O
escritor e sua esposa
No
convés de primeira classe do Leonardo da Vinci, à beira de uma
piscina de águas cristalinas, estendidos em espreguiçadeiras e
bebendo uísque on the rocks, Antônio e Hellen conversavam.
— Meu
bem, não poderia haver comemoração melhor para os meus trinta e
cinco anos: uma visita à selva. Você não acha?
Hellen
sacudia o gelo do copo, pensativa. Trocou o copo de mão e encostou
os dedos gelados na barriga ainda discreta de Antônio.
— Ai!
— Eu
acho que você merece.
Ele
sorria:
— A
selva ou o teu ataque de gelo?
— As
duas coisas, querido. Para falar a verdade, para ser bem, bem
sincera, essa tua... ahn... visita não me agrada muito. Que
extravagância! Tão boa que está a viagem! Poderíamos ir direto,
até Buenos Aires, como todo mundo.
Ele
não levou a observação a sério.
— Claro,
claro. Eu já sabia. Você nunca vai entender…
— Sei.
— Sorrindo: — Sou burra mesmo, não? Como é o nome daquele
livro? O gênio e a deusa…
— The
genius and the goddess, um texto menor do Huxley.
— É.
Você, o gênio, o escritor de sucesso, o teórico e o romancista. E
eu, a deusa…
— Gostosa...
— cochichou ele.
— E
burrinha, não é? Não é isso mesmo que você pensa, bem no fundo?
— Está
bem, meu amor, eu me entrego. Minha doce burrinha. — Deu mais um
gole. A misteriosa combinação de seres tão diferentes. Por que
estavam casados? A delicadeza do rosto, o tecido dos cabelos macios
entre os dedos, a admiração da leitora. Ou o dinheiro? Teria sido
mesmo o dinheiro? Alguém, de fato, casa por dinheiro, ou essa ideia
não passa de um folhetim — um folhetim que ele, Antônio Donetti,
jamais escreveria? — Vou te confessar uma coisa, Hellen.
— Coisa
boa ou coisa ruim? Se for ruim, guarde com você.
Ele
se irritou — detestava essas leviandades da mulher, que impediam a
sequência emocional das pequenas coisas, a emoção que talvez
salvasse sua vida, ultimamente amarga em segredo, um sentimento muito
vago e muito presente que não tinha coragem sequer de formular: a de
que traía algo fundamental; a de que traía algo irrecuperável.
Hellen, sábia, corrigiu-se a tempo, segurando carinhosamente a mão
dele:
— Desculpe.
O que você queria confessar?
— Que
te amo.
Ela
riu:
— Ah,
isso eu já sabia.
— Mas
eu não.
O
beliscão (não tão simbólico) na coxa dele, a raiva fingida:
— Ah
é? Pois repita, se for homem! — e os dedos apertando.
— Não,
não, não! Retiro o que eu disse.
— Assim
é melhor. Agora me dá um beijo.
Beijaram-se,
ele discreto, ainda carregando o peso da mentira, o azedo da covardia
e a dor do beliscão; e ela devorante e escandalosa:
— Meu
gênio gostoso…
Voltaram
a beber, cada um deu um gole. Terei mesmo casado por dinheiro, sem
nenhuma outra razão? Próximo deles, um grupo de jovens se
divertia aos gritos e velhas senhoras pálidas se lambuzavam de óleo.
Uma moça tímida aproximou-se, um livro à mão:
— Desculpe...
interromper vocês... Me disseram... — Sorria desengonçada, não
sabia onde botar as mãos, as pernas, o corpo, a alma; e olhava para
trás, para o outro lado da piscina, onde a família (um par de
velhos gordos e sorridentes) aguardava ansiosa a investida da filha —
... É que... O senhor que escreveu este livro?
Hellen
devassou a moça de alto a baixo, erguendo os óculos de sol. O
marido compensou a curiosidade impiedosa da mulher com uma gentileza
exagerada:
— Ah,
pois não... Fui eu, sim... Meu primeiro romance. Mas já saiu a
quarta edição, revista.
A
moça não entendeu, espantou-se:
— Em
revista, assim? — e imitou com as mãos inseguras o formato de uma
revista. Ante o sorriso constrangedor de Hellen, calou-se: podia-se
ver o calor e o rubor avançando na sua face. O silêncio, o olhar da
mulher e a indiferença do autor folheando o livro eram
insuportáveis. Coração disparado, prosseguiu: — Desculpe. Eu...
eu não entendo de livro. Quer dizer... meu pai... — e ela apontou
o velho imponente na espreguiçadeira, um ar de militar aposentado —
... meu pai está lendo... ele gosta muito... eu também... — e o
olhar de Hellen, fixo, sorridente, o escritor sem levantar a cabeça
do próprio livro. — Eu... queria um autógrafo, assim, quer dizer,
é a primeira vez que vejo um escritor de livros e…
Mais
um pouco e choraria. Antônio afinal abriu-se num sorriso:
— Claro,
claro! Só que... Hellen, você tem uma caneta na bolsa? — Sorriu
para a moça, que ela não tivesse medo: — Você sabe, casa de
ferreiro…
Ela,
instantaneamente feliz, aquilo acabaria logo:
— Caneta?
