quarta-feira, 27 de novembro de 2024

II [Sêneca]


1. Há muito tempo me pergunto silenciosamente, meu amigo Sereno, a que devo comparar tal estado de espírito, e descubro que nada mais se assemelha a isso do que a conduta daqueles que, depois de recuperados de uma doença longa e grave, ocasionalmente experimentam leves indisposições, e, embora tenham passado pelos estágios finais da doença, ainda têm suspeitas de que ela não os deixou, e embora em perfeita saúde ainda erguem o pulso para serem medido pelo médico, e sempre que se sentem calor suspeitam que a febre está voltando. Tais homens, Sereno, não estão doentes, mas não estão acostumados a estarem saudáveis; assim como um mar ou lago tranquilo, exibem uma certa ondulação quando suas águas estão baixando após uma tempestade.
2. O que você precisa, portanto, não é de nenhum desses remédios mais duros aos quais se fez alusão, não que em alguns casos você deva se controlar, em outros se irritar consigo mesmo, em outros se reprovar severamente, mas que você deve adotar o que vem em último lugar na lista, ter confiança em si mesmo, e acreditar que você está seguindo o caminho certo, sem ser levado de lado pelos inúmeros rastros divergentes dos errantes que o atravessam em todas as direções, alguns deles circulando pelo próprio caminho certo.
3. O que você deseja, não sofrer perturbação, é grandioso e sublime e se avizinha do divino. Os gregos chamam de euthymía essa calma firmeza de mente, e há o excelente tratado de Demócrito11: eu a chamo “tranquilidade”: pois não há necessidade de traduzir de forma tão exata quanto copiar as palavras do idioma grego: o ponto essencial é marcar o assunto em discussão por um nome que deveria ter o mesmo significado do seu nome grego, embora talvez não a mesma forma.
4. O que buscamos, então, é como a alma pode sempre seguir um rumo firme, sem percalços, pode estar satisfeita consigo mesma e olhar com prazer para o que a rodeia, e não experimentar nenhuma interrupção dessa alegria, mas permanecer em uma condição pacífica, sem nunca estar eufórica ou deprimida: isso será “tranquilidade”. Indaguemos de maneira geral como se poderia chegar a ela: desse remédio de uso comum você tomará quanto quiser.
5. Enquanto isso, devemos arrastar para a luz toda a doença, e então cada um reconhecerá sua parte: ao mesmo tempo, compreenderá quanto menos sofre pela sua auto depreciação do que aqueles que estão ligados por alguma afirmação pomposa que fizeram, e são oprimidos por algum grande título de honra, de modo que a vergonha, mais do que o seu próprio livre arbítrio, os obriga a manter o fingimento.
6. O mesmo se aplica tanto àqueles que sofrem de volúpia e de constantes mudanças de propósitos, que sempre gostam mais do que já desistiram, como àqueles que apenas bocejam e se alvoroçam: acrescenta-se a esses que, como os que dormem mal, se voltam de um lado para o outro e se acomodam primeiro de uma maneira e depois de outra, até que finalmente descansam por puro cansaço: na formação dos hábitos de suas vidas, muitas vezes terminam adotando alguns aos quais não são mantidos por nenhuma aversão à mudança, mas na prática da qual a velhice, que resiste à inovação, os pegou vivos: acrescente também aqueles que não são de modo algum inconstantes, mas que devem agradecer a sua inércia, não a sua coerência por serem assim, e que continuam a viver não da maneira que desejam, mas da maneira que começaram a viver.
7. Há outras formas especiais desta doença, mas que têm apenas um efeito, o de tornar as pessoas insatisfeitas consigo mesmas. Isso se origina de uma desordem mental e de desejos que se tem medo de expressar ou de não conseguir realizar, quando os homens ou não ousam tentar tanto quanto desejam, ou fracassam em seus esforços e dependem inteiramente da esperança: tais pessoas são sempre inconstantes e volúveis, o que é uma consequência necessária da vida em estado de suspense: tomam qualquer caminho para chegar aos seus fins, e ensinam e forçam a usar meios desonrosos e difíceis para fazê-lo, de modo que, quando a sua labuta foi em vão, são feitos infelizes pela desgraça do fracasso, e não se arrependem de terem ansiado pelo que estava errado, mas de terem ansiado por ele em vão.
8. Começam então a sentir arrependimento pelo que fizeram, e receiam recomeçar, e sua alma cai gradualmente num estado de vacilação sem fim, porque não podem comandar nem obedecer às suas paixões, de titubeio, porque sua vida não pode se desenvolver adequadamente, e de decadência, à medida que a alma fica estupefata pelas decepções.
