51.
O céu negro ao fundo do sul do Tejo
era sinistramente negro contra as asas, por contraste, vividamente
brancas das gaivotas em voo inquieto. O dia, porém, não estava
tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por
sobre a outra margem, e a cidade baixa, húmida ainda do pouco que
chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um
pouco brancamente. O fresco da Primavera era levemente frio.
Numa hora como esta, vazia e
imponderável, apraz-me conduzir voluntariamente o pensamento para
uma meditação que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de
nula, qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo
negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando por
contraste o mistério de tudo em grande negrume.
Mas, de repente, em contrário do meu
propósito literário íntimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me,
por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra
vida, num Norte de rio menor, com juncais tristes e sem cidade
nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos
alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro
que me sinto próximo da extensão que imagino.
Terra de juncais à beira de rios,
terreno para caçadores e angústias, as margens irregulares entram,
como pequenos cabos sujos, nas águas cor de chumbo amarelo, e
reentram em baías limosas, para barcos de quase brinquedo, em
ribeiras que têm água a luzir à tona de lama oculta entre as
hastes verde-negras dos juncos, por onde se não pode andar.
A desolação é de um céu cinzento
morto, aqui e ali arrepanhando-se em nuvens mais negras que o tom do
céu. Não sinto vento, mas há-o, e a outra margem, afinal, é uma
ilha longa, por detrás da qual se divisa — grande e abandonado
rio! — a outra margem verdadeira, deitada na distância sem relevo.
Ninguém ali chega, nem chegará.
Ainda que, por uma fuga contraditória do tempo e do espaço, eu
pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem, ninguém ali chegaria
nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava, nem haveria
senão, no fim de tudo, um cair lento da noite, tornando-se todo o
espaço, lentamente, da cor das nuvens mais negras, que pouco a pouco
se emergiam ’ no conjunto abolido do céu.
E, de repente, sinto aqui o frio de
ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto. O
homem, que cruza comigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma
desconfiança de quem não sabe explicar. O céu negro, apertando-se,
desceu mais baixo sobre o Sul.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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