I
Um
dia do mês de maio de 1842, numa das últimas janelas de uma casa,
que forma a esquina da rua Hautefeuille e da rua Serpente, estava
encostado um moço pensativo e melancólico.
Era
— para usar da expressão da Torre de Nesle — uma bela cabeça
que mais de uma rapariga teria visto passar em seus sonhos. Não uma
bela cabeça, à maneira dos keepsakes mas a pálida e inteligente
fisionomia que se encontra muitas vezes nas obras de Lemud e em seu
mestre Volfrand, além de outras; bem o sabeis, leitor, este ouvinte
atraente e grave do primeiro plano.
Percebia-se
a vida da alma através do invólucro do corpo; e depois de
contemplar aquele rosto que revelava o trabalho interior, não podia
haver engano, e era força exclamar: — É um artista ou um poeta.
Henrique
d’Auberseint era com efeito uma e outra coisa. Poeta, ele o era,
como todas as criaturas felizmente dotadas e maravilhosamente
organizadas para o sofrimento. Porquanto a alma do homem inteligente,
o coração do poeta, do artista ou do filósofo, é um alaúde que
vibra harmonioso e sonoro ao sopro de todas as paixões humanas,
grandes, fortes e belas.
Henrique
era, pois, poeta. Mas sobretudo era artista. Há nos cais, nas
exposições de amostras de certos comerciantes, essas fitas que não
estão seladas com um nome, mas que são obras-primas. Uma
obra-prima, assinada com um nome obscuro, será acaso uma obra-prima?
Obscuro — quanto nos temos votado a este rude trabalho, orvalhado
de suor do sangue, que se chama vida de artista — obscuro quer
dizer pobre. Henrique era pobre. Ah! Implacável e madrasta natureza,
bem faz aquele que te morde no seio para forçar-te a alimentá-la! É
andar — há de ser sempre feliz…
Henrique
foi perturbado em seu cismar por um rumor de passos precipitados que
se fez ouvir na escada. A porta da mansarda abriu-se bruscamente e
entrou uma mulher.
— Bagatela!
— exclamou o artista levantando-se e indo ao seu encontro.
— Onde
está ele? — pronunciou ela com uma voz entrecortada pela fadiga,
tomando a mão do mancebo e voltando para ele seus olhos obscurecidos
pelas lágrimas.
Henrique
não compreendeu ao princípio esta pergunta proferida de envolta com
um soluço aos seus ouvidos inquietos, e durante alguns minutos ele
contemplou Bagatela com admiração.
O
semblante da moça radiava neste momento com uma beleza sobrenatural
que não lhe era comum talvez. As grandes dores desfiguram, assim
como as grandes alegrias.
Ela
era bela, como uma bela virgem — com a elegância de maneiras e
fineza de trato de uma parisiense. Era bela, muito bela!
— Mas
o que acontece? pergunta Henrique com uma ansiedade, que crescia de
minuto em minuto.
— Mas
desapareceu! Há dois dias que não se tem notícias dele! —
respondeu Bagatela com um ar sombrio. E se meus pressentimentos não
se enganam, — ajuntou ela com um novo soluço e novas lágrimas —
morreu!
Henrique
soltou um grito.
— Tomai,
— continuou a moça apresentando-lhe uma carta — lede depressa…
eu vo-lo conjuro… Lede depressa… Acabam de ma entregar e é para
vós… Reconheci a letra do nosso amigo… Estive a ponto de
abri-la… Vede… Lede, Henrique, lede em nome do céu!
Henrique,
trêmulo, com os olhos perturbados, abriu convulsivamente a carta que
a moça lhe apresentara, e leu o que segue:
É
um morto que te escreve, meu caro Henrique, um verdadeiro morto, com
a tinta negra do Estígio lago, e com uma pena arrancada à asa de
uma qualquer ave noturna ou maligna, vampiro ou o que quiseres.
Não
grites, não lamentes, não chores. As lamentações ensurdecem, e as
lágrimas, vês-tu, são uma parvoíce… O fato está já consumado,
e não é mais possível uma volta:
— Quem
volta de tão longe?…
Faço-te
a minha derradeira confissão, com certos conselhos e certas
recomendações, que te peço tenhas sempre em vista.