Eu trouxe! Aqui, ó!
— Ótimo.
Qual o seu nome?
— Prissila,
com dois esses.
Hellen
ergueu a cabeça, curiosa:
— Você
é filha única?
— Ahn?
Ah, sim, eu sou...— Já havia notado — e voltou a fechar os
olhos.
Caneta
em punho, livro aberto na página de rosto, incomodou-se com a
inexplicável grosseria da mulher. Por que dizer aquilo? Sentiu pena
da moça, provavelmente forçada pelo pai a ver o escritor in
loco, com observações do tipo Isso é cultura, minha filha!,
e ela com uma má vontade dos infernos, suando de desespero diante do
escritor e de sua insuportável esposa, com a resignação e o
estoicismo de quem paga uma promessa. Juventude! A juventude moderna,
ele pensava, não passa de uma burrice vazia, estéril, morta aos
vinte anos, com esses olhos de galinha legorne vendo o mundo como
quem vê uma vitrine de luzes coloridas que piscam, aqui, ali, ali,
aqui, uma galinha solta banhada de tédio, agitação e estupidez.
Afinal comoveu-se. Como se comovia fácil com a miséria do mundo
sobre a qual se propunha eventualmente a refletir nos seus livros
para aquela meia dúzia (no caso dele, aquela dúzia) de leitores
capazes de mergulhar fundo no poço da realidade... Eram poucos,
conformava-se, seriam sempre poucos, até o fim dos tempos.
— Tôni!
A moça está esperando!
— Ah,
claro! É que escrever dedicatória é... — mas calou-se; explicar
sempre piorava as coisas.
Prissila,
trocando a perna de apoio, mentia, delicada:
— Não
tem pressa, não. — Arriscou alguma coisa: — Os escritores...
é... são distraídos, não? Pensam muito! — encerrou séria,
sorridente e em pânico.
Desta
vez, Hellen foi suave:
— Tem
razão. O Antônio é superdistraído. Vive no mundo da lua.
— Deve
ser... ahn... — já havia começado a frase, e agora não havia
outra solução senão terminá-la, o quanto antes: — Deve ser bom
ser assim, é, ahn... culto, né?
O
culto, involuntário e barulhento feito uma pedra que rola,
soou como uma estranha ironia no coração do escritor. Imaginou
imediatamente a dedicatória: Prissila, larga teu pai bunda-mole e
vá viver a vida. Mas era muito difícil ser grosseiro. Frestando
as pernas dela, afinal apetitosas até as coxas, quando então
antecipavam uma futura obesidade, quase escreveu: Tesãozinho,
deixe de ser boba, saia dando por aí, frenética, que a vida é
curta. Um beijo na boca do... Os demônios invadindo sua cabeça:
Dionísio sempre foi mais interessante que Apolo. Outro gole de
uísque — aquela dedicatória durava uma eternidade, e ele começou
a suar — e o intelectual ameno, gentil, equilibrado e falso
ressurgia das cinzas: Prissila: há um pássaro no teu coração.
Esta não, é demais. (A moça aguardava, numa abnegação que já
lhe dava um toque de superioridade, a ponto de incomodar a mulher do
escritor — seu marido gênio emburrecera?) Ou então — ele
ponderava — o didatismo singelo, pré-messiânico: Que este
livro revele a outra Prissila que se oculta em você. Três mil
páginas publicadas e era derrotado, mais uma vez, por uma
dedicatória. Hellen, indócil, simulava indiferença:
— Acho
esse o pior livro do Antônio.
Um
frio na espinha do escritor, aquele segundo cada vez mais frequente
em que caía no abismo da distância: o que havia em comum entre ele
e a mulher? Respirou fundo, escreveu rápido: À Prissila, com o
abraço amigo do — e a assinatura ilegível. Sorriu e entregou
o livro, furioso consigo próprio — sou um homem imaturo —,
furioso com a mulher, com a moça, com a traição literária, com a
vida, o mundo e o inferno: fracasso e derrota, o destino universal. A
moça despediu-se sorridente, ele nem respondeu. Pediu outro uísque,
o peito seco, a mão trêmula. Hellen — ela conhecia exatamente
cada detalhe dos humores do marido, e sabia quando ele de fato se
tornava perigoso — fechou os olhos e ficou em silêncio, à espera.
Calculou: mais dois minutos e ele emitirá uma sentença
filosófica.
Donetti
devolveu ao garçom o copo vazio e pegou outro, cheio. Deu um gole
prolongado, repetiu a pergunta que sempre se fazia — por que não
era um monge iogue? — e devagar foi se sentindo mais calmo. De
olhos fechados, sentiu a mão de Hellen avançar carinhosa e
arrependida sobre a dele.
— Os
escritores nunca entenderão os homens.
— Por
que, meu bem?
