25.
É uma oleografia sem remédio. Fito-a
sem saber se vejo. Na montra há outras e aquela. Está ao centro da
montra do vão de escada.
Ela aperta a primavera contra o seio e
os olhos com que me fita são tristes. Sorri com brilho do papel e as
cores da sua face são encarnado, O céu por trás dela é azul de
fazenda clara. Tem uma boca recortada e quase pequena por sobre cuja
expressão postal os olhos me fitam sempre com uma grande pena. O
braço que segura as flores lembra-me o de alguém. O vestido ou
blusa é aberto num decote ladeado. Os olhos são realmente tristes:
fitam-me do fundo da realidade litográfica com uma verdade qualquer.
Ela veio com a primavera. Os seus olhos tristes são grandes, mas nem
é por isso. Separo-me de em frente da montra com uma grande
violência sobre os pés. Atravesso a rua e volto-me com uma revolta
impotente. Ela segura ainda a primavera que lhe deram e os seus olhos
são tristes como o que eu não tenho na vida. Vista à distância, a
oleografia tem afinal mais cores. A figura tem uma fita de cor de
mais rosa contornando o alto do cabelo; não tinha reparado. Há em
olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso
inevitável da consciência, o grito clandestino de haver alma. Com
um grande esforço ergo-me do sono em que me molho e sacudo, como um
cão, os húmidos da treva de bruma. E por cima do meu desertar, numa
despedida de outra coisa qualquer, os olhos tristes da vida toda,
desta oleografia metafísica que contemplamos à distância, fitam-me
como se eu soubesse de Deus. A gravura tem um calendário na base. É
emoldurada em cima e em baixo por duas réguas pretas de um convexo
chato mal pintado. Entre o alto e o baixo do seu definitivo, por
sobre 1929 com vinheta obsoletamente caligráfica cobrindo o
inevitável primeiro de Janeiro, os olhos tristes sorriem-me
ironicamente.
É curioso de onde, afinal, eu
conhecia a figura. No escritório há, no canto do fundo, um
calendário idêntico, que tenho visto muitas vezes.
Mas, por um mistério, ou oleográfico
ou meu, a idêntica do escritório não tem olhos com pena. É só
uma oleografia. (É de papel que brilha e dorme por cima da cabeça
do Alves canhoto o seu viver de esbatimento.)
Quero sorrir de tudo isto, mas sinto
um grande mal-estar. Sinto um frio de doença súbita na alma. Não
tenho força para me revoltar contra esse absurdo. A que janela para
que segredo de Deus me abeiraria eu sem querer? Para onde dá a
montra do vão de escada? Que olhos me fitavam na oleografia? Estou
quase a tremer. Ergo involuntariamente os olhos para o canto distante
do escritório onde a verdadeira oleografia está. Levo
constantemente a erguer para lá os olhos.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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