9. Todos esses sintomas se agravam quando sua aversão a uma penúria laboriosa os leva ao ócio e aos estudos solitários, insuportáveis para uma alma ansiosa por participar dos assuntos públicos, desejosa de ação e naturalmente inquieta, porque, naturalmente, encontra em si poucos recursos: quando perde o prazer que o próprio negócio proporciona aos homens atarefados, não pode suportar a sua casa, a solidão, ou as paredes de uma sala, e se considera com aversão quando deixado a si mesmo.
10. Daí surge aquele cansaço e insatisfação consigo mesmo, aquele atirar-se de um lado para o outro de uma alma que não encontra descanso em lugar algum, aquela resistência infeliz e pouco disposta ao lazer forçado. Em todos os casos em que a pessoa se envergonha de confessar a verdadeira causa do seu sofrimento, e em que a modéstia leva a conduzir o seu sofrimento para dentro de si, os desejos se amontoam em um pequeno espaço sem qualquer ventilação se sufocam mutuamente. Vem daí a melancolia e o abatimento do espírito, e mil vacilações da alma instável, que é mantida em suspense por esperanças não satisfeitas, e entristecida pelas desilusões: vem daí o estado de espírito daqueles que odeiam sua ociosidade, reclamam que nada têm a fazer, e veem o progresso dos outros com o mais amargo ciúme: pois uma indolência infeliz favorece o crescimento da inveja, e os homens que não conseguem vencer a si mesmos desejam que todos os outros sejam arruinados.
11. Essa aversão ao progresso dos outros homens e o desapontamento dos próprios produz uma alma irada contra a fortuna, viciada em reclamar da época em que vive para se recolher em cantos e murmurar sobre sua miséria, até ficar doente e cansada de si mesma: pois a alma humana é naturalmente ágil e apta ao movimento: ela se deleita em cada oportunidade de excitação e esquece de si mesma, e quanto pior a disposição do homem, mais ele se deleita com isso, pois gosta de se desgastar com a agitação, assim como algumas úlceras anseiam pelas mãos que as machucam e se deleitam em ser tocadas, e a coceira gosta de qualquer coisa que a arranhe.
12. Da mesma forma, asseguro-lhes que essas mentes sobre as quais os desejos se espalham como úlceras malignas, têm prazer em labutas e problemas, pois há coisas que agradam ao nosso corpo e ao mesmo tempo lhe dão uma certa dose de dor, como se virar e mudar de lado antes de se cansar, ou se arrefecer em uma posição após a outra. É como o Aquiles de Homero deitado primeiro sobre seu rosto, depois sobre suas costas, colocando-se em várias posições, e, como as pessoas doentes não o fazem, não suportando nenhuma delas por muito tempo, e usando as mudanças como se fossem remédios.
13. Por isso, os homens empreendem andanças sem rumo, viajam por costas distantes e, em um momento, no mar, em outro por terra, procuram acalmar essa volubilidade de disposição que sempre está insatisfeita com o presente. “Agora vamos à Campânia: agora estou farto do bom cultivo: vamos ver regiões selvagens, vamos percorrer os bosques de Brútio e Lucânia”: no entanto, em meio a esse deserto, quer-se que alguma coisa de belo alivie os olhos mimados, depois de tanto tempo de morada em lugares selvagens: “vamos procurar Tarento com seu famoso porto, seu clima de inverno ameno e seu distrito, suficientemente rico para suportar até mesmo as grandes hordas dos tempos antigos”. Voltemos agora à cidade: nossos ouvidos há muito sentem falta dos seus gritos e ruídos: seria agradável também desfrutar da visão do derramamento de sangue humano.
14. Assim uma viagem sucede a outra, e uma visão se transforma em outra. Como diz Lucrécio: - “Assim todo mortal de si mesmo foge;” mas o que se ganha com isso, se não foge de si mesmo? Segue a si mesmo e se sobrecarrega com o seu mais pesado companheirismo.
15. Temos de compreender, portanto, que o que nos aflige não é culpa dos lugares, mas de nós mesmos: somos fracos quando há algo a suportar, e não podemos suportar nem o trabalho, nem o prazer, nem os próprios negócios, nem os de outrem por muito tempo. Isso tem levado alguns homens à morte, porque, alterando frequentemente seu propósito, são sempre levados de volta ao mesmo ponto e não deixam espaço para nada de novo. Estavam fartos da vida e do próprio mundo, e como todas as indulgências lhes apalparam, começaram a se perguntar: “Por quanto tempo vamos continuar fazendo a mesma coisa?”

Sêneca, em Sobre a Tranquilidade da Alma

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