Certo
dia, a casa amanheceu em polvorosa, pois a sinhá Ana Felipa tinha
começado a botar sangue e ainda faltavam mais de quatro meses para a
época certa de a criança nascer. Foi chamada uma aparadeira famosa
na ilha, e ela disse que não podia fazer muita coisa, que a sinhá
tinha que ter fé, muita fé. Das outras vezes, nada tinha adiantado,
nem as ervas das pretas benzedeiras, a quem ela recorreu achando que
ninguém sabia, nem os remédios de botica. Nem a fé, pois todas as
tentativas eram amparadas com muita reza. A sinhá exigia que
houvesse pelo menos uma preta sempre ao lado dela, desfiando o
rosário, e que era substituída assim que a voz demonstrasse
cansaço. Já tinha recebido visitas de médicos da capital e até
mesmo da corte, que ficava a muitos dias de navio da Bahia, na
província do Rio de Janeiro. Mesmo assim, todas as vezes que a sinhá
ficava pejada, as crianças não vingavam. Só podiam ser abikus,
e eles não iam querer ficar enquanto não fossem tomadas as
providências. Mas eu é que não ia voltar a falar nesse assunto,
uma vez que a Esméria já tinha me repreendido.
Uma
noite, sonhei com a Taiwo, quero dizer, acho que era a Taiwo, vestida
com a roupa que a sinhazinha Maria Clara tinha me emprestado, pois
tive a mesma sensação de quando nos olhávamos nos olhos por sobre
os ombros da minha mãe, em Savalu. Parecia eu, mas era a Taiwo, e
estava feliz, olhando nos meus olhos e sorrindo, enrolando a barra do
vestido em volta das pernas, de um lado para outro. Logo na manhã
seguinte, enquanto eu ajudava a Esméria a torrar e moer o café, a
Nega Florinda apareceu e, sem dizer nada além de um breve
cumprimento, foi embora depois de me entregar um embrulho com o
pingente que todo ibêji que sobrevive à morte do outro deve usar
para conservar a sua alma, e mais uma pequena escultura, também em
madeira, representando os dois Ibêjis juntos. Mostrei à Esméria e
ela me levou de volta à senzala pequena, de onde quase todos já
haviam saído, menos os dois moleques, o Tico e o Hilário, que ainda
dormiam de roncar. Ela me ajudou a cavar um buraco no local onde
estava a minha esteira, suficientemente fundo para atingir a base da
parede que entrava para dentro da terra, e deixando um oco, como se
fosse uma caverna. Foi assim que descobri como os pretos guardavam os
seus santos, escondidos dos olhos dos brancos, e que todas aquelas
paredes já deviam estar apoiadas em quase nada. Até a Esméria
tinha lá os seus orixás, mesmo já estando acostumada aos santos
dos brancos e tendo simpatia por alguns deles, como São Benedito,
que era preto como nós, ou Nossa Senhora da Conceição, que se reza
como Iemanjá, assim como São Jorge é Xangô e Santo Antônio é
Ogum, ou São Cosme e São Damião, que são os Ibêjis. Depois que
colocamos a esteira para esconder a entrada do buraco, ela me pediu
para tomar bastante cuidado na hora de tirar meus Ibêjis de lá,
para ter certeza de que não havia ninguém olhando. Caso contrário,
eu arriscaria não só o meu esconderijo, mas o de todos os pretos,
pois poderiam mandar fazer uma busca nas senzalas. O pingente de
ibêji, ao contrário do que eu pensava, não representava uma
criança, como ainda era a Taiwo quando morreu, mas uma adulta com
peitos e racha, que era como ela deveria ficar se tivesse crescido.
Manter a Taiwo viva, esse era o papel do pingente, ou amuleto, que eu
trago sempre comigo, pendurado no pescoço. Dias depois, um Xangô
foi se juntar aos Ibêjis no esconderijo, também presente da Nega
Florinda.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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