quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Ensaio da Paixão — IV


O escritor e sua esposa

No convés de primeira classe do Leonardo da Vinci, à beira de uma piscina de águas cristalinas, estendidos em espreguiçadeiras e bebendo uísque on the rocks, Antônio e Hellen conversavam.
Meu bem, não poderia haver comemoração melhor para os meus trinta e cinco anos: uma visita à selva. Você não acha?
Hellen sacudia o gelo do copo, pensativa. Trocou o copo de mão e encostou os dedos gelados na barriga ainda discreta de Antônio.
Ai!
Eu acho que você merece.
Ele sorria:
A selva ou o teu ataque de gelo?
As duas coisas, querido. Para falar a verdade, para ser bem, bem sincera, essa tua... ahn... visita não me agrada muito. Que extravagância! Tão boa que está a viagem! Poderíamos ir direto, até Buenos Aires, como todo mundo.
Ele não levou a observação a sério.
Claro, claro. Eu já sabia. Você nunca vai entender…
Sei. — Sorrindo: — Sou burra mesmo, não? Como é o nome daquele livro? O gênio e a deusa…
The genius and the goddess, um texto menor do Huxley.
É. Você, o gênio, o escritor de sucesso, o teórico e o romancista. E eu, a deusa…
Gostosa... — cochichou ele.
E burrinha, não é? Não é isso mesmo que você pensa, bem no fundo?
Está bem, meu amor, eu me entrego. Minha doce burrinha. — Deu mais um gole. A misteriosa combinação de seres tão diferentes. Por que estavam casados? A delicadeza do rosto, o tecido dos cabelos macios entre os dedos, a admiração da leitora. Ou o dinheiro? Teria sido mesmo o dinheiro? Alguém, de fato, casa por dinheiro, ou essa ideia não passa de um folhetim — um folhetim que ele, Antônio Donetti, jamais escreveria? — Vou te confessar uma coisa, Hellen.
Coisa boa ou coisa ruim? Se for ruim, guarde com você.
Ele se irritou — detestava essas leviandades da mulher, que impediam a sequência emocional das pequenas coisas, a emoção que talvez salvasse sua vida, ultimamente amarga em segredo, um sentimento muito vago e muito presente que não tinha coragem sequer de formular: a de que traía algo fundamental; a de que traía algo irrecuperável. Hellen, sábia, corrigiu-se a tempo, segurando carinhosamente a mão dele:
Desculpe. O que você queria confessar?
Que te amo.
Ela riu:
Ah, isso eu já sabia.
Mas eu não.
O beliscão (não tão simbólico) na coxa dele, a raiva fingida:
Ah é? Pois repita, se for homem! — e os dedos apertando.
Não, não, não! Retiro o que eu disse.
Assim é melhor. Agora me dá um beijo.
Beijaram-se, ele discreto, ainda carregando o peso da mentira, o azedo da covardia e a dor do beliscão; e ela devorante e escandalosa:
Meu gênio gostoso…
Voltaram a beber, cada um deu um gole. Terei mesmo casado por dinheiro, sem nenhuma outra razão? Próximo deles, um grupo de jovens se divertia aos gritos e velhas senhoras pálidas se lambuzavam de óleo. Uma moça tímida aproximou-se, um livro à mão:
Desculpe... interromper vocês... Me disseram... — Sorria desengonçada, não sabia onde botar as mãos, as pernas, o corpo, a alma; e olhava para trás, para o outro lado da piscina, onde a família (um par de velhos gordos e sorridentes) aguardava ansiosa a investida da filha — ... É que... O senhor que escreveu este livro?
Hellen devassou a moça de alto a baixo, erguendo os óculos de sol. O marido compensou a curiosidade impiedosa da mulher com uma gentileza exagerada:
Ah, pois não... Fui eu, sim... Meu primeiro romance. Mas já saiu a quarta edição, revista.
