Pediu-me
dinheiro para ir visitar o filho. Era Natal, ela não via o filho
havia mais de dez anos, desde que saíra de casa, expulsa ou por
vontade própria, não sei, e fora viver na rua como mendiga bêbeda.
Foi
assim que a conheci, cambaleante, dizendo palavrão. Agora não bebia
mais, Jesus Cristo a salvara, Jesus Cristo e eu, que apresentei Jesus
a ela dizendo, Jesus quer salvar sua alma, você sabe ler? Ela sabia,
dei uma Bíblia de bolso para ela, dessas feitas para
semianalfabetos.
Ela
passou a ler a Bíblia todo dia, não bebia mais, nem mendigava.
Diariamente eu pagava o almoço dela num boteco ordinário perto da
praça onde ela dormia, macarrão, galinha cozida e um refrigerante,
sempre esse menu, que era barato e fácil de comer, pois ela tinha
poucos dentes. A galinha cozida talvez desse um pouco mais de
trabalho para mastigar apenas com as gengivas, mas ela devia dar um
jeito.
Na
praça ela me disse que agora evitava os carnecedores, devia ser a
roda de bêbedos que ela frequentava, às vezes quando eu passava
tarde da noite na praça eles estavam fodendo as bêbedas, entre elas
a Fátima Aparecida. Esses deviam ser os carnecedores que ela agora
evitava, uma boa palavra que merecia ser inventada, lembrava carne,
carniceiros, lembrava Cristo, o verbo feito carne, a carne era fraca,
maculada por apetites pecaminosos opostos à pureza da alma.
Fui
ver na Bíblia que palavra era aquela que precisava ser inventada,
carnecedores, e descobri os escarnecedores, que aparecem em várias
ocasiões, como neste salmo: bem-aventurado é o homem que não anda
no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem
se assenta na roda dos escarnecedores. Era isso, os bêbedos que
dormiam na praça eram os escarnecedores. Agora Fátima Aparecida
fugia deles, ela tinha Jesus e tinha a mim.
Passei
a ler a Bíblia sentado com ela na praça onde Fátima Aparecida
dormia em dois bancos contíguos, forrados de papelão. Falávamos de
Jesus, eu dizia que além da sua alma ela devia cuidar do corpo e
levei-a ao hospital público, onde foi atendida no setor de
infectologia e deram-lhe remédios para a doença dela que não sei
qual era, mas desconfio.
Fátima
Aparecida deu entrada num pedido de documentos para poder tirar a sua
carteira de identidade, a fim de conseguir um emprego.
Então,
como eu disse antes, era Natal, ela foi visitar o filho, mas o filho
e a mulher do filho pediram para ela não voltar mais lá. Fátima
Aparecida pediu para ver seu neto, o filho disse que o menino estava
viajando.
Ela
me contou tudo isso num banco da praça, lágrimas escorriam dos seus
olhos, mas Fátima Aparecida não soluçava, acho que quando a dor é
muito forte o sofrimento é silencioso.
O
dia estava raiando, já havia luz suficiente para lermos a Bíblia, e
lemos juntos, e eu senti que ela estava aliviada.
Obrigada
por me transmitir a sua fé, o senhor é um homem muito bom, ela
disse. Isso era verdade, eu era um homem bom, e também um grande
mentiroso. Não estava interessado na pregação da Bíblia, mas
Fátima Aparecida não precisava saber disso. Fiquei sem vê-la uns
tempos. Então um dia, à noite, atravessando a praça, vi Fátima
Aparecida no meio dos escarnecedores, que estavam fodendo com ela. Eu
a arranquei da garra dos outros bêbedos, tendo que dar alguns gritos
e safanões, e fui levando Fátima Aparecida pelo braço para o outro
extremo da praça. Ela estava inteiramente bêbeda. Você voltou a
beber, sua filha da puta, eu disse. Ela cambaleou, disse, mas eu
tenho Jesus. Respondi, mas Jesus não tem você, ouve, sua idiota,
quem salva a gente da merda somos nós mesmos.
E
deixei a Fátima Aparecida na praça com os escarnecedores. Foda-se.
Não se pode salvar ninguém que não quer ser salvo. E que merda, eu
preciso acabar com esse meu complexo de Messias. Salvar os outros?
Tenho que salvar a mim mesmo, que não ando lá essas coisas.
Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres
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