terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Certo dia, a casa amanheceu em polvorosa, pois a sinhá Ana Felipa tinha começado a botar sangue e ainda faltavam mais de quatro meses para a época certa de a criança nascer. Foi chamada uma aparadeira famosa na ilha, e ela disse que não podia fazer muita coisa, que a sinhá tinha que ter fé, muita fé. Das outras vezes, nada tinha adiantado, nem as ervas das pretas benzedeiras, a quem ela recorreu achando que ninguém sabia, nem os remédios de botica. Nem a fé, pois todas as tentativas eram amparadas com muita reza. A sinhá exigia que houvesse pelo menos uma preta sempre ao lado dela, desfiando o rosário, e que era substituída assim que a voz demonstrasse cansaço. Já tinha recebido visitas de médicos da capital e até mesmo da corte, que ficava a muitos dias de navio da Bahia, na província do Rio de Janeiro. Mesmo assim, todas as vezes que a sinhá ficava pejada, as crianças não vingavam. Só podiam ser abikus, e eles não iam querer ficar enquanto não fossem tomadas as providências. Mas eu é que não ia voltar a falar nesse assunto, uma vez que a Esméria já tinha me repreendido.
Uma noite, sonhei com a Taiwo, quero dizer, acho que era a Taiwo, vestida com a roupa que a sinhazinha Maria Clara tinha me emprestado, pois tive a mesma sensação de quando nos olhávamos nos olhos por sobre os ombros da minha mãe, em Savalu. Parecia eu, mas era a Taiwo, e estava feliz, olhando nos meus olhos e sorrindo, enrolando a barra do vestido em volta das pernas, de um lado para outro. Logo na manhã seguinte, enquanto eu ajudava a Esméria a torrar e moer o café, a Nega Florinda apareceu e, sem dizer nada além de um breve cumprimento, foi embora depois de me entregar um embrulho com o pingente que todo ibêji que sobrevive à morte do outro deve usar para conservar a sua alma, e mais uma pequena escultura, também em madeira, representando os dois Ibêjis juntos. Mostrei à Esméria e ela me levou de volta à senzala pequena, de onde quase todos já haviam saído, menos os dois moleques, o Tico e o Hilário, que ainda dormiam de roncar. Ela me ajudou a cavar um buraco no local onde estava a minha esteira, suficientemente fundo para atingir a base da parede que entrava para dentro da terra, e deixando um oco, como se fosse uma caverna. Foi assim que descobri como os pretos guardavam os seus santos, escondidos dos olhos dos brancos, e que todas aquelas paredes já deviam estar apoiadas em quase nada. Até a Esméria tinha lá os seus orixás, mesmo já estando acostumada aos santos dos brancos e tendo simpatia por alguns deles, como São Benedito, que era preto como nós, ou Nossa Senhora da Conceição, que se reza como Iemanjá, assim como São Jorge é Xangô e Santo Antônio é Ogum, ou São Cosme e São Damião, que são os Ibêjis. Depois que colocamos a esteira para esconder a entrada do buraco, ela me pediu para tomar bastante cuidado na hora de tirar meus Ibêjis de lá, para ter certeza de que não havia ninguém olhando. Caso contrário, eu arriscaria não só o meu esconderijo, mas o de todos os pretos, pois poderiam mandar fazer uma busca nas senzalas. O pingente de ibêji, ao contrário do que eu pensava, não representava uma criança, como ainda era a Taiwo quando morreu, mas uma adulta com peitos e racha, que era como ela deveria ficar se tivesse crescido. Manter a Taiwo viva, esse era o papel do pingente, ou amuleto, que eu trago sempre comigo, pendurado no pescoço. Dias depois, um Xangô foi se juntar aos Ibêjis no esconderijo, também presente da Nega Florinda.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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