Não
há mulher que não sonhe em matar o marido. Eu também tinha esse
devaneio, mas ele se tornou uma determinação realista.
Tomávamos
o café da manhã no dia em que propus a nossa separação. Ele
disse, tudo bem, você não vai levar um tostão, vai comer o pão
que o diabo amassou, eu não tenho bens, este apartamento é alugado,
o dinheiro está todo numa conta secreta num paraíso fiscal. Você
sabe o que é paraíso fiscal? Claro que não sabe, você não sabe
merda nenhuma, é uma idiota.
Respondi
que ia à polícia contar tudo, e ele teve um ataque de riso e
respondeu, você é mesmo uma imbecil.
Fiquei
olhando ele comer os seus ovos com bacon, todo marido canalha come
ovos com bacon. Depois que ele limpou a boca com o guardanapo, pedi
humildemente dinheiro para ir ao salão pintar o cabelo, fios brancos
estavam aparecendo em toda parte na minha cabeça. Ele respondeu,
hoje não dou nem um tostão, para você aprender a não me fazer
ameaças.
A
gente se vinga de um marido desses não é tirando dinheiro da sua
carteira nem inventando falsas despesas de mercado nem arranjando um
amante como todas fazem. Só há uma retaliação a fazer nessa
situação. Um marido desses tem que ser morto. Não em sonho. Na
vida real.
Fui
para o espelho examinar as raízes do cabelo, todas elas estavam
ficando grisalhas, eu estava virando uma velha.
À
noite ele me deu um papel e disse, a fim de ajudar você a fazer a
sua denúncia para a Receita Federal, e não para a polícia, sua
palerma, quero lhe dar uma relação quase completa dos paraísos
fiscais existentes. Fiz a lista em ordem alfabética, ele disse, com
um sorriso cínico, dando-me um papel cheio de nomes.
Antilhas
Holandesas, Aruba, Bahamas, Bahrein, Barbados, Belize, Bermudas,
Campione d’Italia, Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey,
Sark), Ilhas Cayman, Chipre, Cingapura, Ilhas Cook, República da
Costa Rica, Djibuti, Dominica, Emirados Árabes, Gibraltar, Granada,
Hong Kong, Lebuan, Líbano, Libéria, Liechtenstein, Luxemburgo,
Macau, Ilha da Madeira, Maldivas, Malta, Ilha de Man, Ilhas Marshall,
Ilhas Maurício, Mônaco, Ilhas Montserrat, Nauru, Ilhas Niue,
Sultanato de Omã, Panamá, Samoa Americana, Samoa Ocidental, San
Marino, Santa Lúcia, Federação de São Cristóvão e Nevis, São
Vicente e Granadinas, Seychelles, Tonga, Ilhas Turks e Caicos,
Vanuatu, Ilhas Virgens Americanas, Ilhas Virgens Britânicas.
Meu
Deus, nomes de que nunca ouvi falar, como saber em que paraíso o meu
marido tinha o dinheiro escondido? E como se mata um marido? Veneno?
tiro? facada? Faca eu posso arranjar, mas acabo causando apenas um
arranhão na pele desse cachorro.
Então
fui até a varanda olhar a rua, senti vertigem de altura, a grade de
proteção era muito baixa, era o décimo primeiro andar. Mas tive
uma ideia e a vertigem passou.
Como
toda mulher casada, vivo tomando remédios aos montões para aliviar
momentaneamente minha insuportável carga de frustrações, Valium,
Dormonid, Lexotan, Rivotril, Rohypnol e um monte de outros. Toda
noite meu marido toma uma garrafa de vinho tinto durante o jantar e
sou eu, que faço tudo dentro de casa, quem abre a garrafa e serve o
vinho.
O
meu Dormonid é de quinze miligramas, peguei seis comprimidos e
dissolvi na garrafa de vinho, que abri na cozinha. Peguei também uma
garrafa de champanhe para mim e levei as duas garrafas com copos para
a mesa da sala de jantar e enchi as nossas duas taças.
Não
sei por que mulheres e veados gostam tanto de champanhe, essa merda
borbulhante, ele disse.
Encheu
sua taça novamente, bebeu, outra vez encheu a taça, disse, esse
bordô está uma maravilha. Logo esvaziou a garrafa. Pouco depois
desmaiou.
Ah,
que trabalheira, arrastar aquele corpo enxundioso até a varanda. Ele
era pesado, os ovos com bacon e os queijos franceses, os embutidos,
as tortas, os patês engordavam até um tísico, mesmo um daqueles
magrelinhas do Nordeste.
Estava
morta de cansaço quando cheguei à varanda, mas ainda tive forças
para deitá-lo de barriga sobre a grade da varanda e depois agarrar
suas pernas, levantá-las e impulsionar o corpo.
A
queda causou um distante som oco ao bater na calçada.
Depois
liguei para a polícia dizendo que o meu marido tinha bebido demais e
havia caído da varanda. Acrescentei que ele era viciado em
entorpecentes.
Voltei
para a sala e bebi outra taça de champanhe. Adoçava a boca, antes
de começar a comer o pão que o diabo amassou.
Depois,
na frente do espelho, ensaiei a história que ia contar para a
polícia. Seu delegado, isso aconteceu no mês passado com o morador
do 1201, que também misturava bebida com calmantes, era alto e gordo
como o meu marido e caiu da varanda, a grade é muito baixa.
Ele
provavelmente também foi empurrado pela esposa, mas esse final eu
não ia contar.
Fiz
minha cara de choro e as lágrimas escorreram. É fácil chorar se a
pessoa está muito feliz.
Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres
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