A moça não entendeu, espantou-se:
Em revista, assim? — e imitou com as mãos inseguras o formato de uma revista. Ante o sorriso constrangedor de Hellen, calou-se: podia-se ver o calor e o rubor avançando na sua face. O silêncio, o olhar da mulher e a indiferença do autor folheando o livro eram insuportáveis. Coração disparado, prosseguiu: — Desculpe. Eu... eu não entendo de livro. Quer dizer... meu pai... — e ela apontou o velho imponente na espreguiçadeira, um ar de militar aposentado — ... meu pai está lendo... ele gosta muito... eu também... — e o olhar de Hellen, fixo, sorridente, o escritor sem levantar a cabeça do próprio livro. — Eu... queria um autógrafo, assim, quer dizer, é a primeira vez que vejo um escritor de livros e…
Mais um pouco e choraria. Antônio afinal abriu-se num sorriso:
Claro, claro! Só que... Hellen, você tem uma caneta na bolsa? — Sorriu para a moça, que ela não tivesse medo: — Você sabe, casa de ferreiro…
Ela, instantaneamente feliz, aquilo acabaria logo:
Caneta? Eu trouxe! Aqui, ó!
Ótimo. Qual o seu nome?
Prissila, com dois esses.
Hellen ergueu a cabeça, curiosa:
Você é filha única?
Ahn? Ah, sim, eu sou...— Já havia notado — e voltou a fechar os olhos.
Caneta em punho, livro aberto na página de rosto, incomodou-se com a inexplicável grosseria da mulher. Por que dizer aquilo? Sentiu pena da moça, provavelmente forçada pelo pai a ver o escritor in loco, com observações do tipo Isso é cultura, minha filha!, e ela com uma má vontade dos infernos, suando de desespero diante do escritor e de sua insuportável esposa, com a resignação e o estoicismo de quem paga uma promessa. Juventude! A juventude moderna, ele pensava, não passa de uma burrice vazia, estéril, morta aos vinte anos, com esses olhos de galinha legorne vendo o mundo como quem vê uma vitrine de luzes coloridas que piscam, aqui, ali, ali, aqui, uma galinha solta banhada de tédio, agitação e estupidez. Afinal comoveu-se. Como se comovia fácil com a miséria do mundo sobre a qual se propunha eventualmente a refletir nos seus livros para aquela meia dúzia (no caso dele, aquela dúzia) de leitores capazes de mergulhar fundo no poço da realidade... Eram poucos, conformava-se, seriam sempre poucos, até o fim dos tempos.
Tôni! A moça está esperando!
Ah, claro! É que escrever dedicatória é... — mas calou-se; explicar sempre piorava as coisas.
Prissila, trocando a perna de apoio, mentia, delicada:
Não tem pressa, não. — Arriscou alguma coisa: — Os escritores... é... são distraídos, não? Pensam muito! — encerrou séria, sorridente e em pânico.
Desta vez, Hellen foi suave:
Tem razão. O Antônio é superdistraído. Vive no mundo da lua.
Deve ser... ahn... — já havia começado a frase, e agora não havia outra solução senão terminá-la, o quanto antes: — Deve ser bom ser assim, é, ahn... culto, né?
O culto, involuntário e barulhento feito uma pedra que rola, soou como uma estranha ironia no coração do escritor. Imaginou imediatamente a dedicatória: Prissila, larga teu pai bunda-mole e vá viver a vida. Mas era muito difícil ser grosseiro. Frestando as pernas dela, afinal apetitosas até as coxas, quando então antecipavam uma futura obesidade, quase escreveu: Tesãozinho, deixe de ser boba, saia dando por aí, frenética, que a vida é curta. Um beijo na boca do... Os demônios invadindo sua cabeça: Dionísio sempre foi mais interessante que Apolo. Outro gole de uísque — aquela dedicatória durava uma eternidade, e ele começou a suar — e o intelectual ameno, gentil, equilibrado e falso ressurgia das cinzas: Prissila: há um pássaro no teu coração. Esta não, é demais. (A moça aguardava, numa abnegação que já lhe dava um toque de superioridade, a ponto de incomodar a mulher do escritor — seu marido gênio emburrecera?) Ou então — ele ponderava — o didatismo singelo, pré-messiânico: Que este livro revele a outra Prissila que se oculta em você. Três mil páginas publicadas e era derrotado, mais uma vez, por uma dedicatória. Hellen, indócil, simulava indiferença:
Acho esse o pior livro do Antônio.
Um frio na espinha do escritor, aquele segundo cada vez mais frequente em que caía no abismo da distância: o que havia em comum entre ele e a mulher? Respirou fundo, escreveu rápido: À Prissila, com o abraço amigo do — e a assinatura ilegível. Sorriu e entregou o livro, furioso consigo próprio — sou um homem imaturo —, furioso com a mulher, com a moça, com a traição literária, com a vida, o mundo e o inferno: fracasso e derrota, o destino universal. A moça despediu-se sorridente, ele nem respondeu. Pediu outro uísque, o peito seco, a mão trêmula. Hellen — ela conhecia exatamente cada detalhe dos humores do marido, e sabia quando ele de fato se tornava perigoso — fechou os olhos e ficou em silêncio, à espera. Calculou: mais dois minutos e ele emitirá uma sentença filosófica.
