sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A leste do Éden | 3


[ 4 ]

Não houve conversa durante a ceia. O silêncio só foi perturbado pelo sugar da sopa e pelo ruído da mastigação, e seu pai agitou a mão para tentar afastar as mariposas da chaminé do lampião de querosene. Adam achou que seu irmão o observava secretamente. E captou um lampejo no olhar de Alice quando ergueu a vista subitamente. Depois que terminou de comer, Adam empurrou a cadeira para trás.
Acho que vou dar uma volta — disse.
Charles se levantou.
Vou com você.
Alice e Cyrus os viram sair pela porta e então ela fez uma de suas raras perguntas. Indagou, nervosa:
O que foi que você fez?
Nada — disse ele.
Vai obrigá-lo a ir?
Sim.
Ele sabe?
Cyrus olhou desolado a porta aberta para a escuridão.
Sim, ele sabe.
Ele não vai gostar. Não será bom para ele.
Não importa — disse Cyrus, e repetiu em voz alta: — Não importa. — E seu tom dizia: “Cale a boca. Não é da sua conta.”
Ficaram em silêncio por um momento e então ele disse quase em tom de desculpa:
Não é como se ele fosse seu filho.
Alice não respondeu.
Os garotos caminharam ao longo da estrada sulcada e escura. À frente podiam ver algumas luzes bruxuleantes onde ficava o vilarejo.
Vamos ver se tem algo acontecendo na estalagem? — perguntou Charles.
Não havia pensado nisso — disse Adam.
Então por que diabo está saindo de noite?
Você não precisava vir — disse Adam.
Charles se aproximou dele.
O que foi que ele disse a você esta tarde? Vi vocês caminhando juntos. Que foi que ele disse?
Só conversou sobre o Exército, como sempre.
Não me pareceu isso — disse Charles, desconfiado. — Eu vi que ele se curvava sobre você, falando como fala com homens, não discursando, mas conversando.
Estava discursando — disse Adam com paciência, e teve de controlar o fôlego, pois um pouco de medo acabara de se apossar do seu estômago. Respirou tão fundo quanto podia e prendeu o ar para conter o medo.
O que foi que ele lhe contou? — insistiu Charles de novo.
Do Exército e do que é ser um soldado.
Não acredito em você — disse Charles. — Acho que é um grande mentiroso e fingido. O que está tentando esconder?
Nada — disse Adam.
Charles falou duramente:
A doida da sua mãe se afogou de propósito. Talvez tivesse dado uma boa olhada em você. Foi o suficiente.
Adam soltou o ar dos pulmões suavemente, esmagando o medo horrível. Ficou em silêncio.
Charles gritou:
Você está tentando levá-lo embora! Não sei como está armando isso. O que acha que está fazendo?
Nada — disse Adam.
Charles saltou à frente dele e obrigou Adam a parar, seu peito quase contra o peito do irmão. Adam recuou, mas cuidadosamente, como alguém que se afasta de uma cobra.
Lembra do aniversário dele? — gritou Charles. — Juntei quase um dólar em moedas e comprei-lhe um canivete fabricado na Alemanha, três lâminas e um saca-rolha, com cabo de madrepérola. Onde está o canivete? Já viu usá-lo? Ele deu para você? Nunca o vi nem afiá-lo. Você está com o canivete no seu bolso? O que foi que ele fez com o canivete? “Obrigado”, ele disse, assim mesmo. E foi a última vez que vi o canivete alemão que me custou setenta e cinco centavos.
Havia raiva em sua voz, e Adam sentiu o medo invadi-lo; mas sabia também que lhe restava um momento. Muitas vezes vira a máquina destruidora que derrubava tudo o que estivesse de pé à sua frente. A raiva vinha primeiro e depois uma frieza, um autodomínio; olhos evasivos e um sorriso satisfeito e nenhuma voz, apenas um sussurro. Quando aquilo acontecia o assassinato estava a caminho, mas um assassinato frio, destro, e mãos que trabalhavam com precisão, com delicadeza. Adam engoliu a saliva para umedecer sua garganta seca. Não podia pensar em nada para dizer que fosse ouvido, pois assim que embarcava num acesso de raiva seu irmão era incapaz de ouvir. Avolumava-se sombriamente diante de Adam, mais baixo, mais largo, mais gordo, mas ainda não agachado. À luz das estrelas seus lábios úmidos brilhavam, mas não havia sorriso ainda e sua voz continuava a rugir.
