Conta-se,
comprova-se e confere que, na hora, Joãoquerque assistia à Mira
frigir bolinhos para o jantar, conversando os dois pequenidades,
amenidades, certezas. Sim, senhor, senhora, o amor. Cercavam-nos
anjos-da-guarda, aos infinilhões.
E
estrondeou aí foi então do pacato do ar o: — Ô de casa! —
varando-a até à cozinha onde sobreditamente se fitavam Joãoquerque
e Mira, que tremeram tomando rebate.
Ô!
Renovou-se abrupto o brado, esmurrada a porta, ouvida também
correria na rua, após estampido de arma, provável à boca do beco.
Mira deixando cair a escumadeira trouxe ante rosto as mãos, por
ímpeto de ato, pois já as retorcia e apertava-as contra os seios;
sozinha ela residia ali, viúva recém, sem penhor de estado nem
valedio pronto. Joãoquerque encostou o peito à barriga, no brusco
do fato, mesmo seu nariz se crispou meticuloso.
Porque
a voz era a do vilão Ipanemão, cruel como brasa mandada, matador de
homens, violador de mulheres, incontido e impune como o rol dos
flagelos. De que assim lhes sobreviesse, mediante o medonho, era para
não se aceitar, na ilusão, nesses brios. Mas o destino pulava para
outra estrada. Mira e Joãoquerque e Ipanemão cada qual em seu eixo
giravam, que nem como movidos por tiras de alguma roda-mestra.
Deus
meu, maior mal à maior detença ou a subiteza, a, a, a, o Ipanemão!
dele era o que se passava, dono das variedades da vida, mandava no
arraial inteiro. Mira via o instante e adiante, desenhos do horror:
até hoje por isso não pode deixar de querer ainda mais, com
históricos carinhos, o seu hoje mais que ex-amante, Joãoquerque,
avergado homenzarrinho, que ora se gelava em azul angústia,
retornados os beiços, mas branco de laranja descascada, pálido de a
ela lembrar os mortos.
Ele
— o nada a se fazer — pegado pelos entremeios, seus órgãos se
movendo dentro do corpo, amarga grossa em fel e losna a língua, o
coração a se estourar feito uma muita boiada ou cachoeira. — Pai
do Céu! — e o Ipanemão era do tamanho do mundo — repetia,
falto de mais alma, no descer do suor. Ia-se o dia em última luz.
Onde estava sua cabeça?
Agora,
porém, portintim, ele a quem queira ouvir inesquecivelmente narra,
retintim, igual ao do que os livros falam, e três tantos.
Joãoquerque diz tudo.
De
que primeiro nada pensou, nulo, sem ensejo de ser e de tempo, nem
vergonha, nem ciúme, condenado, mocho, empurrado, pois. Mira mesma
mandou-o ir-se, com fechado cochicho, salvava-o; em finto tinha-se
apagado o fogo, reinava só no borralho o ronrom do gato. Ela se
ajoelhara, rezava, com numa mão a faca, pontuda, amolada, na outra o
espeto, de comprimento de metro.
Teria
ele de ganhar o nenhum rumo, para vastidão — Pai-do-Céu! —
não se lhe dando de largada cá a Mira, sem porto e paz, podia nem
com o vozeiro do Ipanemão, rompedor da harmonia, demoniático. E se
debatia já à porta dos fundos, custou-lhe rodar a tramela, no triz
de escape. Pôs-se para fora.
Pelo
escuro quintal corre Joãoquerque, com árvores diversamente e moitas
em incuido, nelas topava ou relava, às tortas de labirinto,
traspassoso o quintal que nunca se terminava, se é que só lá em
baixo, tão além, na cerca, onde houvesse depois o valezinho de um
riacho, Joãoquerque corria e, quase no fim — já desabalado
milagre era ele vencer o terreno, não conhecido — derrubou-se: no
tentar estacar, entrevendo acolá injustos vultos, decerto de uns dos
duros do Ipanemão, mas explicados mais tarde como sendo apenas o
touro e vacas, atrasados noturnos ainda pastando, de Nhô Bertoldo.
Joãoquerque,
caído, um pouco se ajuntou, devia de ter quebrado osso, não
aventurando apalpar-se, teimava em se esconder mais que as minhocas,
deu-lhe voltas a cabeça, os dentes como rato em trapos ou um tremer
maleitas, pelo frio, pelo quente, ofegava num esbafo de vertido
esforço sob os desapiedados pensamentos. Pior, errava o pensar, que
nem uma colher de pau erra o tacho; diz que se esquecera de tudo
nesta vida.
Isto
é, isso foi depois.
Por
ora, seca a goela e amargume, o doer de respirar, como um bicho
frechado. A vão querer escapulir, seguir derrota, imundo de vexame.
