No
início do terceiro dia, um pouco antes do horário em que
distribuíam um mingau ralo de farinha e água, a porta foi aberta e
vimos que do lado de fora havia muito mais guardas que de costume. Os
muçurumins começaram a rezar, a Tanisha voltou a chorar, eu e a
Taiwo nos demos as mãos como se, de novo, nunca tivéssemos sido
duas dividindo a mesma alma. Disseram que o tumbeiro já estava
preparado e que embarcaríamos naquele momento, as mulheres primeiro.
Nenhuma palavra sobre as crianças, o que me preocupou mais ainda,
pois decerto tinham se esquecido de nós, as ibêjis para presente.
Deram as ordens em várias línguas para que todos pudessem entender,
e também na língua que eu já tinha percebido ser a que eles mais
gostavam, a das lanças e dos chicotes cantando na pele dos que se
demoravam deitados ou sentados, ou porque ainda tinham sono, ou
estavam doentes, ou se sentiam cansados e fracos. Uma mulher ao nosso
lado, que vomitava sem parar havia quase dois dias, foi deixada para
trás depois que tentaram fazê-la se levantar, pois disseram que não
compensava levar para morrer na viagem quem podia morrer lá mesmo. A
Aja e a Jamila tentaram ajudá-la e também apanharam. Quando
passamos pela porta, os guardas enfiaram pelas nossas cabeças laços
já prontos em cordas compridas que prendiam pelo menos quinze
pessoas em um mesmo grupo. A Taiwo disse que tinha fome, eu também,
e quando a Tanisha perguntou a um dos guardas se não comeríamos
nada antes de embarcar, ele disse que a regalia tinha acabado, que
daquele momento em diante não éramos mais problema dele, e nos
empurrou para que a fila andasse depressa, pois o navio precisava
partir antes de o sol nascer.
O
tempo estava fresco e ainda havia algumas estrelas no céu, como as
do céu de Savalu. Havia uma que brilhava mais que todas as outras e
era de uma cor diferente, amarelada, e quando pensei em mostrá-la à
Taiwo, lembrei que não deveria apontar para estrelas, porque
nasceriam verrugas na ponta do meu dedo. Bassey, um velho que vendia
água em Savalu, tinha muitas verrugas, e era essa a história que
ele contava, que quando apontávamos para uma estrela, em um ponto
qualquer do céu outra estrela morria. Então, de vingança, ela
vinha nascer de novo, como uma verruga no dedo do assassino. Naquele
momento, surgiram na minha memória muitas lembranças de Savalu,
porque nada daquilo estaria acontecendo se não tivéssemos saído de
lá, e foi por isso que, em um primeiro instante, achei que a voz
dela não passava de uma recordação também. Mas enquanto
caminhávamos em direção ao lugar de embarque, a voz foi ficando
mais nítida, até que finalmente pude vê-la, a minha avó. Eu e a
Taiwo tentamos correr ao encontro dela, mas a corda no pescoço nos
puxou de volta. Ela então se jogou na frente de um branco que estava
vigiando o embarque, e que não era nenhum dos dois que tinham
chegado junto com o navio, e implorou que ele nos deixasse ir embora
com ela. O branco afastou a minha avó com o pé e logo outros homens
a agarraram, enquanto ela gritava, pedindo que a deixassem ir junto,
já que nós não podíamos ficar.
Não
havia quase ninguém por perto àquela hora, mas fiquei procurando o
Ayodele, pois ele poderia tentar falar com o branco. Mas a minha avó
estava sozinha, ela e os Ibêjis abraçados junto ao corpo, falando
sem parar e sem que o branco entendesse. Foi então que ele chamou um
dos guardas para traduzir o que a minha avó dizia, mas pareceu não
acreditar, pois ficou olhando para ela e balançando a cabeça, para
depois rir muito, chamando um outro branco para conversar. A minha
avó foi então chamada para perto deles e começou a falar e a
gesticular, apontando para os Ibêjis e para mim e a Taiwo, depois
mostrou a planta dos pés, abriu os dedos, levantou os braços,
pulou, abriu a boca e mostrou os dentes. De onde estávamos não dava
para ouvi-los, mas tudo aquilo era o que um dos guardas pedia para
ela fazer, a mando do branco. Ele deve ter gostado, pois assentiu com
a cabeça e a minha avó correu na nossa direção. Na hora nem
pensamos direito, pois estávamos felizes demais em vê-la, mas
depois temi pelo seu destino. Ela, sem nenhuma braveza, disse que
iria conosco aonde quer que fôssemos, e contamos que íamos todos
virar carneiros no estrangeiro. Ela disse que, se fosse assim, também
viraria, porque a única coisa que nos restava sobre esta terra
estava reunida ali, e éramos nós três e os Ibêjis. Ela quis
protestar quando um dos guardas tomou a estátua dos Ibêjis das mãos
dela, mas a Tanisha avisou que não adiantava, enquanto já nos
faziam entrar na água.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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