[
4 ]
Não
houve conversa durante a ceia. O silêncio só foi perturbado pelo
sugar da sopa e pelo ruído da mastigação, e seu pai agitou a mão
para tentar afastar as mariposas da chaminé do lampião de
querosene. Adam achou que seu irmão o observava secretamente. E
captou um lampejo no olhar de Alice quando ergueu a vista
subitamente. Depois que terminou de comer, Adam empurrou a cadeira
para trás.
— Acho
que vou dar uma volta — disse.
Charles
se levantou.
— Vou
com você.
Alice
e Cyrus os viram sair pela porta e então ela fez uma de suas raras
perguntas. Indagou, nervosa:
— O
que foi que você fez?
— Nada
— disse ele.
— Vai
obrigá-lo a ir?
— Sim.
— Ele
sabe?
Cyrus
olhou desolado a porta aberta para a escuridão.
— Sim,
ele sabe.
— Ele
não vai gostar. Não será bom para ele.
— Não
importa — disse Cyrus, e repetiu em voz alta: — Não importa. —
E seu tom dizia: “Cale a boca. Não é da sua conta.”
Ficaram
em silêncio por um momento e então ele disse quase em tom de
desculpa:
— Não
é como se ele fosse seu filho.
Alice
não respondeu.
Os
garotos caminharam ao longo da estrada sulcada e escura. À frente
podiam ver algumas luzes bruxuleantes onde ficava o vilarejo.
— Vamos
ver se tem algo acontecendo na estalagem? — perguntou Charles.
— Não
havia pensado nisso — disse Adam.
— Então
por que diabo está saindo de noite?
— Você
não precisava vir — disse Adam.
Charles
se aproximou dele.
— O
que foi que ele disse a você esta tarde? Vi vocês caminhando
juntos. Que foi que ele disse?
— Só
conversou sobre o Exército, como sempre.
— Não
me pareceu isso — disse Charles, desconfiado. — Eu vi que ele se
curvava sobre você, falando como fala com homens, não discursando,
mas conversando.
— Estava
discursando — disse Adam com paciência, e teve de controlar o
fôlego, pois um pouco de medo acabara de se apossar do seu estômago.
Respirou tão fundo quanto podia e prendeu o ar para conter o medo.
— O
que foi que ele lhe contou? — insistiu Charles de novo.
— Do
Exército e do que é ser um soldado.
— Não
acredito em você — disse Charles. — Acho que é um grande
mentiroso e fingido. O que está tentando esconder?
— Nada
— disse Adam.
Charles
falou duramente:
— A
doida da sua mãe se afogou de propósito. Talvez tivesse dado uma
boa olhada em você. Foi o suficiente.
Adam
soltou o ar dos pulmões suavemente, esmagando o medo horrível.
Ficou em silêncio.
Charles
gritou:
— Você
está tentando levá-lo embora! Não sei como está armando isso. O
que acha que está fazendo?
— Nada
— disse Adam.
Charles
saltou à frente dele e obrigou Adam a parar, seu peito quase contra
o peito do irmão. Adam recuou, mas cuidadosamente, como alguém que
se afasta de uma cobra.
— Lembra
do aniversário dele? — gritou Charles. — Juntei quase um dólar
em moedas e comprei-lhe um canivete fabricado na Alemanha, três
lâminas e um saca-rolha, com cabo de madrepérola. Onde está o
canivete? Já viu usá-lo? Ele deu para você? Nunca o vi nem
afiá-lo. Você está com o canivete no seu bolso? O que foi que ele
fez com o canivete? “Obrigado”, ele disse, assim mesmo. E foi a
última vez que vi o canivete alemão que me custou setenta e cinco
centavos.
Havia
raiva em sua voz, e Adam sentiu o medo invadi-lo; mas sabia também
que lhe restava um momento. Muitas vezes vira a máquina destruidora
que derrubava tudo o que estivesse de pé à sua frente. A raiva
vinha primeiro e depois uma frieza, um autodomínio; olhos evasivos e
um sorriso satisfeito e nenhuma voz, apenas um sussurro. Quando
aquilo acontecia o assassinato estava a caminho, mas um assassinato
frio, destro, e mãos que trabalhavam com precisão, com delicadeza.
Adam engoliu a saliva para umedecer sua garganta seca. Não podia
pensar em nada para dizer que fosse ouvido, pois assim que embarcava
num acesso de raiva seu irmão era incapaz de ouvir. Avolumava-se
sombriamente diante de Adam, mais baixo, mais largo, mais gordo, mas
ainda não agachado. À luz das estrelas seus lábios úmidos
brilhavam, mas não havia sorriso ainda e sua voz continuava a rugir.
