quarta-feira, 3 de setembro de 2025

1583 – Tlatelolco

Sahagún

Tóssozim’, Tossozim’ canta a pomba.
Uma mulher oferece flores a uma pedra em pedaços:
Senhor – diz a mulher à pedra. – Senhor, como sofreste.
Os velhos sábios indígenas oferecem seu testemunho a frei Bernardino de Sahagún: “Que nos deixem morrer”, pedem, “já que mataram nossos deuses”.
Frei Bernardino de Ribeira, natural de Sahagún: filho de São Francisco, pés descalços, batina remendada, buscador da plenitude do Paraíso, buscador da memória destes povos vencidos: mais de quarenta anos leva Sahagún percorrendo comarcas do México, do senhorio de Huexotzingo, à Tula dos toltecas e à região de Texcoco, para resgatar as imagens e as palavras dos tempos passados. Nos doze livros da História Geral das coisas da Nova Espanha, Sahagún e seus jovens ajudantes salvaram e reuniram as vozes antigas, as festas dos índios, seus rituais, seus deuses, seu modo de contar a passagem dos anos e dos astros, seus mitos, seus poemas, sua medicina, seus relatos de épocas remotas e da recente invasão europeia.... A história canta nesta primeira grande obra da antropologia americana.
Há seis anos, o rei Felipe II mandou arrancar esses manuscritos das mãos de Sahagún, e todos os códices indígenas por ele copiados e traduzidos, sem que deles reste original ou cópia alguma. Onde terão ido parar esses livros suspeitos de perpetuar e divulgar idolatrias? Ninguém sabe. O Conselho das Índias não respondeu a nenhuma das súplicas do desesperado autor e compilador. Que fez o rei com estes quarenta anos da vida de Sahagún e vários séculos da vida do México? Dizem em Madrid que suas páginas foram usadas para embrulhar especiarias.
O velho Sahagún não se dá por vencido. Aos oitenta anos longos, aperta contra o peito uns poucos papéis salvos do desastre, e dita a seus alunos, em Tlatelolco, as primeiras linhas de uma obra nova, que se chamará Arte adivinhatória. Depois, se porá a trabalhar em um calendário mexicano completo. Quando o calendário acabar, começará o dicionário náhuatl-castelhano-latim. E nem bem termine o dicionário...
Lá fora uivam os cães, temendo chuva.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

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