O que foi que você fez no aniversário dele? Acha que não reparei? Chegou a gastar setenta e cinco ou cinquenta centavos? Você lhe trouxe um filhote de vira-lata que achou no quintal. Você riu como um idiota e disse que daria um bom cão de caça. Aquele cão dorme no quarto dele. Brinca com ele quando está lendo. Treinou ele direitinho. E onde está o canivete? “Obrigado”, ele disse, apenas “Obrigado” — falou Charles num sussurro, e seus ombros caíram.
Adam deu um salto desesperado para trás e ergueu as mãos para proteger o rosto. Seu irmão moveu-se com precisão, cada pé plantado com firmeza. Um punho avançou delicadamente para calcular a distância, e então o trabalho amargo e glacial — um golpe duro no estômago, e as mãos de Adam abaixaram; e então quatro socos na cabeça. Adam sentiu o osso e a cartilagem do nariz se esmigalharem. Levantou as mãos de novo e Charles acertou no seu peito. E durante todo esse tempo Adam olhava para o irmão como o condenado olha sem esperança e com espanto para o carrasco.
Subitamente, para sua própria surpresa, Adam lançou um golpe maluco e inofensivo com as costas da mão sem força nem direção. Charles abaixou-se e o braço desnorteado envolveu o seu pescoço. Adam abraçou-se ao irmão e ficou agarrado a ele, soluçando. Sentiu os punhos fortes fustigando náusea no seu estômago e aguentou firme. O tempo corria mais lento para ele. Com o corpo sentiu o irmão virar-se para o lado a fim de abrir suas pernas. E sentiu o joelho subir, passar por seus joelhos, roçar pelas coxas até se chocar contra seus testículos e o lampejo branco da dor correu em ondas e ecoou através do seu corpo. Seus braços se afrouxaram. Curvou-se e vomitou, enquanto o frio massacre continuava.
Adam sentiu os socos nas têmporas, nas faces, nos olhos. Sentiu os lábios cortarem e se esfrangalharem sobre seus dentes, mas sua pele parecia endurecida e amortecida, como se estivesse coberto de borracha pesada. Atordoado, se perguntou por que suas pernas não dobravam, por que ele não caía, por que a inconsciência não tomava conta dele. A pancadaria continuava eternamente. Podia ouvir o irmão ofegante, com o fôlego rápido e explosivo de um ferreiro na forja, e na escuridão doentia das estrelas podia ver o irmão através do sangue diluído em lágrimas que jorrava dos seus olhos. Viu os olhos inocentes e esquivos, o sorriso pequeno nos lábios úmidos. E enquanto via essas coisas — um lampejo de luz e escuridão.
Charles estava de pé sobre ele, sorvendo o ar como um cão exausto. Então ele se virou e caminhou rapidamente de volta para casa, esfregando as juntas dos dedos machucadas.
A consciência voltou rápida e assustadoramente para Adam. Sua mente rolava numa névoa penosa. Seu corpo estava pesado e denso de dor. Mas quase instantaneamente se esqueceu dos seus ferimentos. Ouviu passos rápidos na estrada. O medo instintivo e a ferocidade de um rato tomaram conta dele. Pôs-se de joelhos e arrastou-se da estrada para a vala de drenagem. Havia uns trinta centímetros de água na vala que era cercada por capim alto. Adam rastejou silenciosamente para dentro da água, tomando cuidado para não fazer barulho.
Os passos se aproximaram, diminuíram, seguiram um pouco à frente, voltaram. Do seu esconderijo, Adam podia ver apenas uma mancha escura na escuridão. E então um fósforo foi riscado e uma pequena chama azul ardeu até que o fogo pegou no palito de madeira, iluminando o rosto do seu irmão grotescamente por baixo. Charles ergueu o fósforo e espiou ao seu redor, e Adam pôde perceber a machadinha na sua mão direita.
Quando o fósforo se apagou, a noite ficou mais negra do que antes. Charles moveu-se lentamente e acendeu outro fósforo, andou mais um pouco e acendeu ainda outro. Procurou sinais na estrada. Finalmente, desistiu. Sua mão direita se levantou e ele jogou a machadinha a distância no campo. Partiu em passos rápidos na direção das luzes oscilantes do vilarejo.
