sábado, 10 de agosto de 2024

Fátima Aparecida


Pediu-me dinheiro para ir visitar o filho. Era Natal, ela não via o filho havia mais de dez anos, desde que saíra de casa, expulsa ou por vontade própria, não sei, e fora viver na rua como mendiga bêbeda.
Foi assim que a conheci, cambaleante, dizendo palavrão. Agora não bebia mais, Jesus Cristo a salvara, Jesus Cristo e eu, que apresentei Jesus a ela dizendo, Jesus quer salvar sua alma, você sabe ler? Ela sabia, dei uma Bíblia de bolso para ela, dessas feitas para semianalfabetos.
Ela passou a ler a Bíblia todo dia, não bebia mais, nem mendigava. Diariamente eu pagava o almoço dela num boteco ordinário perto da praça onde ela dormia, macarrão, galinha cozida e um refrigerante, sempre esse menu, que era barato e fácil de comer, pois ela tinha poucos dentes. A galinha cozida talvez desse um pouco mais de trabalho para mastigar apenas com as gengivas, mas ela devia dar um jeito.
Na praça ela me disse que agora evitava os carnecedores, devia ser a roda de bêbedos que ela frequentava, às vezes quando eu passava tarde da noite na praça eles estavam fodendo as bêbedas, entre elas a Fátima Aparecida. Esses deviam ser os carnecedores que ela agora evitava, uma boa palavra que merecia ser inventada, lembrava carne, carniceiros, lembrava Cristo, o verbo feito carne, a carne era fraca, maculada por apetites pecaminosos opostos à pureza da alma.
Fui ver na Bíblia que palavra era aquela que precisava ser inventada, carnecedores, e descobri os escarnecedores, que aparecem em várias ocasiões, como neste salmo: bem-aventurado é o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Era isso, os bêbedos que dormiam na praça eram os escarnecedores. Agora Fátima Aparecida fugia deles, ela tinha Jesus e tinha a mim.
Passei a ler a Bíblia sentado com ela na praça onde Fátima Aparecida dormia em dois bancos contíguos, forrados de papelão. Falávamos de Jesus, eu dizia que além da sua alma ela devia cuidar do corpo e levei-a ao hospital público, onde foi atendida no setor de infectologia e deram-lhe remédios para a doença dela que não sei qual era, mas desconfio.
Fátima Aparecida deu entrada num pedido de documentos para poder tirar a sua carteira de identidade, a fim de conseguir um emprego.
Então, como eu disse antes, era Natal, ela foi visitar o filho, mas o filho e a mulher do filho pediram para ela não voltar mais lá. Fátima Aparecida pediu para ver seu neto, o filho disse que o menino estava viajando.
Ela me contou tudo isso num banco da praça, lágrimas escorriam dos seus olhos, mas Fátima Aparecida não soluçava, acho que quando a dor é muito forte o sofrimento é silencioso.
O dia estava raiando, já havia luz suficiente para lermos a Bíblia, e lemos juntos, e eu senti que ela estava aliviada.
Obrigada por me transmitir a sua fé, o senhor é um homem muito bom, ela disse. Isso era verdade, eu era um homem bom, e também um grande mentiroso. Não estava interessado na pregação da Bíblia, mas Fátima Aparecida não precisava saber disso. Fiquei sem vê-la uns tempos. Então um dia, à noite, atravessando a praça, vi Fátima Aparecida no meio dos escarnecedores, que estavam fodendo com ela. Eu a arranquei da garra dos outros bêbedos, tendo que dar alguns gritos e safanões, e fui levando Fátima Aparecida pelo braço para o outro extremo da praça. Ela estava inteiramente bêbeda. Você voltou a beber, sua filha da puta, eu disse. Ela cambaleou, disse, mas eu tenho Jesus. Respondi, mas Jesus não tem você, ouve, sua idiota, quem salva a gente da merda somos nós mesmos.
E deixei a Fátima Aparecida na praça com os escarnecedores. Foda-se. Não se pode salvar ninguém que não quer ser salvo. E que merda, eu preciso acabar com esse meu complexo de Messias. Salvar os outros? Tenho que salvar a mim mesmo, que não ando lá essas coisas.

Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres

Nenhum comentário:

Postar um comentário