Sou
do tempo em que (aliás, sou do tempo de qualquer coisa antiga em que
vocês pensem aí, venho descobrindo isto cada vez mais rápido)
gordura e barriga eram vistas de maneira muito diversa da de hoje. O
gordo era forte e, se bem que as tetéias (ou peixões, ou uvas, ou
sereias ou tantas outras gírias que já designaram as boazudas) não
fossem gordas, magrinhas como as que hoje estão na moda não fariam
muito sucesso. Mulher tinha de ter carne e, preferivelmente, seguir o
modelo violão.
Jejuo
em competência para falar no assunto, pois, ai de mim, nunca passei
da marca de amador esforçado, nesse como em tantos outros terrenos.
Mas, como acredito haver companheiros ou colegas meus entre vocês,
bem como curiosos que queiram saber como se passa a vida na hoje
chamada — xingo o primeiro que usar essa expressão em relação a
mim — “bela idade”, continuo um violonista convicto, como
continuam os de minha faixa etária, na sondagem informal que vivo
fazendo. Parece haver qualquer coisa na malhação de hoje em dia que
não deixa a cintura afinar, ou então estreita os quadris. Aí o
tronco da mulher erecta (é só da mulher que estou falando),
silhuetado, parece um retângulo sem graça e sem mistério. O fato é
que a mulher violão legítima, padrão nacional, está em desuso,
ostracismo mesmo, mais uma vítima da globalização, mais uma sombra
que gradualmente se esvai no passado e que, no futuro, todo mundo
talvez esqueça que existiu.
Conversa
de velho, dirão as que porventura se sentirem atingidas. Certo,
certo, mas nem por isso menos verdadeira. Aliás, pelo contrário,
ainda mais verdadeira exatamente por isso, porque traz em si, entre
as mentiras que contou e experiências reais que sua memória hoje
enevoada já não distingue, a experiência do velho, tanto assim que
reza antigo provérbio árabe que “quem não tem um velho que
procure comprar um”. Que é que vocês estão pensando? Tem muito
velho por aí em melhor forma do que a maioria dessa juventude criada
com hambúrgueres e pizzas. A velhice está na cabeça etc. etc.
Bem,
chega de mentiras que mal consolam e reconheço que as linhas acima
foram um nariz-de-cera, embora sem querer. Eu ando tendo uns ataques
de aparente demência senil e aí começo a querer repetir essas
bobagens, fazendo força para acreditar nelas. Tenho mais é que
seguir os conselhos de Zecamunista, lá de Itaparica, que já passou
dos setenta e me falou de sobrolho severamente franzido, no bar de
Espanha.
— Não
importa o que lhe digam — sentenciou ele —, idade só ensina uma
coisa básica, uma única coisa: idade é uma merda. E, quanto mais
velho você fica, mais isso se radicaliza. Eu tenho a impressão de
que, se por um acaso, o sujeito envelhecesse até uns duzentos anos,
cheio de achaques, claro, mas vivo, só diria isso. Sintetiza toda a
sabedoria acumulada pela raça humana ao longo de milênios, tudo
pode ser resumido nela. Se eu fosse Jorge Luís Borges, escrevia uma
história sobre isso. Eu, que só tenho setenta, já estou
compreendendo isso, quanto mais um cara de 200 anos. A idade só leva
vantagem sobre a alternativa, que também é uma merda. Enfim, somado
tal com qual, isso menos aquilo, noves fora lá e cá, tudo junto é
uma merda só. Aliás, o merdismo, como podemos chamar essa nova
visão filosófica...
Felizmente
Zecamunista é um orador que facilmente entra em transporte
espiritual e, quando nesse estado, não vê nada ou ninguém em
torno, de maneira que pude sair sem ter que assinar a ata de fundação
da primeira academia merdologista do Brasil, que é bem capaz de ele
ter fundado, lá em Itaparica. E novamente, já um tanto envergonhado
dos colegas de profissão e pouco tendo para explicar ao editor,
reconheço que, nas linhas acima, só fiz encompridar o
nariz-de-cera. Chega disso, não preciso desses recursos baratos, só
entrei nessas para ajudar os professores de jornalismo a mostrar a
seus alunos o que é um nariz-de-cera, eu faço qualquer coisa pela
educação da juventude.
Mas,
sim, chega disso. Meu assunto é bem outro. É que, no meu tempo,
havia, em certas damas, declarada admiração por barrigas
masculinas. Nos rapazes tipo esses moços, pobres moços, ninguém
achava nada demais uma barriguinha e, ao contrário, havia alguns
barrigudos na faculdade que faziam enorme sucesso com as mulheres, em
época na qual fazer sucesso com as mulheres dava muito mais trabalho
do que hoje. E, para homens bem estabelecidos na vida, já mais
maduros, acho que até a falta de barriga era notada. Um comendador
sem barriga era incogitável, o mesmo podendo ser dito de um amante
rico. Até nas caricaturas isso era retratado.
Não
estava, pois, preparado para o que vem aí. A malha médica, que
fecha seu implacável cerco cada vez mais assiduamente, a ponto de
eu descobrir todo dia um órgão novo que não sabia que tinha, deu
para fazer umas reuniões confabulatórias até com minha família e,
repentinamente, minha barriga surgiu. Quer dizer, ela estava aí
mesmo, onde se encontra no momento, mas na dela, procurando, acho eu,
passar tão despercebida quanto possível.
Me
mediram todo, me pesaram todo, trocaram mensagens cifradas e, enfim,
resolveram que minha barriga é a responsável por tudo o que me
aflige e aflige a família e amigos próximos. Eu nunca tinha sabido
que pular a marca dos não sei quantos centímetros de barriga era
capaz de causar tanta doença. Diabetes é inevitável, assim como
uns dois infartos por semestre. Suspeito até que fiquei careca por
causa da barriga. Vou ter de passar fome. Já comecei, aliás. A
doutora me consolou, explicou que não era tão mau assim e ia até
ter efeitos positivos na minha percepção do universo feminino. Como
assim, o sofrimento para manter a boa forma? Han-han, disse ela, TPM
mesmo.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
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