Contra a escura moldura da porta ele
parece materializar-se, saindo da escuridão, garboso, em suas roupas
de baixo, como um cavalo de raça, no inicio de seu resplendor. Salta
para o chão tendo no rosto uma expressão de furiosa incredulidade.
Ele me viu sem virar a cabeça ou os olhos nos quais o resplendor
nada como dois pequenos archotes. "Vamos", ele diz pulando
a elevação na direção do celeiro.
Por um instante mais longo ele corre
prateado ao luar, depois salta qual figura chata recortada de uma
folha de flandres contra uma abrupta e inaudível explosão, enquanto
todo o feno do celeiro pega. fogo imediatamente, como se estivesse,
recheado de pólvora,. Entra em, relevo a fachada da frente, de forma
cônica, com o quadrado orifício do portal Interrompido somente pela
forma quadrada e acachapada do caixão sobre os cavaletes, qual
escaravelho "cubista. Atrás de mim, Pai e Gillespie e Mack e
Dewey Dell e Vardaman saem da casa.
Para perto do caixão, inclinado, e me
olha, o rosto furioso. Em cima, as labaredas soam como trovões; uma
corrente de ar frio nos atinge: nela ainda não há calor, e um
punhado de gravetos ergue-se de súbito e é sugado rapidamente para
os estábulos, onde um cavalo relincha. "Depressa", eu
digo. "Os cavalos." Ele me fita mais algum tempo, depois
olha o telhado em cima, e em seguida salta na direção da cavalariça
onde o cavalo relincha. O cavalo pula e escoiceia, e o som das patas
ao tombarem é amortecido pelo crepitar das "chamas. O ruído
assemelha-se ao de um trem interminável atravessando uma ponte sem
fim. Gillespie e Mack passam por mim, em suas camisas de dormir que
descem até os joelhos; gritam, e seus gritos, finos, altos e
inexpressivos, resultam, ao mesmo tempo, profundamente selvagens e
tristes: "... vaca... cavalariça ..." A camisa de
Gillespie enfuna-se, à sua frente, com a corrida, transformando-se
em balão á altura das coxas peludas.
A porta da cavalariça fechou-se.
Jewel força-a com as nádegas e aparece de costas arqueadas, os
músculos desenhados através da roupa, a puxar o cavalo para fora,
pelo focinho. No clarão, os olhos do cavalo rolam com um fogo suave,
rápido, selvagem e opalino; seus músculos ondulam e correm,
enquanto ele sacode a cabeça em várias direções, levantando Jewel
do chão. Jewel puxa-o -aos poucos, com um esforço terrível; e
novamente me lança por cima do ombro um único olhar furioso e
breve. Mesmo quando estão fora do celeiro, o cavalo continua à
lutar, na tentativa de retroceder para a porta, até que Gillespie
passa por mim, nu em pelo, a camisa de dormir enrolada na cabeça da
mula, e bate no cavalo enlouquecido, a fim de afastá-lo da porta.
Jewel retrocede a correr; novamente
olha para o caixão. Mas não para. "Onde está a vaca?",
grita, ao passar por mim. Eu o acompanho. Na cavalariça, Mack está
lutando com a outra mula. Quando a cabeça do animal é colhida pelo
clarão, eu posso ver também o selvagem rolar de seus olhos, mas sem
qualquer som. Deixa-se ficar ali, com as patas dianteiras para cima,
observando Mack por sobre o lombo, sempre que ele se aproxima. Ele
olha para nós, que estamos atrás, e seus olhos e boca são três
buracos redondos no rosto onde as sardas parecem ervilhas numa
travessa. Sua voz é aguda, alta, remota.
"Não posso fazer nada..." É
como se o som lhe fosse arrancado dos lábios e, disperso no ar, nos
falasse de Uma imensa e esgotante distância. Jewel desliza à nossa
frente; a mula gira e escoiceia, mas ele já lhe agarrou a cabeça.
Eu digo ao ouvido de Mack: "A camisa de dormir. Ao redor da
cabeça da mula."
Mack me encara. Depois, arranca a
camisa e envolve a cabeça da mula, e imediatamente o animal fica
dócil. Jewel está gritando para ele: "E a vaca? E a vaca?"