Tive
uma mãe, como qualquer porteiro, mas, conquanto saibamos sempre que
procedemos de alguém — segundo a opinião de Brid’oison, estou,
todavia, embaraçadíssimo quanto a afirmar de quem sou filho. É
imoral, mas é verdade. Quanto ao meu nome — nada sei de legal —
pela ausência de qualquer declaração de meus autores nos registros
da municipalidade. Mas eu tenho um, fantasiado, todo ao acaso, entre
os nomes calendários: é — Máximo — nem mais, nem menos.
Máximo
— fui criado; Máximo — cresci; Máximo — vou desta para a
outra vida. Tu sabes, além disso, que entre a rapaziada chamava-me
Max, por enquanto a vida é tão curta… e inútil é alongá-la com
três letras realmente inúteis.
Isto,
quanto ao meu nascimento e quanto ao meu passado — um pouco
semelhante às origens do Nilo. Não sabendo donde vinha, compreendes
bem que eu nunca saberia onde ia. Um bastão tem sempre duas pontas;
— um começo e um fim. Por muito tempo embalei-me na esperança de
ter um fim e assemelhar-me, ao menos por aqui a um bastão. Eu
acreditaria de boa vontade na eternidade das rosas, mas sempre me
repugnou acreditar na eternidade da eternidade…
Se
eu não conheci os meus autores — em desforra conheci a vida —
triste conhecimento, entre parênteses. Tiveste muita vez um
espécimen de meu caráter fantástico e razoável. Eu era ao mesmo
tempo o mais jovial rapaz, e o mais aborrecido indivíduo que se
possa imaginar. Pamérgio forrado de Trenmor. Muitas vezes me
levantava com projetos fantásticos que, postos em execução teriam
feito arrebentar de riso a venerável estátua do Hospital. Muitas
vezes entrava para casa com o semblante pálido, enrugado — e
envelhecido horrivelmente. Lançava-me à cama, enchia de fumo o
cachimbo, fumava-o e atirava-o pela janela com uma raiva surda —
sem respeito à sua cor poética de bistre. Nesses dias eu seria
capaz de devorar um policial — com as bandeirolas, mas sem as
botas, entretanto.
Não
repares nos arabescos do meu estilo; estes gracejos são um vestido
de arlequim — o coração palpita embaixo. Hoje, ao escrever-te,
sinto-me disposto a rir e rio-me. Vale isso mais, acredita-me, do que
atirar poeira ao céu, como os Gracos. É meia-noite, acabo de
encontrar alguns frangos éticos, fugindo de mim nas ruelas sombrias
da Cité. Deu-me isso uma alegria! Por quê? Ah! sim, porque! sempre
este ponto de interrogação!
Abro-te
a porta da alcova dos meus sentimentos; não é a primeira vez, mas a
última. Passava uma vida de tédio neste planeta, e além disso
tenho um instinto viajor que me impelia sempre para as estepes
infinitas do incógnito. Corro para lá, em teus braços, grande X.,
corro para lá, abre-os bastante!…
Estou,
pois, a esta hora em marcha para a famosa viagem ao campo de que
falam alguns. O abade de Saint-Pierre. Eu mesmo me forneci um
passaporte inglês de Wester; não encontro, embora, alfândegas nas
fronteiras da vida!… Meti audaciosamente a mão na urna do destino
— e antes da minha hora — subtraí — o meu número… Eis tudo!
Agora
falemos um pouco de ti — e dela, dela! dela!… Prometi-te um
conselho, vou dar-to. Tu tens talento, Henrique, um grande talento:
confirma-o perante a multidão, ela não achará dificuldades em
acreditá-lo. Foste talhado por um Deus de Homero; em três passos
atingirás ao termo, mas é preciso dar o primeiro; mãos à obra, os
outros dois é apenas uma pernada.
Isto
quanto ao conselho. Agora aos legados. Faço-te meu herdeiro
universal. Tudo o que existe em minha oficina é teu. Sabes o que
valem as telas de um artista morto? As minhas te ajudarão a viver.
Vende-as!
Leva
à Bagatela aquela pintura que eu fiz ligeiramente um dia em sua
casa… Mostra-lhe esta carta, consola-a, ama-a, protege-a;
responder-me-ás por ela.