O Ipanemão não consentia, parecia ter-lhe já pulado por cima, às
distâncias — aonde que viesse, esse havia de o escafuar — nem
lhe valesse o fraquejo. Valia era sossegado morrer... — foi
o alívio que propôs-se, suando produzidamente. Ipanemão, cão,
seguro em enredo de maldade da cobra grande, dele ninguém se
livrava, nem por forte caso. O mais era com a noite — isto é, os
abismos, os astros. Joãoquerque prostrou-se, como um pavio comprido.
Estava
deitado de costas, conforme num buraco, analfabeto para as
estrelinhas. Foi nesta altura que ele não caiu em si. Tenho tempo,
se disse. Teve o esquecimento, máquinas nos ouvidos.
Veio-lhe
a Mira à mente; embuçou a ideia. Via: quem vivia era o Ipanemão,
perseguindo-o a ele mesmo, Joãoquerque, valentemente. Até os grilos
silenciavam. O silêncio pipocava. As corujas incham os olhos. Diabo
do inferno! — se representou, sem ser do jeito de vítima.
Remedava de ele próprio se ser então o Ipanemão, profundo. Tudo
era leviano, satisfeito desimportante. O medo depressa se gastava? —
caíra nas garras do incompreensível. Então, se levantou, e virou
volta.
Do
mais, enquanto, muito não se sabe.
Joãoquerque
remontava o quintal, desatento a tudo, mas de cauteloso modo: o sapo
deu mais sete pulos: se arrastava com fiel desonra. Não à porta da
cozinha, à casa, senão que à longa mão direita, renteava o outro
quintal, para o beco. Frouxos latiam uns cachorros.
Diante,
o galinheiro velho; e ele, ali, de palpa treva. Tirou risco o fino de
alguma luz: em machado, encabado, encostado, talvez até enferrujado
terrível. Ele não podia pegar em nada, pois com cerrados os punhos,
diabo-do-inferno! E o pé que continuou no ar. O machado, tal,
para tangimento, relatado em sua razão.
E,
então, que então, o que nenhuma voz disse, o que lhe raiou
pronto no ânimo. Mais já não parava assim, em al, alhures, alheio,
absorto, entrado no raro estado pendente, exilando-se de si. Por modo
de não hábito, pegou o machado. Diabo do Céu!... — queria
dar um assovio. A noite repassava escuro sobre escuros. Caminhou,
catou adiante.
Com
firme indireção, para maior coragem, pés de lobo. Como se fosse,
diabo-do-céu!, brincar de matar, de verdade, o chão na base
do passo. Passou-lhe o nada pela cabeça. Na rua, à vista de Deus e
de todo-o-mundo — cometeu-se. O resto, em parte, é contado pelos
outros.
De
que o Ipanemão lá dentro não se achava, mas, com mais dois,
defronte da casa, acocorado, à beira de foguinho, bebia e assava
carne, sanguinaz, talvez sem nem real ideia de bulir com a Mira. Ou
se distraía como o gato do rato, d’ora-a-agora.
Desreconheceram
o vindo Joãoquerque, por contra que tanto sabido e visto. Mais o
viam desvirado convertido.
Foi
aliás de modo imoderado, que ele se chegou, rodeando um perigo, com
cara de cão que não rosna, em sua covarde coerência: no não
querer contenda. Saudou, parou, pasmoso, como um gesto detém a
orquestra inteira.
Diz-se
que era o dia do valente não ser; ou que o poder, aos tombos dos
dados, emana do inesperado; ou que, vezes, a gente em si faz feitiços
fortes, sem nem saber, por dentro da mente.
Ipanemão
pendeu o rosto, desditado, os instantes hesitosos; aí foi revirando,
rodou-se, mesmo agachado, de moventes cócoras — pondo-se inteiro
de costas para o outro, do qual a esquivar olhar e presença.
Joãoquerque,
porém, o rodeou, também, lhe pediu — Olhe! — baixo, e,
erguendo com as duas mãos o machado, braz!, rachou-lhe em duas boas
partes os miolos da cabeça. Ipanemão, enfim, em paz. Até aquele
dia ele tinha sido imortal; perdeu as cascas. Os outros, viu-se, nem
de leve fugiram, gritaram somente por misericórdias, consoante não
deviam proceder.
Joãoquerque
se sentou, fez porção de caretas. Nunca aprendera a não cuspir,
não podia mais com tantas causas. Quer que dizer: os pés no chão,
a mão na massa, a cabeça em seu lugar, os olhos desempoeirados, o
nariz no que era de sua conta.
O
padre e Mira, dali a dois meses, o casaram. Conte-se que uma vez.
Guimarães Rosa, em Tutameia
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