"Nos fundos", grita Mack.
"Na última cavalariça. A vaca nos observa quando entramos.
Está acuada a um canto, de cabeça baixa, mas ainda ruminando
rapidamente. Não se move, porém. Jewel faz uma pausa, olhando para
cima, e subitamente todo o pavimento do feno se dissolve. Ele se
transforma simplesmente em fogo; começa a tombar uma fina chuva de
faíscas. Jewel olha em volta. Atrás, embaixo do pilão, há um
banco de ordenhar, de três pernas. Ele o agarra e começa a golpear
ás tábuas da parede dos fundos. Derruba uma, outra, mais outra; nós
arrancamos os pedaços que restam. Enquanto estamos encurvados,
aumentando a abertura, alguma coisa acomete, de trás, contra nós.
É a vaca. Com um silvo único, rompe
entre nós e passa pela brecha e entra na claridade externa, com a
cauda ereta e rígida qual vassoura pregada na extremidade de sua
espinha.
Jewel entra no celeiro.
"Ei", eu digo. "Jewel!"
E o agarro, mas ele se livra, afastando minha mão com um golpe.
"Seu louco", eu digo, "não
está vendo que nunca chegará lá embaixo?"
O corredor parece um projetor que
espalhasse uma chuva de fogo.
"Venha", eu digo, "vamos
por aqui."
Quando saímos pela brecha, ele começa
a correr.
"Jewel", eu digo, correndo
atrás dele.
Ele dispara pela esquina. Quando chego
ali, ele já está quase na outra esquina, correndo contra o clarão,
como aquela silhueta recortada em folha de flandres. Pai e Gillespie
e Mack encontram-se afastados, observando o celeiro que está
encarnado contra a escuridão e onde, por algum tempo, o luar se
desvaneceu.
''Agarrem-no!", eu grito.
"Detenham-no!"
Quando chego em frente da casa, ele
está lutando com Gillespie; um, em roupa de baixo, e outro nu em
pelo. Parecem duas figuras de um friso grego, isoladas de qualquer
realidade pelo rubro clarão. Antes que eu possa alcançá-los, ele
atira Gillespie ao chão, vira-se e corre em direção ao celeiro.
Agora o estrépito das labaredas
aquietou-se, como aconteceu ao rumor do rio cheio. Através do
dissolvido proscênio da porta, observamos Jewel chegar, correndo, a
uma ponta do caixão e debruçar-se. Por um instante ele olha para
cima e para fora, em nossa direção, em meio à chuva de feno
incendiado que cai qual reposteiro de pérolas ardentes, e eu posso
ver-lhe a boca modelar o meu nome quando ele chama por mim.
"Jewell", grita Dewey Dell.
"Jewell"
Parece-me ouvir agora a acumulação
da voz dela nos últimos cinco minutos, e eu a ouço debater-se
contra Pai e Mack que a seguram, e gritando sempre: "Jewel!
Jewel!"
Mas ele não olha mais para nós.
Vemos seus ombros endireitarem-se quando suspende o caixão por uma
extremidade e o faz resvalar, então, dos cavaletes, com uma só mão.
O caixão sobe, incrivelmente grande, e oculta Jewel: nunca pensei
que Addie Brunden precisasse de tanto espaço para repousar
confortavelmente. Dentro em pouco o caixão está em pé, enquanto a
chuva de fagulhas o envolve, como se, ao seu contato, gerasse outras
fagulhas. Depois, no impulso, tomba para a frente, revelando Jewel e
a chuva de fagulhas que cai também sobre ele, de tal forma que
parece envolto em tênue nimbo de fogo. O caixão sobe e desce,
avança e recua, para, depois romper vagarosamente a cortina de
chamas. Desta vez Jewel o cavalga, agarrando-o com firmeza, até que
ele se despenha e o arremessa a lugar seguro e Mack, sentindo um
débil odor de carne chamuscada, debruça-se sobre Jewel e apaga, a
tapas, os buracos acesos que avançam com suas margens carmesins,
quais flores brotando na camiseta.
William Faulkner, em Enquanto Agonizo

Nenhum comentário:
Postar um comentário