Bagatela
é a escolhida de meu coração… Um dia, em que ela estava triste e
eu alegre, dei-lhe este nome de Bagatela que prevaleceu sobre o seu
de — Gabriela. Peço-lhe que o conserve, é minha vontade; fui eu
que lho deu! Tu e ela foram para mim o mundo. Ela era o amor — tu,
eras a amizade. Por que me não bastavam estas duas felicidades? Por
quê? ainda este maldito ponto de interrogação…
Assim,
chego à recomendação que te queria fazer: — é grave, é um
morto que ta faz, Henrique. Cumpre obedecer religiosamente. Que
Bagatela seja tua irmã, Henrique; sê o seu protetor, seu amigo, seu
pai — mas, nada mais. Pensai em mim algumas vezes e entretanto sede
ambos fiéis à minha memória
Dixi
— Adeus, Henrique, adeus, Bagatela, adeus …
Máximo
— vulgo o Velho!
“Todo
como o velho Palma !…”
II
— Morto!
— murmurou Auberseint com uma voz sombria. — Morto sem me ter
apertado a mão!
— Morto!
repetiu por sua vez a moça — meus pressentimentos não me
enganaram… Meu Deus! Meu Deus!…
Pronunciando
estas palavras, vacilaram-lhe os joelhos; a trepidação compulsiva
de seu corpo tornou-se mesmo tão violenta que se Henrique não a
tivesse retido nos braços ela rolaria pelo chão.
— Gabriela!
Gabriela! — gritou Henrique com um desespero cheio de solicitude.
— Ah!
Max! querido Max! — soluçou Bagatela — Max por que nos deixas
assim?
— Como
ela o ama! — murmurou Henrique — Feliz morto!
— Ah!
Henrique — tornou Bagatela — não sabeis o que perco eu na morte
dele! aquele nobre espírito, com o nobre coração… Eu lhe devia
tanto, que nem todos os amores, e adorações bastariam para
pagar-lhe!… Não o sabíeis, Henrique, pois que a sua delicadeza
com semelhante confissão teria sofrido. — Ele levantou-me da
calçada em que eu estava na rua, uma noite de inverno, eu tiritava
de frio, tinha fome, e minha mãe acabava de morrer… Nossa
história, a minha e de minha mãe — não vo-la contarei… é
banal como a miséria, simples como a dor!… Eu estava pois na rua —
exposta ao vento e à neve, desfalecida, semimorta e quase louca!…
Máximo passou. Quando ele viu as lágrimas que corriam pelas minhas
faces azuladas pelo frio, quando ele viu a minha miséria e o meu
desespero, levou-me para a sua casa de artista, deu-me a chave dela,
e pelo espaço de três meses, foi para comigo respeitoso, benfeitor
e dedicado. Procurou-me trabalho… Enfim, uma manhã bateu à minha
porta — “Minha menina — me disse ele com tristeza — é
preciso que nos separemos… Tenho uma má reputação, ao que
parece, e é mister que a vossa não sofra. Não deveis desmerecer
aos olhos das pessoas de bem… Aluguei para vós, em vosso nome, na
rua do Oeste, uma pequena habitação — donde se descortinam os
jardins de Luxemburgo e onde eu vos pedirei como um favor — a
permissão de ir algumas vezes, como amigo…”
— “Oh!
sempre, senhor Máximo! sempre quando quiser… Eu não sou senão o
que me fizeste: uma costureira modesta e feliz por viver do produto
de seu trabalho… Esta ventura.., eu vo-la devo… Deus vos abençoe
por isso!”
— Eis
aqui o que eu respondi a Max com as lágrimas nos olhos, ajuntou
Bagatela.
— Bem
sabeis, Henrique, como foi nobre e desinteressada a conduta do nosso
amigo… Eu o amava — nunca lho disse… mas dir-lho-ia um dia se
ele esperasse um pouco… Acreditou talvez na minha frieza, na minha
indiferença, e contudo Deus sabe com que gratidão eu aceitaria a
oferta de seu coração e de seu nome!
Bagatela
calou-se. Era grande a sua emoção na evocação destas recordações.
Com
efeito, ela amara tão ingenuamente Max! como Gretchen ela fizera
tanto por ele — que ele já nada lhe tinha a fazer… Porém Max
tinha cousas singulares no cérebro… amava profundamente Bagatela…
cercara-a sempre de cuidados delicados de atenções ternas, mas
sempre de mistura com uma espécie de respeito. Ela era para ele mais
que uma irmã e menos que uma amante. Quando trabalhava, entre ela e
Henrique, ele lhe lançava de vez em quando um olhar paternal e
amoroso ao mesmo tempo, e murmurava depois: “Há de ser minha
mulher!”
