quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O reencontro


No início do terceiro dia, um pouco antes do horário em que distribuíam um mingau ralo de farinha e água, a porta foi aberta e vimos que do lado de fora havia muito mais guardas que de costume. Os muçurumins começaram a rezar, a Tanisha voltou a chorar, eu e a Taiwo nos demos as mãos como se, de novo, nunca tivéssemos sido duas dividindo a mesma alma. Disseram que o tumbeiro já estava preparado e que embarcaríamos naquele momento, as mulheres primeiro. Nenhuma palavra sobre as crianças, o que me preocupou mais ainda, pois decerto tinham se esquecido de nós, as ibêjis para presente. Deram as ordens em várias línguas para que todos pudessem entender, e também na língua que eu já tinha percebido ser a que eles mais gostavam, a das lanças e dos chicotes cantando na pele dos que se demoravam deitados ou sentados, ou porque ainda tinham sono, ou estavam doentes, ou se sentiam cansados e fracos. Uma mulher ao nosso lado, que vomitava sem parar havia quase dois dias, foi deixada para trás depois que tentaram fazê-la se levantar, pois disseram que não compensava levar para morrer na viagem quem podia morrer lá mesmo. A Aja e a Jamila tentaram ajudá-la e também apanharam. Quando passamos pela porta, os guardas enfiaram pelas nossas cabeças laços já prontos em cordas compridas que prendiam pelo menos quinze pessoas em um mesmo grupo. A Taiwo disse que tinha fome, eu também, e quando a Tanisha perguntou a um dos guardas se não comeríamos nada antes de embarcar, ele disse que a regalia tinha acabado, que daquele momento em diante não éramos mais problema dele, e nos empurrou para que a fila andasse depressa, pois o navio precisava partir antes de o sol nascer.
O tempo estava fresco e ainda havia algumas estrelas no céu, como as do céu de Savalu. Havia uma que brilhava mais que todas as outras e era de uma cor diferente, amarelada, e quando pensei em mostrá-la à Taiwo, lembrei que não deveria apontar para estrelas, porque nasceriam verrugas na ponta do meu dedo. Bassey, um velho que vendia água em Savalu, tinha muitas verrugas, e era essa a história que ele contava, que quando apontávamos para uma estrela, em um ponto qualquer do céu outra estrela morria. Então, de vingança, ela vinha nascer de novo, como uma verruga no dedo do assassino. Naquele momento, surgiram na minha memória muitas lembranças de Savalu, porque nada daquilo estaria acontecendo se não tivéssemos saído de lá, e foi por isso que, em um primeiro instante, achei que a voz dela não passava de uma recordação também. Mas enquanto caminhávamos em direção ao lugar de embarque, a voz foi ficando mais nítida, até que finalmente pude vê-la, a minha avó. Eu e a Taiwo tentamos correr ao encontro dela, mas a corda no pescoço nos puxou de volta. Ela então se jogou na frente de um branco que estava vigiando o embarque, e que não era nenhum dos dois que tinham chegado junto com o navio, e implorou que ele nos deixasse ir embora com ela. O branco afastou a minha avó com o pé e logo outros homens a agarraram, enquanto ela gritava, pedindo que a deixassem ir junto, já que nós não podíamos ficar.
Não havia quase ninguém por perto àquela hora, mas fiquei procurando o Ayodele, pois ele poderia tentar falar com o branco. Mas a minha avó estava sozinha, ela e os Ibêjis abraçados junto ao corpo, falando sem parar e sem que o branco entendesse. Foi então que ele chamou um dos guardas para traduzir o que a minha avó dizia, mas pareceu não acreditar, pois ficou olhando para ela e balançando a cabeça, para depois rir muito, chamando um outro branco para conversar. A minha avó foi então chamada para perto deles e começou a falar e a gesticular, apontando para os Ibêjis e para mim e a Taiwo, depois mostrou a planta dos pés, abriu os dedos, levantou os braços, pulou, abriu a boca e mostrou os dentes. De onde estávamos não dava para ouvi-los, mas tudo aquilo era o que um dos guardas pedia para ela fazer, a mando do branco. Ele deve ter gostado, pois assentiu com a cabeça e a minha avó correu na nossa direção. Na hora nem pensamos direito, pois estávamos felizes demais em vê-la, mas depois temi pelo seu destino. Ela, sem nenhuma braveza, disse que iria conosco aonde quer que fôssemos, e contamos que íamos todos virar carneiros no estrangeiro. Ela disse que, se fosse assim, também viraria, porque a única coisa que nos restava sobre esta terra estava reunida ali, e éramos nós três e os Ibêjis. Ela quis protestar quando um dos guardas tomou a estátua dos Ibêjis das mãos dela, mas a Tanisha avisou que não adiantava, enquanto já nos faziam entrar na água.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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