Adam ficou um longo tempo deitado na água fria. Pensou em como seu irmão estaria se sentindo, pensou se agora que a sua paixão estava esfriando ele sentiria pânico, arrependimento ou a consciência culpada ou nada. Essas coisas Adam sentia por ele. Sua consciência lançava uma ponte até o seu irmão e sofria suas dores por ele, assim como em outras ocasiões fizera o dever de casa por ele.
Adam rastejou para fora da água e levantou-se. Seus ferimentos estavam entorpecendo e o sangue havia secado numa crosta no seu rosto. Pensou em ficar do lado de fora no escuro até que seu pai e Alice fossem para a cama. Sentia que não podia responder qualquer pergunta, porque não conhecia nenhuma resposta, e tentar encontrar uma resposta era muito difícil para sua mente massacrada. Uma tontura emoldurada por luzes azuis invadiu a sua testa e sentiu que estava prestes a desmaiar.
Arrastou-se lentamente pela estrada com as pernas bem abertas. No alpendre, deu uma parada e olhou para dentro. O lampião que pendia de uma corrente no teto projetava um círculo amarelo e iluminava Alice e sua cesta de costura na mesa à sua frente. Do outro lado, seu pai mordiscava uma caneta de madeira e mergulhava a pena num tinteiro aberto fazendo anotações no seu livro preto de registros.
Alice, erguendo o olhar, viu o rosto ensanguentado de Adam. Sua mão subiu até a boca e seus dedos se engancharam nos dentes inferiores.
Adam arrastou um pé subindo um degrau, depois o outro, e apoiou-se no umbral da porta.
Então Cyrus ergueu a cabeça. Olhou com uma curiosidade distante. A identidade da distorção lhe veio devagar à mente. Levantou-se, intrigado e pensativo. Enfiou a caneta de madeira no tinteiro e esfregou os dedos nas calças.— Por que ele fez isso? — perguntou Cyrus suavemente.
Adam tentou responder, mas sua boca estava empastada e seca. Lambeu os lábios e eles recomeçaram a sangrar.
Não sei — disse.
Cyrus cambaleou até ele e agarrou-o pelo braço tão ferozmente que ele estremeceu e tentou se desvencilhar.
Não minta para mim. Por que ele fez isso? Tiveram uma discussão?
Não.
Cyrus o sacudiu.
Me conte! Quero saber. Me conte! Vai ter de me contar. Vou fazer com que me conte! Com os diabos, você sempre o protege! Acha que não sei? Achou que estava me enganando? Agora me diga, ou por Deus vou deixá-lo de pé aqui a noite inteira!
Adam procurou uma explicação ao seu redor.
Ele acha que você não o ama.
Cyrus soltou o braço e manquejou de volta à sua cadeira. Tamborilou com a caneta no tinteiro e olhou cegamente para o seu livro de registros.
Alice — disse ele —, ajude Adam a ir para a cama. Vai ter de cortar a sua camisa, eu acho. Dê-lhe uma mão.
Levantou-se de novo, foi até o canto da sala onde os casacos ficavam pendurados em pregos e, procurando atrás das roupas, puxou a sua espingarda, dobrou-a para verificar a carga e arrastou-se até a porta.
Alice ergueu a mão como se fosse impedi-lo de sair com uma corda de ar. E sua corda quebrou e seu rosto ocultou seus pensamentos.
Vá para o seu quarto — disse ela. — Vou levar um pouco de água e uma bacia.
Adam se deitou na cama, um lençol puxado até a cintura, e Alice cuidou dos cortes com um lenço de linho embebido em água quente. Ficou em silêncio por um longo tempo e então continuou a frase de Adam como se nunca tivesse havido um intervalo.
Ele acha que o pai não o ama. Mas você o ama, sempre o amou. Adam não respondeu a ela.
Ela continuou calmamente.
Ele é um menino estranho. É preciso conhecê-lo. Todo casca dura, todo cheio de raiva, até que você o conhece.
Parou para tossir, debruçou-se e tossiu, e quando o acesso passou suas faces estavam rubras e ela exausta.
É preciso conhecê-lo — repetiu. — Durante muito tempo, ele me deu pequenos presentes, coisas bonitas que você não acha que ele notaria. Mas ele não os dá diretamente. Esconde os presentes onde sabe que vou encontrá-los. E você pode olhar para ele durante horas que não vai dar o menor sinal de que fez aquilo. É preciso conhecê-lo. Ela sorriu para Adam e ele fechou os olhos.

John Steinbeck, em A leste do Éden

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