Pois não é que eu estava esperando a
visita de um amigo, e tocam a campainha; pensei: ele disse que
telefonaria de novo mas deve ter resolvido vir direto. Abro a porta,
não era ele. Era uma mulher moça, descabelada, com voz atraente, um
Jornal do Brasil na mão e na outra um embrulho estranhíssimo.
Ela me diz com a maior afobação: “Sou tímida mas tenho direito
de ter meus impulsos; o que você escreveu hoje no jornal foi
exatamente como eu sinto; e então eu, que moro defronte de você e
assisti ao seu incêndio e sei pela luz acesa quando você tem
insônia, eu então trouxe um polvo para você.”
Fiquei boquiaberta. Depois me refiz e
convidei-a a entrar. Ela é uma tímida que vence a timidez falando
aos borbotões, em jatos impetuosos, sem parar. É Ana Luísa. Fiquei
sabendo em minutos de parte de sua vida: tem uma menina de sete ou
nove anos, Luciana, e um menino de três. Depois vim a saber que
Luciana é doida por animais, por coelhos especialmente – terminei
mandando-lhe minha história de mistério do coelho pensante – e
que desenhava muito bem. A chuva ela desenhou e disse: “Isso é uma
nuvem chorando em cima da flor.” Gostei logo da menina. Bem. Mas e
o polvo?
É o seguinte, em resumo: Ana Luísa
queria saber se eu gostava de polvo; não me lembrava mais, há tanto
tempo que não comia; perguntou-me se eu sabia preparar polvo;
respondi-lhe quase horrorizada que não; disse-me então que
aprendera com um homem do morro que tem um apelido feio porque é
muito enganado pela mulher, que aprendera com ele a limpar polvo e a
cozinhá-lo das mais diversas maneiras; perguntou como eu queria o
polvo que ia preparar para mim, se no azeite ou arroz; eu,
interiormente ainda boquiaberta, terminei dizendo “com arroz”;
ela disse: “só dou polvo preparado por mim muito raramente porque
gosto de cozinhá-lo mas tenho nojo de limpá-lo; hoje de noite é
sábado, vou limpá-lo, deixá-lo na salmoura domingo inteiro, e você
terá o polvo com arroz para segunda no almoço.”
Depois que foi embora, ali mesmo é
que vi a novidade da coisa. Já me deram vidros de perfume, flores,
joias, quadros, livros – mas polvo, nunca. No domingo de manhã, eu
ainda estava um pouco espantada. E resolvi, Deus sabe por que, ver no
dicionário a palavra polvo. E é simplesmente este pavor de
viver: “molusco cefalópode, que possui oito tentáculos, cheios de
ventosas”. Logo abaixo vem uma palavra que se aplica a Ana Luísa:
polvarim – “pó que sai da pólvora”.
Na segunda-feira, apareceu Ana Luísa,
penteada, de calça comprida, elegante, com uma terrina bem quente
cheia do mais lindo arroz de polvo que se possa imaginar:
cor-de-rosa. Quando ela saiu, sentamo-nos à mesa, sem saber que
espécie de ritual devia ser executado antes de comermos. Comemos em
silêncio, de vez em quando um olhando para o outro como que
indagando. Até que chegamos à conclusão: Ana Luísa sabe realmente
preparar polvo, mas não gosto do que tem tentáculos. Em
compensação, o arroz estava ótimo.Uma semana depois ela me mandou
– não quer impor a sua presença e realmente não gosto de ser
pressionada – me mandou um arroz com alguma coisa, reconheci, que
vem do mar. Mas esse estava tão bom que foi um regozijo para mim,
para meus filhos e para uma amiga cujas iniciais são S. M. Ana
Luísa, perdi seu endereço, por isso não lhe mandei ainda de volta
as terrinas.
E nada mais tenho a dizer.
Clarice Lispector, em Todas as Crônicas
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