terça-feira, 3 de setembro de 2024

Ter e não ter | Primeira parte - Harry Morgan (Primavera)


1

Vocês sabem como é Havana nas primeiras horas da manhã, com os bêbados ainda dormindo encostados às paredes dos prédios, antes mesmo de chegarem as carroças de gelo para abastecer os bares? Bem, viemos do cais e atravessamos a praça até o Pérola de São Francisco para tomar um café. Havia apenas um mendigo acordado na praça, bebendo água no chafariz. Assim que entramos e nos sentamos a uma das mesas, vimos três homens que pareciam esperar por nós.
Mal nos acomodamos, um deles se aproximou.
E então? — disse ele.
Nada feito — respondi. — Até gostaria de fazer a coisa, como um favor. Mas, como disse ontem à noite, não posso.
Diga o seu preço.
Não se trata disso. Não posso. E fim.
Os dois outros haviam se aproximado também e ficaram de pé, observando, com ar tristonho. Eram todos rapazes de muito boa aparência, e eu de fato teria gostado de lhes prestar aquele favor.
Mil por cabeça — ofereceu o cara que falava bem inglês.
Não me force a responder de mau jeito — disse eu. — Estou dizendo que não.
Mais tarde, quando as coisas tiverem mudado, verá que foi um bom negócio para você.
Sei disso. Tenho simpatia por vocês. Mas não posso aceitar.
Por que não?
Ganho a vida com o barco. Se perder o barco, estou acabado.
Com esse dinheiro, pode comprar outro.
Não, se for parar na cadeia.
Deviam estar pensando que eu acabaria cedendo se insistissem, porque um deles continuou:
Vai ter três mil dólares na mão, e isso pode contar a seu favor, mais tarde. Esta situação vai mudar, você sabe…
Ouçam — disse eu —, não me importa quem seja o presidente por aqui, mas não levo para os Estados Unidos coisa alguma que possa falar.
Está dizendo que iríamos falar? — perguntou o que ainda não tinha dito nada. Estava zangado.
Eu disse qualquer coisa que possa falar.
Está achando que somos lenguas largas?
Não.
Sabe o que são lenguas largas?
Sei. Gente com língua comprida.
Sabe o que fazemos com gente assim?
Não fique brabo comigo. Foram vocês que me procuraram. Eu não ofereci nada.
Cala a boca, Pancho — disse o que estivera conduzindo a conversação, até então, para o sujeito zangado.
Ele disse que poderíamos falar — respondeu Pancho.
Não, escutem, só falei que não transporto nada que fale. Muamba não fala. Garrafões não falam. Mas há outras coisas que também não falam. Pessoas falam.
E chineses clandestinos, falam? — provocou Pancho, num tom agressivo.
Falam, mas eu não posso compreender o que dizem — repliquei.
Então, quer dizer que não aceita mesmo?
É como lhes disse ontem à noite. Nada feito!
E não vai falar sobre isto? — indagou Pancho.
Aquela única coisa que não compreendera direito levava-o a ficar me provocando. Acho que estava desapontado também. Nem sequer lhe respondi.
Você não é um lengua larga, é? — perguntou, ainda em tom antipático.
Acho que não.
O que é isso? Uma ameaça?
Escute aqui — respondi. — Não seja tão mal-humorado assim logo de manhã. Tenho certeza de que já cortou o pescoço de um bocado de gente. Mas eu ainda nem tomei meu café.
É mesmo? Acha que andei cortando pescoços por aí?
Sei lá — disse eu. — E não me interessa. Não consegue tratar de negócios sem ficar zangado?
Tem razão, estou um bocado zangado — retrucou. — E o que eu queria era matar você.
Ora, vá pro inferno — disse eu. — Você fala demais!
Vamos, Pancho — disse o primeiro homem. E voltando-se para mim acrescentou: — Sinto muito. Gostaria que nos levasse.
Eu também sinto. Mas não posso.
Os três dirigiram-se para a porta e eu fiquei observando-os. Eram jovens de boa aparência e vestiam boas roupas; nenhum deles tinha chapéu e pareciam gente de muito dinheiro. Falavam de um bocado de dinheiro e pronunciavam um inglês do tipo que os cubanos com dinheiro costumam usar.