Donetti devolveu ao garçom o copo vazio e pegou outro, cheio. Deu um gole prolongado, repetiu a pergunta que sempre se fazia — por que não era um monge iogue? — e devagar foi se sentindo mais calmo. De olhos fechados, sentiu a mão de Hellen avançar carinhosa e arrependida sobre a dele.
Os escritores nunca entenderão os homens.
Por que, meu bem?
Porque os artistas têm uma razão profunda para viver que supera todo o resto: expressar e realizar a sua arte. Por esse impulso, eles fazem qualquer coisa. O resto da humanidade não é assim. São bancários, médicos, professores, lixeiros, funcionários públicos, gerentes de lanchonete, serralheiros, que, ao fim e ao cabo, vivem apenas porque nasceram. É uma coisa que jamais vou compreender. A menos que se acredite em Deus.
E o que tem a ver uma coisa com outra?
Tudo. — Pensou um instante. — Ou melhor: nada. Estou só fazendo piada. Eu jamais seria um filósofo. — O esboço de raciocínio acabou por deprimi-lo mais: — A verdade é que não compreendo nada do que se passa comigo, nem com os outros. Acho que por isso os meus livros fazem algum sucesso aqui no Brasil. Absolutamente ninguém está interessado em qualquer coisa verdadeiramente séria, essencial.
Mais um gole. A depressão metafísica abraçou-o, gorda, imensa, mole, e ele recebeu-a, todos os poros abertos, numa entrega irônica, quase prazerosa. Mas não por muito tempo: era preciso, sempre, levantar de novo.
O que eu estou necessitando mesmo é de um banho selvagem. Tenho a impressão de que agora, aos trinta e cinco, minha literatura vai mudar de rumo. Para melhor.
Hellen continuava acariciando as mãos do marido.
Eu sempre acreditei em você. — Brincou: — Acho que você não ganhou o Nobel ainda por pura perseguição.
Ele riu alto, mas com alguma ansiedade; o Nobel, de fato, não era ainda um sonho descartado para sempre. Para se livrar desse pequeno fantasma, desviou-se para as férias na ilha, com a mesma abnegação de quem resolve deixar de fumar, parar de beber, levantar cedo, cuidar da saúde:
Enfrentar dois ou três meses nessa ilha, longe da civilização, não vai ser muito fácil. Mas é preciso.
Hellen tateou em sentido contrário, gentil e insinuante:
Meu amor, falando sério: por que a gente não vai direto a Buenos Aires? Só a trapalhada que vai ser parar este navio imenso…
Está tudo acertado, Hellen. Aliás, ele já está parando faz horas... O capitão é meu amigo e meu leitor. Foi colega do meu pai na escola dos oficiais. Para falar a verdade, o desembarque já se transformou em outra atração do cruzeiro. Estão todos com inveja da nossa aventura!
Bem, espero que a gente não sofra muito. Você sabe que sou alérgica a mosquitos. E não suporto desconforto! Já passei da idade!
Bobagem, Hellen. A ilha é o paraíso.
Ah, nos livros é tudo uma maravilha. Mas esses lugares são cheios de aranhas, bichos, ui, que horror! Só de pensar me arrepia!
Ele segurou a mão dela, protetor — e feliz por vê-la momentaneamente mais frágil.
Você está comigo, meu anjo. Fique tranquila. Estou dizendo há meses: lá tem lugares belíssimos, cascatas, grutas de pedra, ruínas antigas. Vou tirar fotos, realizar meu sonho secreto de me tornar um bom fotógrafo. Além disso, o personagem central do meu próximo romance é um fotógrafo.
Sei. E vai para uma ilha deserta. É isso?
Ele riu.
Isso eu não decidi ainda...Ela se animou um pouco.
Bem, se é como você fala... tem mesmo lugares bem desabitados?
Só tem lugar vazio. A ilha é praticamente deserta.
O cochicho saboroso e safado:
Tudo bem, eu vou com você. Mas quero tirar umas fotos nuas — esse é o meu desejo secreto — e ela riu. — Você tira?