— Oh!
Max! Max! murmurou de novo Bagatela.
— Ah!
feliz morto! — murmurou de novo Henrique.
Na
tarde desse dia, o jornal — O Mensageiro — publicou estas linhas:
— “Acabamos de saber da desaparição de Mr. Máximo — vulgo o
Velho — Mr. Máximo tinha há algum tempo acessos de febre ardente
e tudo faz crer que em um desses momentos pôs fim aos seus dias… É
uma perda imensa para a arte de que Mr. Máximo era um digno
representante… Cumpre registrar a sua morte no martirológio dos
grandes pintores — que o desespero, uma paixão continuada ou
qualquer outra cousa levaram ao suicídio… Depois de David, morto
longe da Pátria, depois de Gros — agonizando no Sena, depois de
Leopoldo Roberto, que se degolou em Veneza — depois de Gericault
Sigalon, citamos o fim doloroso de Mr. Máximo!
É
assim que se escreve a História!”
Alguns
meses se passaram e — é mister confessá-lo para vergonha eterna
deste pedaço de caoutchouc (borracha) que se chama coração humano
— e cada dia levava consigo uma porção do amor e da amizade que
Henrique e Bagatela votavam a esse pobre Max, morte sem dúvida, para
os fazer felizes.
Toda
a dor desaparece com o tempo por mais profunda que seja… cedo os
pesares deixam de manchar o estofo cambiante da existência… Nem
custa a desembaraçar a alma das recordações, que ligam ainda os
vivos aos mortos… Assim, vai o mundo! Ontem, dor que parecia ser
eterna, — sim, eterna como a aurora; hoje, esquecimento total das
criaturas extintas, e cuja presença, além disso, seria importuna!
E, realmente, os mortos são bem maçantes personagens em exigir uma
memória sua sobre a terra. Para quê?
Todavia,
não nos devemos apressar em deitar a primeira pedra da exprobração
a essas duas pobres crianças. Max não estava totalmente morto na
memória e no coração de Bagatela e de Henrique. Este último,
sobretudo, quase às portas da miséria, apesar da herança que lhe
deixara seu amigo, parecia acabrunhado por um remorso secreto de
resto, bem fraco pela idéia de que Bagatela não partilhava seu
criminoso amor. Primeiro que tudo, por uma dessas delicadezas do
coração, que os amantes hão de compreender — tinha perdido o
hábito de pronunciar esse nome de Bagatela sob o qual Max amara a
mulher que ele amava também, posto que sem esperança. Em segundo
lugar perdera ele também o hábito de se dirigir para o lado da casa
de Bagatela.
Esta,
por seu turno, não ousara queixar-se deste apartamento, mas
lastimava-o porque o viu sofrer, e as mulheres que têm uma missão
sobre a terra de mansidão, de comiseração, de afetuosidade, nunca
faltam a ela. Bagatela sabia que Henrique era pobre e orgulhoso, e
atribuía à sua miséria, que ele quisera suavizar, a dureza e
grosseria que mostrava. Somente de vez em quando afligia-se a pobre
moça com seu silêncio tenebroso, quando o interrogava delicada e
amigavelmente sobre as causas dessa dor que o minava surdamente…
Henrique não podia confessar-lhe que era o seu amor por ela a causa
única de seus tormentos e de seus combates de cada dia. Não ousava
confessar-lho receando chamar sobre si sua cólera e desprezo…
Belas, completas, e ingênuas eram aquelas naturezas! Como Henrique
se assemelhava a esses D. Juans que inundam os salões e os
bastidores, e que imaginam como Hans Svederlick, que não há honra
nem favor que não possam colher, querendo para eles, “toda a
galante flor!” Pobre namorado! pobre poeta! pobre artista!
Compreendendo,
enfim, que aquele amor o mataria, Henrique resolveu um dia matar-se e
acabar com um golpe suas irresoluções e sofrimentos. Mas, ele não
queria morrer na rua para ser transportado e exposto figura hedionda
— sobre as hediondas tábuas da Morgue! Não!… a morte na sua
pequena mansarda, ao pé de seus quadros, de suas obras: — na sua
mansarda ainda perfumada com a presença de Bagatela: na sua
mansarda, onde ele vivia com a imagem adorada, onde ela chorara; e
onde lhe apertara a mão ao despedir-se! Essa morte, sim, valia a
pena!