Dois deles pareciam irmãos, e o outro, Pancho, era um rapaz um pouco mais alto, mas com a mesma aparência. Você sabe como é, esbelto, boas roupas e cabelos brilhosos. Não acredito que fosse tão ruim como parecia pelo seu jeito de falar.
Quando viraram da porta para a direita, vi um carro fechado atravessar a praça em direção a eles. Primeiro, a vidraça se espatifou, e a bala acertou a fileira de garrafas na parede da vitrina, à direita. Ouvi a arma continuar disparando, pou, pou, pou, e as garrafas se quebrando ao longo da parede.
Saltei para trás do balcão do lado esquerdo e, olhando por cima, pude ver que o carro estava parado, com dois caras acocorados junto a ele. Um desses caras tinha uma metralhadora Thompson e o outro tinha uma escopeta. O que tinha a metralhadora era negro. O outro vestia um guarda-pó branco de motorista.
Um dos rapazes estava caído no passeio, com o rosto voltado para o chão, bem à frente da grande vitrina que fora quebrada. Os outros estavam abrigados atrás de uma das carroças de gelo da Cervejaria Tropical, paradas diante do bar Cunard, ali ao lado. Um dos cavalos da carroça de gelo estava tombado sobre os arreios, escoiceando, e o outro, aterrorizado, agitava a cabeça.
Um dos rapazes disparou do canto de trás do carro e a bala ricocheteou no passeio. O negro com a metralhadora Thompson baixou o tronco até quase o chão e disparou uma rajada por baixo contra a carroça. Um deles foi atingido porque caiu de costas sobre o passeio, com a cabeça por cima do meio-fio. Ficou tombado ali, protegendo a cabeça com as mãos, e o motorista disparou a escopeta contra ele, enquanto o negro recarregava sua arma. Mas foi um tiro a esmo. Pude enxergar as marcas de balas por toda a calçada, como pingos de prata.
O outro rapaz puxou o que fora atingido, pelas pernas, para trás da carroça, e eu vi o negro abaixando seu rosto até o chão para disparar nova rajada. Em seguida, percebi o tal de Pancho dar a volta no extremo da carroça e caminhar sob a proteção do cavalo que ainda estava em pé. Ele afastou-se do animal, seu rosto tão branco como uma folha de papel, e disparou contra o motorista com a grande Luger que tinha; segurava-a com ambas as mãos para mantê-la firme. Avançando em direção a ele, disparou duas vezes, e as balas passaram acima da cabeça do negro, e uma terceira, baixo demais.
O que conseguiu foi acertar num pneumático do automóvel, porque vi uma nuvem de poeira ser soprada de repente sobre a rua, quando saiu o ar. A três metros de distância, o negro alvejou-o na barriga com o que devia ser o último tiro da metralhadora, porque eu o vi jogando fora a arma enquanto o pobre Pancho sentava-se rijo e depois caía para a frente. Estava tentando levantar-se, ainda segurando a Luger, mas nem sequer pôde erguer a cabeça. O negro apanhou a escopeta que deixara encostada junto da roda do carro, perto do motorista, e com um disparo explodiu a cabeça de Pancho. Que sujeito, aquele negro!
Tomei um rápido gole da primeira garrafa que encontrei aberta e nem sei dizer o que bebi. Aquilo tudo me fizera sentir muito mal. Rastejei por trás do bar, até a cozinha, nos fundos, e em seguida fui para fora. Saí rapidamente da praça e nem sequer lancei uma olhada em direção à multidão que estava se juntando diante do café. Atravessei o portão, entrei no cais e subi a bordo.
O cliente que nos havia contratado estava a bordo, esperando. Contei-lhe o que tinha acontecido.
Onde está o Eddy? — perguntou Johnson, o sujeito que nos contratara.
Não o vi mais depois que começou o tiroteio.
Acha que ele foi ferido?
Duvido! Os únicos tiros que penetraram no café atingiram a vitrina. Isso foi quando o carro estava chegando por trás deles e atiraram no primeiro camarada, exatamente diante da vitrina. Vieram num ângulo como este…
Parece que você sabe todos os detalhes — comentou ele.
