antes que eu possa alcançá-los, ele atira Gillespie ao chão, vira-se e corre em direção ao celeiro.
Agora o estrépito das labaredas aquietou-se, como aconteceu ao rumor do rio cheio. Através do dissolvido proscênio da porta, observamos Jewel chegar, correndo, a uma ponta do caixão e debruçar-se. Por um instante ele olha para cima e para fora, em nossa direção, em meio à chuva de feno incendiado que cai qual reposteiro de pérolas ardentes, e eu posso ver-lhe a boca modelar o meu nome quando ele chama por mim.
"Jewell", grita Dewey Dell. "Jewell"
Parece-me ouvir agora a acumulação da voz dela nos últimos cinco minutos, e eu a ouço debater-se contra Pai e Mack que a seguram, e gritando sempre: "Jewel! Jewel!"
Mas ele não olha mais para nós. Vemos seus ombros endireitarem-se quando suspende o caixão por uma extremidade e o faz resvalar, então, dos cavaletes, com uma só mão. O caixão sobe, incrivelmente grande, e oculta Jewel: nunca pensei que Addie Brunden precisasse de tanto espaço para repousar confortavelmente. Dentro em pouco o caixão está em pé, enquanto a chuva de fagulhas o envolve, como se, ao seu contato, gerasse outras fagulhas. Depois, no impulso, tomba para a frente, revelando Jewel e a chuva de fagulhas que cai também sobre ele, de tal forma que parece envolto em tênue nimbo de fogo. O caixão sobe e desce, avança e recua, para, depois romper vagarosamente a cortina de chamas. Desta vez Jewel o cavalga, agarrando-o com firmeza, até que ele se despenha e o arremessa a lugar seguro e Mack, sentindo um débil odor de carne chamuscada, debruça-se sobre Jewel e apaga, a tapas, os buracos acesos que avançam com suas margens carmesins, quais flores brotando na camiseta.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

Nenhum comentário:

Postar um comentário