Além
disso, ele morria descansado sobre a sorte dessa mulher por quem ia
morrer; porquanto no primeiro dia de cada mês, à noitinha, um
velho, cujo semblante austero e melancólico causava respeito,
apresentava-se em casa de Bagatela, dava-lhe um rolo de 150 francos,
rendimento mensal que lhe deixara Max; depois retirava-se
cumprimentando, mas sem proferir uma palavra.
Uma
noite, pois, Henrique entrou em casa resolvido a pôr termo à
existência que o acabrunhava. Acendeu a lâmpada, correu os
ferrolhos da porta, que não se fechava de todo, e depois de algumas
disposições testamentárias, tomou uma pistola que pusera ao entrar
em uma mesa e carregou-a…
— Amo-a
muito, murmurou ele penivelmente, para não persistir em minha
resolução… Sede fiel à minha memória! — disse Max.., serei
fiel à sua memória… vamos… Daqui a poucos minutos estarei de
jornada para a eternidade!… Ele gracejava nos seus últimos
momentos… Max! Tinha essa coragem… Ah! É que era amado! Por que
matou-se? Eu nunca ousara conceber esta esperança que faz minha
alegria e suplício… Adeus, pois, vós todos objetos queridos que
vou abandonar, adeus!
Henrique
inclinou orgulhosamente a cabeça. No momento em que colocava na
fronte o cano da pistola, bateram na porta. Abaixou a arma e esperou.
Bateram de novo, mas com uma violência inaudita. E a porta rodou
sobre os gonzos…
— Henrique!
que íeis fazer? — exclamou Bagatela, precipitando-se ao mancebo e
arrancando-lhe a pistola.
— Bem
o vedes! — respondeu ele com uma voz surda — ia morrer!
— Morrer!
tu, Henrique! oh! não deves morrer… eu to proíbo!
Dois
olhos e dois lábios que dizem eloquentemente: — vivei! têm o
direito de serem ouvidos. Henrique sentiu desvanecerem-se as suas
veleidades de suicídio… sobretudo quando Bagatela ajuntou:
— Há
muito tempo que eu adivinhei o teu amor — porque eu também te
amava; sofrias, dizes tu? E eu? Eu! acreditas então que eu não
houvesse mister de coragem, ou antes de crueldade, para deixar-te
assim esperar-me, sofrer e chorar? Combatias contra o vão fantasma
de um passado que lá vai… lutavas com um remorso que não deve
mais pesar em teu coração, agora que eu venho a ti, e te absolvo!
Se é um crime esse nosso amor, meu doce amigo, tomo sobre mim a
responsabilidade e a vergonha… Podemos ser felizes de hora avante,
Henrique, pois que eu sou rica… um parente de minha mãe deixou-me
uma herança… É uma bênção do céu! não teremos mais
necessidade dos benefícios póstumos de Máximo.
Mr.
Heine tem razão: “Todos sabem o que são cacetadas; mas o que é
amor, todos ainda ignoram!”
— Gabriela!
— respondeu Henrique com um desespero misturado de tristeza. —
Fugi, deixai-me só… Há entre nós uma barreira que não podemos
transpor… a lembrança de Máximo?
— Mas
tu não me amas, Henrique?
— Não
te amo! Mas não é por ti que eu quero morrer? Deixa-me… não
quero ser perjuro!… vai-te!
— Ficarei
aqui! — disse Bagatela com uma voz resoluta. — Há oito dias que
te espero… oito séculos! pois que eu os contei… Tu não me
procuraste… procurei-te eu… Venho dizer-te: separados, éramos
infelizes; reunidos…
— Oh!
não acabes, Gabriela.
— Então
morramos ambos morramos…
— Ainda
não, meus filhos — disse uma voz.
Bagatela
e Henrique voltaram-se e viram, a primeira com medo, o segundo com
espanto, aproximar-se um velho, cujo casacão pardo e cabelos brancos
tinham um ar respeitável.
— O
desconhecido! — murmurou a moça.