Eu assisti a tudo — repliquei. Ergui então os olhos e avistei Eddy chegando ao longo do cais, parecendo ainda mais alto e desleixado que de hábito. Caminhava como se suas pernas estivessem deslocadas.
Lá está ele.
Eddy parecia bastante mal. Nunca tinha boa aparência de manhã cedo, mas hoje parecia pior do que nunca.
Onde estava? — perguntei.
De cara enfiada no chão.
Viu tudo? — perguntou Johnson.
Nem me fale sobre isso, senhor Johnson — pediu Eddy. — Só de pensar já me embrulha o estômago.
É melhor você tomar um trago — disse Johnson. Voltando-se para mim, perguntou: — Bem, vamos dar a partida, certo?
O senhor é quem manda.
Como vai ser o dia hoje?
Mais ou menos como ontem. Talvez um pouco melhor.
Vamos embora, então.
Está bem, logo que cheguem as iscas.
Fazia três semanas que estávamos levando aquele pássaro para pescar na corrente do Golfo e ainda não tínhamos visto a cor do dinheiro dele, exceto cem dólares que me adiantou para pagar a taxa consular, obter licença, comprar alguns mantimentos e pôr combustível no barco antes da travessia. Eu fornecia todos os apetrechos de pesca e ele nos tinha contratado a trinta e cinco dólares por dia. Dormia no hotel e vinha a bordo toda manhã. Eddy me arranjara o contrato, por isso tinha de levá-lo junto, pagando a ele quatro dólares por dia.
Preciso pôr combustível — disse a Johnson.
Está bem.
É que preciso de algum dinheiro.
Quanto?
São vinte e oito centavos o galão. Melhor pôr uns quarenta galões pelo menos. São onze dólares e vinte, no total.
Johnson tirou quinze dólares do bolso.
Quer gastar o resto em cerveja e gelo? — perguntei.
Está bem, mas vá descontando do que eu lhe devo.
Eu estava pensando que três semanas era muito tempo para deixar as coisas correrem, mas, se ele pagasse tudo, que diferença isso podia fazer? Nosso trato previa acertos a cada semana. No entanto, eu já havia deixado as coisas correrem com outros durante um mês e recebera meu dinheiro no final. A culpa era toda minha, mas o fato é que no começo eu achara bom ver as coisas correrem mais soltas. Foi somente nos últimos dias que comecei a ficar preocupado, mas não queria dizer nada, com medo de aborrecer o freguês. Ora, se ele fosse direito, quanto mais tempo se passasse, melhor.
Não quer uma garrafa de cerveja? — perguntou-me abrindo a caixa.
Não, obrigado.
Exatamente nesse momento o negro que havíamos mandado buscar as iscas vinha descendo o cais e eu disse ao Eddy que se preparasse para zarpar.
O negro veio a bordo com as iscas, zarpamos e começamos a navegar para fora da baía, enquanto ele ia fixando um par de cavalinhas nos anzóis. Ele atravessava com os anzóis as bocas dos peixes e os fazia sair pelas guelras, cortando o lado dos peixes, depois enfiando os anzóis no lado contrário e novamente fazendo-os sair, conservando a boca do peixe fechada sobre a linha principal e amarrando bem os anzóis, de maneira que não pudessem escapar e a isca fosse puxada suavemente, sem girar.
Era um negro sem mistura, esperto e um tanto carrancudo, com contas azuis de uma guia de vodu ao redor do pescoço, por baixo da camisa, e um velho chapéu de palha na cabeça. O que gostava de fazer a bordo era dormir e ler jornais, mas poucos sabiam armar uma isca tão bem quanto ele. Nem tão rápido.
Não sabe fazer uma isca como essa, capitão? — perguntou-me Johnson.
Sei, sim, senhor!
Então por que traz esse negro para fazê-la?
Quando encontrarmos os peixes grandes verá por quê — respondi-lhe.
Como assim?
O negro pode iscar mais depressa do que eu.
E o Eddy não pode fazer isso?
Não, senhor.
Parece-me uma despesa desnecessária.
Johnson estava pagando-lhe um dólar por dia e o negro ia à casa de rumba todas as noites. Vi que ele já estava adormecendo.
Preciso dele — garanti.
[...]

Ernest Hemingway, em Ter e não ter

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