— O
que foi que você fez no aniversário dele? Acha que não reparei?
Chegou a gastar setenta e cinco ou cinquenta centavos? Você lhe
trouxe um filhote de vira-lata que achou no quintal. Você riu como
um idiota e disse que daria um bom cão de caça. Aquele cão dorme
no quarto dele. Brinca com ele quando está lendo. Treinou ele
direitinho. E onde está o canivete? “Obrigado”, ele disse,
apenas “Obrigado” — falou Charles num sussurro, e seus ombros
caíram.
Adam
deu um salto desesperado para trás e ergueu as mãos para proteger o
rosto. Seu irmão moveu-se com precisão, cada pé plantado com
firmeza. Um punho avançou delicadamente para calcular a distância,
e então o trabalho amargo e glacial — um golpe duro no estômago,
e as mãos de Adam abaixaram; e então quatro socos na cabeça. Adam
sentiu o osso e a cartilagem do nariz se esmigalharem. Levantou as
mãos de novo e Charles acertou no seu peito. E durante todo esse
tempo Adam olhava para o irmão como o condenado olha sem esperança
e com espanto para o carrasco.
Subitamente,
para sua própria surpresa, Adam lançou um golpe maluco e inofensivo
com as costas da mão sem força nem direção. Charles abaixou-se e
o braço desnorteado envolveu o seu pescoço. Adam abraçou-se ao
irmão e ficou agarrado a ele, soluçando. Sentiu os punhos fortes
fustigando náusea no seu estômago e aguentou firme. O tempo corria
mais lento para ele. Com o corpo sentiu o irmão virar-se para o lado
a fim de abrir suas pernas. E sentiu o joelho subir, passar por seus
joelhos, roçar pelas coxas até se chocar contra seus testículos e
o lampejo branco da dor correu em ondas e ecoou através do seu
corpo. Seus braços se afrouxaram. Curvou-se e vomitou, enquanto o
frio massacre continuava.
Adam
sentiu os socos nas têmporas, nas faces, nos olhos. Sentiu os lábios
cortarem e se esfrangalharem sobre seus dentes, mas sua pele parecia
endurecida e amortecida, como se estivesse coberto de borracha
pesada. Atordoado, se perguntou por que suas pernas não dobravam,
por que ele não caía, por que a inconsciência não tomava conta
dele. A pancadaria continuava eternamente. Podia ouvir o irmão
ofegante, com o fôlego rápido e explosivo de um ferreiro na forja,
e na escuridão doentia das estrelas podia ver o irmão através do
sangue diluído em lágrimas que jorrava dos seus olhos. Viu os olhos
inocentes e esquivos, o sorriso pequeno nos lábios úmidos. E
enquanto via essas coisas — um lampejo de luz e escuridão.
Charles
estava de pé sobre ele, sorvendo o ar como um cão exausto. Então
ele se virou e caminhou rapidamente de volta para casa, esfregando as
juntas dos dedos machucadas.
A
consciência voltou rápida e assustadoramente para Adam. Sua mente
rolava numa névoa penosa. Seu corpo estava pesado e denso de dor.
Mas quase instantaneamente se esqueceu dos seus ferimentos. Ouviu
passos rápidos na estrada. O medo instintivo e a ferocidade de um
rato tomaram conta dele. Pôs-se de joelhos e arrastou-se da estrada
para a vala de drenagem. Havia uns trinta centímetros de água na
vala que era cercada por capim alto. Adam rastejou silenciosamente
para dentro da água, tomando cuidado para não fazer barulho.
Os
passos se aproximaram, diminuíram, seguiram um pouco à frente,
voltaram. Do seu esconderijo, Adam podia ver apenas uma mancha escura
na escuridão. E então um fósforo foi riscado e uma pequena chama
azul ardeu até que o fogo pegou no palito de madeira, iluminando o
rosto do seu irmão grotescamente por baixo. Charles ergueu o fósforo
e espiou ao seu redor, e Adam pôde perceber a machadinha na sua mão
direita.
Quando
o fósforo se apagou, a noite ficou mais negra do que antes. Charles
moveu-se lentamente e acendeu outro fósforo, andou mais um pouco e
acendeu ainda outro. Procurou sinais na estrada. Finalmente,
desistiu. Sua mão direita se levantou e ele jogou a machadinha a
distância no campo. Partiu em passos rápidos na direção das luzes
oscilantes do vilarejo.