— Senhora,
eu vos saúdo — disse o velho com uma voz trêmula e um pouco
desfalecida. — Bom dia, Senhor! estão ambos espantados… que
tínheis! Queríeis morrer, meu jovem amigo? Ah! fora com isso! é
bom para os maníacos, e vós tendes juízo.
— Ah!
esta voz! esta voz!… — exclamaram Bagatela e Henrique.
— É
a de um homem que vos ama e quer a vossa felicidade, meus filhos… —
retrucou o velho; — eu soube apreciar-vos ambos, há bastante
tempo, posto que pouco me conheceis. Mr. Máximo, de quem fui amigo
outrora, deixou-me o cuidado de velar sobre vós… Obedeci-lhe
religiosamente… Vós que sois tão dignos um do outro, — (aqui a
voz do velho fez-se um pouco irônica, o que não notaram os nossos
amantes; tão ocupados estavam em recordar-se onde tinham ouvido essa
voz tão fresca e suave ainda, apesar de seu abalo tremor de ancião)!
Vós que sois tão dignos um do outro… ide tocar a meta da ventura!
eis aqui o vosso dote… não é considerável… porém Max ficará
satisfeito — lá em cima, se o aceitardes…. É a última
recordação que ele vos dá… Minha missão está terminada… O
que vos peço ainda, em nome de Max, é de vos lembrardes algumas
vezes, de vez em quando, quando não tiverdes outra coisa a fazer…
nas vossas horas de tédio, ou de prazer, que um homem existiu, que
vos criou, e levou consigo a consolação de ter ao menos as vossas
saudades… é bem pouco uma recordação… e bem pouco uma lágrima…
Fazei algumas vezes essa melancólica esmola dos vivos a um morto,
que só tem aqui na terra uma preocupação: — a vossa ventura.
Adeus, só me vereis ainda uma vez, no dia do vosso casamento; até
mais ver, meus filhos e… até mais ver!….
E
sem esperar uma resposta de Bagatela ou de Henrique, o velho
desapareceu.
— Henrique,
murmurou Bagatela com uma doce melancolia. Henrique… bem o vedes…
Nada mais se opõe à vossa ventura… Mas não vos quis legar um
remorso…
Coisa
estranha! — justamente em razão daquela absolvição que Max dera,
de além-túmulo aos seus criminosos pensamentos, Bagatela e Henrique
sentiam a consciência agitar-se, e apenas o artista morto levantava
os seus escrúpulos eles renasciam mais vivos em suas almas…
— Oh!
Max valia mais do que eu! — respondeu Henrique, voltando a cabeça,
para ocultar à Bagatela a vista de uma lágrima que lhe resvalara
furtivamente na face.
III
Um
mês se tinha passado e em uma capela da Igreja de S. Sulpício, um
padre abençoava dois jovens que tomavam diante de Deus o cargo de se
amarem até a morte.
A
um canto da capela estava um velho imóvel, com o pescoço estendido,
que seguia com o olhar febril e quebrado cada movimento dos novos
esposos que eram Bagatela e Henrique… apenas a moça pronunciou
corando de ventura o sim fatal, o velho estremeceu e a sua fisionomia
exprimiu uma angústia dolorosa…
Terminada
a cerimônia dispersou-se a multidão. Bagatela estava radiante com o
vestido azul do céu que parecia abençoar esta união e sorrir a
esta festa. Henrique tinha por momentos, um ar pensativo e triste e
quando subiu para o carro, procurou e fez procurar por toda parte o
velho; mas ele tinha desaparecido.
Enquanto
os noivos se iam de seu lado contentes e brilhantes, ele apressava o
passo com um ar sombrio, para chegar mais depressa.
Subiu
uma escada de uma casa da rua dos Mártires, abriu uma porta e
achou-se em uma oficina povoada de quadros, de estátuas, e objetos
de arte. Parou então, pôs a mão sobre o coração e contou as
pancadas. — Tudo está acabado! murmurou ele com uma voz quebrada.
— Ela e ele são felizes… Está bem…
E
ficou entregue a uma meditação profunda que tinha por fim
incessante uma determinação terrível.
— Nada
de saudades estéreis! Nada de desejos quiméricos! — disse ele
contemplando com olhar quebrado e resignado as nuvens que purpureavam
o horizonte — lá vai o tempo das saudades e desejos… agora é a
agonia… é a morte… a morte! Oh! ela já está em mim… em mim
todo!
