domingo, 11 de agosto de 2024

Guerra das rosas


Mais uma vez, o tempo passou.
Passaram-se semanas, quase um mês, dias e dias aproveitados das mais diversas formas.
Os dois começaram, como manda o figurino, pelo mais difícil:
No rio, escavando a terra.
O sol ia e vinha, e eles trabalhavam, rezando para a chuva não cair e levar seus esforços rio abaixo. Se o Amahnu descesse, e costumava descer com tudo, traria consigo silte e terra.
À noite, sentavam-se na cozinha ou na sala, na beirada do sofá, e ficavam debruçados sobre os modelos na mesa de centro. Juntos, projetaram um andaime e fizeram duas maquetes — do cimbre e da ponte propriamente dita. Michael Dunbar gostava de fazer cálculos e era metódico com as angulações das pedras. Conversava com o garoto sobre a trajetória dos arcos e sobre como cada bloco demandava perfeição. Clay estava cansado de pensar em aduelas, enjuntas e todos aqueles termos difíceis.
Exausto física e mentalmente, cambaleou até o quarto e leu um pouco. Então pegou a caixa e tirou todos os itens de dentro. Acendeu o isqueiro apenas uma vez.
Sentia cada vez mais falta de todos, até que chegou correspondência. Na caixa de correio, encontrou um envelope com duas cartas escritas à mão.
Uma de Henry.
Uma de Carey.
Clay esperava por isso desde que botou os pés no rio Amahnu, mas não leu as cartas de imediato. Beirando o rio, subiu até as pedras e os eucaliptos, e se sentou à luz do sol, filtrada pelos galhos.
Leu na ordem em que as encontrou.

Oi, Clay.
Obrigado pela carta semana passada. Esperei um pouco para compartilhar com os outros — não sei por quê. Estamos com saudade. Você quase não abre a boca, mas estamos com saudade. O telhado é quem mais sente a sua falta, eu diria. Bom... ele, e eu, aos sábados... Estou levando Tommy para me ajudar nas vendas de garagem, mas o garoto é mais inútil que as tetas de um touro. Você conhece a peça.
O mínimo que você poderia fazer é nos visitar. Só precisa se resolver antes com... você sabe quem. Sério, quanto tempo leva para construir a porcaria de uma ponte?
Atenciosamente,
Vossa Excelência Henry Dunbar
P.S.: Me faz um favor? Quando for voltar, antes me liga e me diz que horas acha que vai chegar em casa. Nós todos temos que estar aqui. Vai que…

Ao ler a carta, Clay sentiu apenas gratidão, pela henrysse das palavras. A ladainha dele era mesmo inesgotável, mas Clay morria de saudade mesmo assim. E, convenhamos, Henry era muito afetuoso; as pessoas se esqueciam disso, ofuscadas pelo egocentrismo e pela ganância. Henry fazia da gente pessoas melhores.
Depois veio Tommy, e estava claro que Henry pedira a ele e Rory que contribuíssem com algumas palavras.
Ou, mais provável, coagira os dois.
Tommy primeiro:

Oi, Clay.
Não tenho muita coisa pra falar, só que o Aquiles está com saudade. Agora é o Henry me ajuda a checar os cascos dele. ISSO é o que eu chamo de INÚTIL!!!!!!
(Também estou com saudade.)

Depois Rory:

Ei, Clay... Vem pra casa, porra! Pelo amor de Deus! Sinto falta das nossas conversas ezistenciais.
Rá!
Acha que não lembro das palavras difíceis, né?
Olha, me faz um favor. Dá um abraço no pai por mim.
Brincadeira! Vê se dá um chute no saco dele, tá? Um chutão daqueles.
Diz assim: PRESENTE DO RORY, CARALHO!
Vem pra casa.

Embora Tommy fosse gentil e prestativo, curiosamente era sempre Rory quem mexia com ele, quem fazia Clay sentir as coisas com mais intensidade. Talvez porque Rory fosse do tipo que não amava nada nem ninguém de verdade, mas amava Clay, e demonstrava das maneiras mais esquisitas.

Querido Clay,
Impossível colocar numa carta quanto sinto a sua falta ou como é ficar de bobeira nas Cercanias aos sábados, imaginando você do meu lado. Não fico deitada no colchão. Não faço nada. Só chego lá e torço pra você aparecer, mas você não aparece, e eu sei por quê. É assim que tem que ser, acho.
Que saco! As últimas semanas foram as melhores da minha vida, e não tenho nem como contar pra você.
Semana passada, montei pela primeira vez. Dá pra acreditar??? Foi na quarta-feira, num cavalo chamado Guerra das Rosas. É meio velhinho e usado mais para treinos e tal, só entrou no páreo pra fazer volume, mas não precisei levantar o chicote nenhuma vez. Só dei uma palavrinha e corri até a linha de chegada, equilibrada na sela, e ele ficou em terceiro. Terceiro!!! Cacete, dá pra acreditar? Foi a primeira vez em anos que minha mãe foi a um hipódromo. A farda era preta, branca e azul. Pode deixar, conto tudo quando você voltar pra casa, mesmo que demore. Tenho outra montaria semana que vem...
Meu Deus, tem tanta coisa acontecendo que nem perguntei.
Como você tá?
Sinto falta de ver você no telhado.
Por fim, terminei O marmoreiro de novo. Já sei por que você gosta tanto desse livro. Ele fez tantas coisas extraordinárias. Torço para que você faça algo extraordinário por aí também. Você vai. Tem que fazer. Você vai.
A gente se vê em breve, espero. Nas Cercanias.
Ainda quero te dar.
As dicas.
Prometo.
Com amor,
Carey

Bem, o que você faria? O que você diria?
Com o rio logo abaixo, ele leu tudo, repetidas vezes, e entendeu.
Depois de um bom tempo refletindo, concluiu que já haviam se passado setenta e seis dias desde que saíra de casa e que ele e o Amahnu ainda teriam um longo futuro pela frente — mas já era hora de voltar e me encarar.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

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