De repente abriu-se uma gaveta da minha memória e dentro dela havia uma maçã. Em Dores não cresciam maçãs. Havia mangas, jabuticabas, bananas, laranjas, mexericas, pitangas. E também os marolos, frutas grosseiras dos cerrados, de cheiro forte, com que se faziam licores. Véspera de Natal. Meu pai estava viajando. Voltaria a tempo? Voltou. Trouxe-me presentes. Não me lembro de nenhum deles. Mas me lembro da maçã, embrulhada em papel de seda amarelo. Naquele tempo, em Dores, uma maçã era uma fruta encantada, que crescia muito longe, em outros países. Atravessara mares para chegar até as minhas mãos. Eu era o único menino em Dores a ter uma maçã. Se eu comesse a maçã deixaria de ser o menino que tinha uma maçã. Eu ficaria igual a todos os meninos que haviam ganhado bolas e caminhõezinhos. Por isso eu não a mordia. Não queria machucá-la para que ela continuasse minha. Segurava-a. Olhava para ela. Polia-a, para que ficasse mais brilhante. Comi a maçã com tristeza. Aquela maçã não era para ser comida. Era para ser contada.
Rubem Alves, em O velho que acordou menino
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