E
pôs a mão sobre a fronte!
— A
inteligência, esse archote soberbo que irradia isoladamente ao lado
do próprio sol?… Está apagada em mim…
Pôs
a mão no coração:
— O
coração, esse diamante precioso que nada altera… Meu coração!
quebrou-se em mil pedaços, como vidro…
Sorriu
amargamente e continuou:
— Ah!
os cantos de meu coração, e as marcas da minha vida são como cipós
da Via Apiena: não há mais que cinzas e aqui jaz! Sobre os
destroços dos meus amores e de minhas esperanças, só tinha de
dormitar agora… Ah! a vida é feita de abrolhos e espinhos…
Pobres ovelhas que o invisível pastor leva ao matadouro da morte,
deixam lã a cada espinheiro, sangue a cada fonte de pedra… Pus o
dedo sobre a ventura e a ventura fugiu-me para não voltar mais…
As
divinas promessas do amor esvaneceram-se ao sopro gelado da
indiferença… como eu era insensato! crer na coragem de Henrique e
na virtude de Bagatela! Oh! queridos ídolos derrocados! Mas para que
inventar Galatéas impossíveis? por que quis eu apoiar a ventura de
toda a minha vida na areia movediça das paixões? — Quis, fatal
pensamento! — submeter o amor de um e a amizade de outro à pedra
de toque da ausência, e essa experiência provou-me o egoísmo
dessas duas afeições sem as quais eu não podia viver… No fundo
da ânfora onde as lancei ambas, resta um pouco de ouro puro e muita
terra…
Não
me amam mais, não me podem mais amar… E é tal o desencanto
horrível de minha alma que nesta hora solene chega a duvidar que
eles me amassem!… Mas que importa? Eu os amava, eu os amo ainda,
ingratas crianças que me esqueceram tão depressa!… E a sua
virtude me é cara, apesar de haver quebrado a minha… Ah! a
ventura! a ventura! — repetiu ele com violento furor — a ventura!
… por ventura nós a conhecemos — nós os eleitos, os
predestinados, os gloriosos, cuja vida é um calvário de estações
dolorosas… A ventura nunca vem cedo; chega mesmo tarde demais. É
um viajante descuidado e fantástico, que não sabe onde vai, onde
deve comer, onde deve dormir, e que uma noite vem por fantasia bater
à nossa porta. Mas já a velhice cá estava: a cabeça está calva,
os olhos sombrios, a boca fechada; nós nos habituamos à imobilidade
da sepultura, pela imobilidade da idéia. Todavia abre-se a porta a
esse viajante estouvado e falador que para vir à nossa casa
solitária toma um caminho mais longe… que retardou-se na viagem a
cercar com as mãos as cinturas das jovens aldeãs encontradas, e a
contar-lhes loucas histórias que as fizeram corar — de prazer!
Abrimos a porta mas, rosnando; por que temos reumatismos: abrimos
rosnando e tossindo, escandalizados das risadas intempestivas e da
alegria extravagante desse hóspede, cuja vinda, que nos importuna
tantas vezes, há bom tempo saudamos com efusão e gratidão… Não
lhe compreendemos o falar… Já nos é um estrangeiro; mais que um
estrangeiro mesmo, um inimigo; por que sua presença agora em nossa
casa é uma ironia amarga, é um insulto. Mas não somos maus; não
sabemos sê-lo; a dor habitua à bondade; e em vez de dizer a esse
estranho que nos perturba o sono de ancião, batendo precipitadamente
na porta fechada de nosso coração: “Já não vem a tempo!” —
dizemos-lhe melancolicamente: — “É bastante tarde!”
— Ah!
coisa terrível.., coisa terrível… a ventura!
