[…]
Ah, mas aquilo, por terrível que
fosse, eu tinha de levantar, mas tinha! Em tal já sabia do modo
completo, o que eu tinha de proceder, sistema que tinha aprendido, as
astúcias muito sérias. Como é? Aos poucos, pouquinhos, perguntando
em conversa a uns, escutando de outros, me lembrando de estórias
antigo contadas. A maneira que quase sem saber o que eu estava
fazendo e querendo. De em desde muito tempo. Custoso pior não sendo,
no arrevesso. Só o que demandava era uma fúria de quente frieza,
dura nos dentes, um rompante de grande coragem. Ao que era por tanto
negrume e carregume, a mais medonha responsabilidade possível ―
ato que só raro mas raro um homem acha o querer para executar,
nesses sertões todos.
Vai, um dia, eu quis. Antes, o que eu
vinha era adiando aquilo, adiando. Quis, assim, meio às tantas,
mesmo desfazendo de esclarecer no exato meus passos e motivos. Ao
que, na moleza, eu tateava. Digo! comecei. Tinha preceito. O que seja
― primeiro, não se coma, não se beba, e é; se bebe cachaça...
Um gole que era fogo solto na goela e nos internos. Não quebrava o
jejum do demo. No que eu confiei que estava pronto para ir avante: no
que eram obras de chão e escuridão. Engano meu. A aguardar, até à
hora, eu carecia de não deixar que nem um fiozinho de ideia comum em
mim esvoaçasse. Deixei. Aí foi um instante: Diadorim estava perto
de mim, vivo como pessoa, com aquela forte meiguice que ele denotava.
Diadorim conversou, aceitei a companhia dele. Logo larguei meu começo
de mão, relaxei aqueles propósitos. Cacei comida. Comi tanto,
zampei, e meu corpo agradecia. Diadorim, com as pestanas compridas,
os moços olhos. Desde aí, naquelas outras coisas não queria
pensar, e ri, pauteei, dormi. A vida era muito normal, mesma, e certa
bem que estava.
Tanto o engano. Os três dias
passados, eu reproduzi tudo com uma qualidade de remorsos, aquelas
decisões. Sonhei coisas muito duras. O porque era pior, agora, que
eu tomei sombra vergonhosa, por ter começado e não ter tido firmeza
para levar a acabado. E a herança de minhas queixas antigas.
Conforme eu pensava! tanta coisa já passada; e, que é que eu era?
Um raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão. O mais que
eu podia ter sido capaz de pelejar certo, de ser e de fazer; e no
real eu não conseguia. Só a continuação de airagem, trastêjo,
trançar o vazio. Mas, por que? ― eu pensava. Ah, então, sempre
achei! por causa de minha costumação, e por causa dos outros. Os
outros, os companheiros, que viviam à-tôa, desestribados; e viviam
perto da gente demais, desgovernavam toda-a-hora a atenção, a
certeza de se ser, a segurança destemida, e o alto destino possível
da gente. De que é que adiantava, se não, estatuto de jagunço? Ah
, era. Por isso, eu tinha grande desprezo de mim, e tinha cisma de
todo o mundo. Apartado. De Zé Bebelo, mais do que de todos.
Zé Bebelo doente não estava. Doença,
com ele? Sendo o que a um assim não podia permitido; só se perdesse
de todo o siso. A não ser por essa malacafa. Ei, pois, ele estava
caipora. Logo vi. Daí tinha conta a nossa reles perdição, aquele
atrasamento geral. Zé Bebelo para mim, tinha gastado as vantagens.
Zé Bebelo murchava muda na cor, não existia mais em viço para
desatinos, nada que falava era mais de se reproduzir, aqueles
exageros bonitos e tamanhos rasgos. Só dizendo que tínhamos de
esperar mesmo ali, até que os adoecidos sarassem. Assim em
impossibilidades. Tudo o que acontecia, era a má-sorte. Não digo
por um Zé Vital, que tornava a dar ataque, dos de entortar boca
escumante e se esbracejar e espernear com madeira de braços-e-pernas
que de quem eram. Mas uma jararaca picou o Gregoriano! era aquela, a
rastejo no capim e nas folhas caídas, nem chegava a quatro palmos ―
e com poder de acabar ― e o Gregoriano morreu, em pobres horas. E
mais conto o que com um Felisberto se dava. Assaz em aparências de
saúde, mas tendo sido baleado na cabeça, fazia já alguns anos; uma
bala de garrucha ― a bala de cobre, se dizia ― que estava
encravada na vida de seus encaixes e carnes, em ponto onde ferramenta
de doutor nenhum não alcançava de escrafunchar. Aí, com o
intervalo dos meses, e de repente, sem razão entendível nenhuma, a
cara desse Felisberto se esverdeava, até os dentes, de azinhavres,
ficava mal. Ao que os olhos inchavam, tudo fuscado em verde, uma
mancha só, o muito grande. O nariz entupia, inchado. Ele tossia. E
horror de se ver, o metal do esverdêio. Daí, feito flôr de
joaninha-silva em muito sol, do meio-dia para a tarde, virava era
azul. Aquilo era para poder sarar? Quando que? A tosse dum garrote
entisicado. Dizia naquelas horas que estava sem visiva, nada não
enxergava. A maior felicidade era ele não saber quem tinha acertado
nele aquela bala, não carecer de imaginar onde era que tal pessoa
estava, nem de ódio constante de repensar nela.
Mas que em desregra a gente se
comportava, então, de parar ali envelhecendo os dias, na Coruja,
como fosse menos-e-mais para aproveitar a carne fresca e de-sol que
na campeação se conseguia, as boiadas daqueles sertões. Sempre Zé
Bebelo não desistia de palavrear, a raleza de projetos, como
faz-de-conta. A mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói
assim mesmo, si mesma, mói, mói. As doenças se curassem? Minhas
dúvidas. Aí, quem não pegara a maleita padecia por outros modos ―
mal-de-inchar, carregação-do-peito, meias-dôres; teve até
agravado de estupor. Adiantemente, me desvali. O que me coçava, que
nem se eu tivesse provado lombo de capivara no cío. A ser, o fígado,
que me doía; mas não me certifiquei: apalpar lugar de meu corpo,
por doença, me dava um desalento pior. Raymundo Lé cozinhou para
mim um chá de urumbeba.
Era um recurso para aliviar meu
achaque, e era dado com bondade. Isso mesmo foi o que eu disse a
Raymundo Lé, agradecido! ― E um recurso para aliviar meu achaque,
e estou vendo que é dado com bondade... Alaripe pegou a gabar a
virtude mezinheira das mais raízes e folhas. ― Até estas aqui,
duvidar, devem de poder servir, em doses, de remédio para algum
carecer, só que não se sabe... ― ele disse, por uma môita
rosmunda de frei-jorge, esfiada em tantos espetos, e a povoã por
perto crescida. Ali, naquela hora, eu conferi como era usual a gente
estimar os companheiros, em ajuntado. Diadorim ― que graças-a-Deus
estava de todo são ― com os cuidados todos depunha assisado por
mim. E o Sidurino disse! ― A gente carecia agora era de um vero
tiroteio, para exercício de não se minguar... A alguma vila
sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando... Ao assaz
confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei,
também. Mas, mal acabei de pronunciar, eu despertei em mim um estar
de susto, entendi uma dúvida, de arpêjo! e o que me picou foi uma
cobra bibra. Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se
ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas
garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no
fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo
de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães
― eles achavam questão natural, que podiam ir salientemente
cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O
horror que me deu ― o senhor me entende? Eu tinha medo de homem
humano.
[...]
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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