Adam
ficou um longo tempo deitado na água fria. Pensou em como seu irmão
estaria se sentindo, pensou se agora que a sua paixão estava
esfriando ele sentiria pânico, arrependimento ou a consciência
culpada ou nada. Essas coisas Adam sentia por ele. Sua consciência
lançava uma ponte até o seu irmão e sofria suas dores por ele,
assim como em outras ocasiões fizera o dever de casa por ele.
Adam
rastejou para fora da água e levantou-se. Seus ferimentos estavam
entorpecendo e o sangue havia secado numa crosta no seu rosto. Pensou
em ficar do lado de fora no escuro até que seu pai e Alice fossem
para a cama. Sentia que não podia responder qualquer pergunta,
porque não conhecia nenhuma resposta, e tentar encontrar uma
resposta era muito difícil para sua mente massacrada. Uma tontura
emoldurada por luzes azuis invadiu a sua testa e sentiu que estava
prestes a desmaiar.
Arrastou-se
lentamente pela estrada com as pernas bem abertas. No alpendre, deu
uma parada e olhou para dentro. O lampião que pendia de uma corrente
no teto projetava um círculo amarelo e iluminava Alice e sua cesta
de costura na mesa à sua frente. Do outro lado, seu pai mordiscava
uma caneta de madeira e mergulhava a pena num tinteiro aberto fazendo
anotações no seu livro preto de registros.
Alice,
erguendo o olhar, viu o rosto ensanguentado de Adam. Sua mão subiu
até a boca e seus dedos se engancharam nos dentes inferiores.
Adam
arrastou um pé subindo um degrau, depois o outro, e apoiou-se no
umbral da porta.
Então
Cyrus ergueu a cabeça. Olhou com uma curiosidade distante. A
identidade da distorção lhe veio devagar à mente. Levantou-se,
intrigado e pensativo. Enfiou a caneta de madeira no tinteiro e
esfregou os dedos nas calças.— Por que ele fez isso? — perguntou
Cyrus suavemente.
Adam
tentou responder, mas sua boca estava empastada e seca. Lambeu os
lábios e eles recomeçaram a sangrar.
— Não
sei — disse.
Cyrus
cambaleou até ele e agarrou-o pelo braço tão ferozmente que ele
estremeceu e tentou se desvencilhar.
— Não
minta para mim. Por que ele fez isso? Tiveram uma discussão?
— Não.
Cyrus
o sacudiu.
— Me
conte! Quero saber. Me conte! Vai ter de me contar. Vou fazer com que
me conte! Com os diabos, você sempre o protege! Acha que não sei?
Achou que estava me enganando? Agora me diga, ou por Deus vou
deixá-lo de pé aqui a noite inteira!
Adam
procurou uma explicação ao seu redor.
— Ele
acha que você não o ama.
Cyrus
soltou o braço e manquejou de volta à sua cadeira. Tamborilou com a
caneta no tinteiro e olhou cegamente para o seu livro de registros.
— Alice
— disse ele —, ajude Adam a ir para a cama. Vai ter de cortar a
sua camisa, eu acho. Dê-lhe uma mão.
Levantou-se
de novo, foi até o canto da sala onde os casacos ficavam pendurados
em pregos e, procurando atrás das roupas, puxou a sua espingarda,
dobrou-a para verificar a carga e arrastou-se até a porta.
Alice
ergueu a mão como se fosse impedi-lo de sair com uma corda de ar. E
sua corda quebrou e seu rosto ocultou seus pensamentos.
— Vá
para o seu quarto — disse ela. — Vou levar um pouco de água e
uma bacia.
Adam
se deitou na cama, um lençol puxado até a cintura, e Alice cuidou
dos cortes com um lenço de linho embebido em água quente. Ficou em
silêncio por um longo tempo e então continuou a frase de Adam como
se nunca tivesse havido um intervalo.
— Ele
acha que o pai não o ama. Mas você o ama, sempre o amou. Adam não
respondeu a ela.
Ela
continuou calmamente.
— Ele
é um menino estranho. É preciso conhecê-lo. Todo casca dura, todo
cheio de raiva, até que você o conhece.
Parou
para tossir, debruçou-se e tossiu, e quando o acesso passou suas
faces estavam rubras e ela exausta.
— É
preciso conhecê-lo — repetiu. — Durante muito tempo, ele me deu
pequenos presentes, coisas bonitas que você não acha que ele
notaria. Mas ele não os dá diretamente. Esconde os presentes onde
sabe que vou encontrá-los. E você pode olhar para ele durante horas
que não vai dar o menor sinal de que fez aquilo. É preciso
conhecê-lo. Ela sorriu para Adam e ele fechou os olhos.
John Steinbeck, em A leste do Éden
Nenhum comentário:
Postar um comentário