Durante
um instante ficou ele com a cabeça entre as mãos crispadas; depois
continuou com os olhos mais úmidos de lágrimas, porém mais
enternecidos:
— Ouço
soar em meu coração sinfonias inebriantes da mocidade, como um
alegre concerto de vozes amadas… Ouço minhas alegres e frescas
recordações de mancebo bater carga e rolar louca e impetuosamente
por meu pobre cérebro… Ah! toque insensato, amante risonho dessas
recordações, dessas sinfonias me fazem mal!… Quero dormir o meu
último sono, embalado pelo pensamento de que meu fantasma doce e
triste atravessará talvez a vida de Henrique e Bagatela, e deixará
um vestígio perfumado em seus corações… Ah! ainda vem ver, por
que tentei essa prova maldita?… Antes de morrer experimentei a
morte… Magoadora experiência! não sei se devo alegrar-me com ela,
pois eles são felizes, ou entristecer-me uma vez que morro! Oh! meus
ídolos! ídolos amados, caístes do pedestal em que vos elevei!…
Eu devera morrer logo… teria lançado a campo, crença, fé,
ilusão!… não assistira à tua fraqueza Henrique! não assistira à
tua queda, Gabriela!…
Depois,
desembaraçando-se do vestuário do velho que o incomodava, Max
dirigiu-se pálido, grave, com a fronte carregada de ideias
sinistras, para o fundo da sua oficina e para diante de uma tela
branca que parecia esperar dele o movimento e a vida…
O
rosto viril do artista refletiu, nesse instante, as torturas sem
nome, as angústias horríveis, as dores inauditas que lhe rasgavam a
alma desde o dia em que voluntariamente deixara Henrique e Bagatela…
Estava acostumado ao uso das decepções como Mitrídates ao uso dos
venenos; mas desta vez a dose era forte demais: matava-o!…
Nesse
instante, ele odiava a vida com todas as forças que lhe restavam…
desenganado deste mundo, chegava quase aos lábios a taça fatal
quando o vento lhe trouxe o eco fraco de um canto lançado no espaço:
Pôs-se a escutar. A voz dizia:
Debalde
semeei formosas crenças.
Nem
um raio de sol desceu-me aos prados!
Veio
a dor às campinas da esperança
Como
vai joio ao trigo.
— É
a voz de um poeta! — murmurou Max com um melancólico sorriso. —
Não sou só eu a sofrer!
Chegou-se
depois ao seu cavalete, tomou os pincéis e na tela colocada em
frente dela construiu em uma hora, que passou como um relâmpago —
o poema melancólico e pungente de sua vida despedaçada ainda no
começo… Evocou por um momento os dois entes adorados que tinham
vindo um após outro cravar-lhe o punhal no coração… E essa tela
animou-se como por encanto! Iluminou-se de reflexos fantásticos e
vertiginosos! Max dava assim o derradeiro esforço de seu gênio, o
último grito de sua alma, a última vibração de seu coração…
Mas
esse esforço sobrenatural devido à febre e ao desespero, esmagou-o…
Ele arrastou-se até a janela para contemplar ainda uma vez o céu
que lhe negava, como suprema consolação, fechar os olhos nos seios
de uma mulher, e nos braços de um amigo; palpitava-lhe o peito
convulsivamente…
Grossas
nuvens pardas, levadas por um vento. Estas acumulavam-se no horizonte
como uma massa de neve. O sol, em seu ocaso, espalhava sobre a cidade
uma cor sombria em harmonia com as sombrias ideias do artista…
— Vamos!
— exclamou ele voltando à mesa onde depusera ao entrar um pequeno
frasco contendo um licor escuro. — Que o sacrifício se consuma!
Agora que todas as afeições estão mortas, que as minhas ilusões
estão extintas, vou extinguir-me com elas, como elas vou morrer… O
aventureiro Gabor tinha razão: — “A vida é uma caçoada
amarga!…”
E
de um trago, o heroico artista absorveu o licor do vidro que
descompôs-lhe o semblante rapidamente.
Corria-lhe
o olhar sangrento e úmido de um a outro objeto, roçando de leve
muitas recordações que se prendiam a duas criaturas queridas e
amadas demais.
De
repente, esse olhar moribundo parou na tela deslumbrante em que seu
gênio lançara a última palavra… Parecia-lhe que legar aos vivos,
aos indiferentes, aos felizes o admirável poema que ele esboçara
seria uma profanação, um sacrilégio, uma impiedade e reunindo
então as poucas forças que lhe deixava o veneno, arrastou-se
penivelmente até o cavalete, tomou uma faca e em um sublime e último
esforço rasgou e despedaçou freneticamente a tela… Depois seus
braços se torceram, os dedos se lhe crisparam, soltou um grito
surdo, um grito de angústia e de saudades supremas que o eco
repetiu.
— Tudo
acabara.
Machado de Assis, em Contos avulsos
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