Tiro: a roupa e as fotos.
Finalmente risadas felizes. O sexo, meu Deus, o sexo! Como é bom! Mas ela não se convencia:
E o teatro, não vai ser uma chatice?
Meu bem, o teatro é essencial. Para isso que viemos.
Para isso que você veio. Não me inclua, por favor. Esse negócio de teatro moderninho você já sabe que não é comigo... Desde que me espirraram sangue de uma galinha assassinada no palco, em São Paulo, lembra?... Ui, que horror... não posso nem lembrar…
Ele riu.
Quanto a isso, acho que você não precisa ter medo. O teatro desse tal de Isaías pode ser tudo, menos moderno. A coisa tem um toque medieval. Parece que é um ritual, uma mistura de teatro com religião, praticamente sem plateia, a não ser meia dúzia de pescadores e alguns extraterrestres, como nós dois. Eu quero muito conhecer o velho Isaías. Tem fama de maluco.
Ele que escreveu a peça?
Pelo que sei, não tem nada escrito. É bem possível que o velho não saiba nem escrever.
Que horror!
É isso aí, meu anjo. Tomo aqui meu uísque sossegadinho a bordo do Da Vinci, e o Brasil se abarrota de analfabetos. E ainda me chamam de escritor popular, como se alguém que sabe escrever pudesse ser popular aqui. No máximo, meio popular... acho que é o meu caso.
Ela pensava, mexendo o gelo no copo.
Mas espere aí. Se não tem nada escrito e se é todo mundo analfabeto, vamos aprender o que nessa ilha?
Essa é boa... não tenho a mínima ideia. Pense na curtição da coisa. Cabeça aberta. É para isso que vamos lá.
Está bem, mas fica selado meu protesto solene. Se é para o teu bem…
Você vai gostar, Hellen. Prometo.
Ele sentiu a brisa gostosa do mar, novamente feliz com a vida e com o amor. Talvez fosse o caso de, tranquilo, não esperar mesmo mais nada da mulher além daquela cativante infância recuperada, aquele terno e doce faz de conta, regado com os prazeres breves e intensos da pele. Sentia na mulher uma grande qualidade: ela jamais ameaçaria o paredão fechado do mundo dele. Uma descansada e completa solidão a dois.
De repente, a voz no alto-falante:
Senhoras e senhores! A ilha que vemos a estibordo é uma das paisagens mais maravilhosas do Atlântico Sul. Aqui, neste lugar esquecido e selvagem, vive um estranho profeta que todos os anos representa, durante a Semana Santa, a vida de Cristo! Ladies and gentleman! Here, in this beautiful island…
Correria desabalada de turistas para a proa, binóculos e máquinas fotográficas, dedos apontados, bocas abertas, ahs e ohs por toda parte.
Olha, filha, que beleza!
Mui hermoso!
It’s beautiful!
Das kleine wonder!
Ma che isola belissima!
Vinte minutos mais tarde, um boy percorria o convés, tabuleta pendurada no pescoço:
Mister António! Mister António!
Era hora de partir. Antônio vestiu uma camisa, Hellen uma blusa leve, recolheram sacolas, malas e frasqueiras do camarote. O escaler, com dois marujos, estava pronto para descer e levá-los à ilha. O capitão em pessoa — todo de branco, elegante, cinematográfico — veio despedir-se do casal, afirmando categórico, para o bando internacional de curiosos que rodeava o momento do adeus, que Antônio ainda escreveria um grande livro sobre o exótico lugar. Pipocaram três ou quatro fotografias — e um cochicho se esparramou pela assistência, dando conta de que se tratava de uma lua de mel, provavelmente paga em barras de ouro, daí a extraordinária deferência da Companhia em parar um transatlântico (seriam parentes do armador?), informação que fez multiplicar as fotos até se transformar numa verdadeira ovação em palmas.
Devolvendo os cumprimentos com acenos tímidos, afinal os dois embarcaram, ajeitaram-se sob a orientação dos marujos, roldanas e cabos giraram e o escaler desceu ao mar.
Hellen procurava ansiosa alguma coisa na mochila.— Você trouxe o Repelex?
Trouxe. Comprei dez tubos.
Mil adeuses da amurada. E em poucos minutos chegaram a uma enseada tranquila e acostaram num pequeno trapiche, onde duas figuras — um altíssimo, louro, outro mais baixo, moreno — os aguardavam.

Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão

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