domingo, 3 de agosto de 2025

Ana Luísa, Luciana e um polvo

Pois não é que eu estava esperando a visita de um amigo, e tocam a campainha; pensei: ele disse que telefonaria de novo mas deve ter resolvido vir direto. Abro a porta, não era ele. Era uma mulher moça, descabelada, com voz atraente, um Jornal do Brasil na mão e na outra um embrulho estranhíssimo. Ela me diz com a maior afobação: “Sou tímida mas tenho direito de ter meus impulsos; o que você escreveu hoje no jornal foi exatamente como eu sinto; e então eu, que moro defronte de você e assisti ao seu incêndio e sei pela luz acesa quando você tem insônia, eu então trouxe um polvo para você.”
Fiquei boquiaberta. Depois me refiz e convidei-a a entrar. Ela é uma tímida que vence a timidez falando aos borbotões, em jatos impetuosos, sem parar. É Ana Luísa. Fiquei sabendo em minutos de parte de sua vida: tem uma menina de sete ou nove anos, Luciana, e um menino de três. Depois vim a saber que Luciana é doida por animais, por coelhos especialmente – terminei mandando-lhe minha história de mistério do coelho pensante – e que desenhava muito bem. A chuva ela desenhou e disse: “Isso é uma nuvem chorando em cima da flor.” Gostei logo da menina. Bem. Mas e o polvo?
É o seguinte, em resumo: Ana Luísa queria saber se eu gostava de polvo; não me lembrava mais, há tanto tempo que não comia; perguntou-me se eu sabia preparar polvo; respondi-lhe quase horrorizada que não; disse-me então que aprendera com um homem do morro que tem um apelido feio porque é muito enganado pela mulher, que aprendera com ele a limpar polvo e a cozinhá-lo das mais diversas maneiras; perguntou como eu queria o polvo que ia preparar para mim, se no azeite ou arroz; eu, interiormente ainda boquiaberta, terminei dizendo “com arroz”; ela disse: “só dou polvo preparado por mim muito raramente porque gosto de cozinhá-lo mas tenho nojo de limpá-lo; hoje de noite é sábado, vou limpá-lo, deixá-lo na salmoura domingo inteiro, e você terá o polvo com arroz para segunda no almoço.”
Depois que foi embora, ali mesmo é que vi a novidade da coisa. Já me deram vidros de perfume, flores, joias, quadros, livros – mas polvo, nunca. No domingo de manhã, eu ainda estava um pouco espantada. E resolvi, Deus sabe por que, ver no dicionário a palavra polvo. E é simplesmente este pavor de viver: “molusco cefalópode, que possui oito tentáculos, cheios de ventosas”. Logo abaixo vem uma palavra que se aplica a Ana Luísa: polvarim – “pó que sai da pólvora”.
Na segunda-feira, apareceu Ana Luísa, penteada, de calça comprida, elegante, com uma terrina bem quente cheia do mais lindo arroz de polvo que se possa imaginar: cor-de-rosa. Quando ela saiu, sentamo-nos à mesa, sem saber que espécie de ritual devia ser executado antes de comermos. Comemos em silêncio, de vez em quando um olhando para o outro como que indagando. Até que chegamos à conclusão: Ana Luísa sabe realmente preparar polvo, mas não gosto do que tem tentáculos. Em compensação, o arroz estava ótimo.Uma semana depois ela me mandou – não quer impor a sua presença e realmente não gosto de ser pressionada – me mandou um arroz com alguma coisa, reconheci, que vem do mar. Mas esse estava tão bom que foi um regozijo para mim, para meus filhos e para uma amiga cujas iniciais são S. M. Ana Luísa, perdi seu endereço, por isso não lhe mandei ainda de volta as terrinas.
E nada mais tenho a dizer.

Clarice Lispector, em Todas as Crônicas

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