— Porque
os artistas têm uma razão profunda para viver que supera todo o
resto: expressar e realizar a sua arte. Por esse impulso, eles fazem
qualquer coisa. O resto da humanidade não é assim. São bancários,
médicos, professores, lixeiros, funcionários públicos, gerentes de
lanchonete, serralheiros, que, ao fim e ao cabo, vivem apenas porque
nasceram. É uma coisa que jamais vou compreender. A menos que se
acredite em Deus.
— E
o que tem a ver uma coisa com outra?
— Tudo.
— Pensou um instante. — Ou melhor: nada. Estou só fazendo piada.
Eu jamais seria um filósofo. — O esboço de raciocínio acabou por
deprimi-lo mais: — A verdade é que não compreendo nada do que se
passa comigo, nem com os outros. Acho que por isso os meus livros
fazem algum sucesso aqui no Brasil. Absolutamente ninguém está
interessado em qualquer coisa verdadeiramente séria, essencial.
Mais
um gole. A depressão metafísica abraçou-o, gorda, imensa, mole, e
ele recebeu-a, todos os poros abertos, numa entrega irônica, quase
prazerosa. Mas não por muito tempo: era preciso, sempre, levantar de
novo.
— O
que eu estou necessitando mesmo é de um banho selvagem. Tenho a
impressão de que agora, aos trinta e cinco, minha literatura vai
mudar de rumo. Para melhor.
Hellen
continuava acariciando as mãos do marido.
— Eu
sempre acreditei em você. — Brincou: — Acho que você não
ganhou o Nobel ainda por pura perseguição.
Ele
riu alto, mas com alguma ansiedade; o Nobel, de fato, não era ainda
um sonho descartado para sempre. Para se livrar desse pequeno
fantasma, desviou-se para as férias na ilha, com a mesma abnegação
de quem resolve deixar de fumar, parar de beber, levantar cedo,
cuidar da saúde:
— Enfrentar
dois ou três meses nessa ilha, longe da civilização, não vai ser
muito fácil. Mas é preciso.
Hellen
tateou em sentido contrário, gentil e insinuante:
— Meu
amor, falando sério: por que a gente não vai direto a Buenos Aires?
Só a trapalhada que vai ser parar este navio imenso…
— Está
tudo acertado, Hellen. Aliás, ele já está parando faz horas... O
capitão é meu amigo e meu leitor. Foi colega do meu pai na escola
dos oficiais. Para falar a verdade, o desembarque já se transformou
em outra atração do cruzeiro. Estão todos com inveja da nossa
aventura!
— Bem,
espero que a gente não sofra muito. Você sabe que sou alérgica a
mosquitos. E não suporto desconforto! Já passei da idade!
— Bobagem,
Hellen. A ilha é o paraíso.
— Ah,
nos livros é tudo uma maravilha. Mas esses lugares são cheios de
aranhas, bichos, ui, que horror! Só de pensar me arrepia!
Ele
segurou a mão dela, protetor — e feliz por vê-la momentaneamente
mais frágil.
— Você
está comigo, meu anjo. Fique tranquila. Estou dizendo há meses: lá
tem lugares belíssimos, cascatas, grutas de pedra, ruínas antigas.
Vou tirar fotos, realizar meu sonho secreto de me tornar um bom
fotógrafo. Além disso, o personagem central do meu próximo romance
é um fotógrafo.
— Sei.
E vai para uma ilha deserta. É isso?
Ele
riu.
— Isso
eu não decidi ainda...Ela se animou um pouco.
— Bem,
se é como você fala... tem mesmo lugares bem desabitados?
— Só
tem lugar vazio. A ilha é praticamente deserta.
O
cochicho saboroso e safado:
— Tudo
bem, eu vou com você. Mas quero tirar umas fotos nuas — esse é o
meu desejo secreto — e ela riu. — Você tira?
— Tiro:
a roupa e as fotos.
Finalmente
risadas felizes. O sexo, meu Deus, o sexo! Como é bom! Mas ela não
se convencia:
— E
o teatro, não vai ser uma chatice?
— Meu
bem, o teatro é essencial. Para isso que viemos.
— Para
isso que você veio. Não me inclua, por favor. Esse negócio de
teatro moderninho você já sabe que não é comigo... Desde que me
espirraram sangue de uma galinha assassinada no palco, em São Paulo,
lembra?... Ui, que horror... não posso nem lembrar…
Ele
riu.
— Quanto
a isso, acho que você não precisa ter medo. O teatro desse tal de
Isaías pode ser tudo, menos moderno. A coisa tem um toque medieval.
Parece que é um ritual, uma mistura de teatro com religião,
praticamente sem plateia, a não ser meia dúzia de pescadores e
alguns extraterrestres, como nós dois. Eu quero muito conhecer o
velho Isaías. Tem fama de maluco.
— Ele
que escreveu a peça?
— Pelo
que sei, não tem nada escrito. É bem possível que o velho não
saiba nem escrever.
— Que
horror!
— É
isso aí, meu anjo. Tomo aqui meu uísque sossegadinho a bordo do Da
Vinci, e o Brasil se abarrota de analfabetos. E ainda me chamam
de escritor popular, como se alguém que sabe escrever pudesse ser
popular aqui. No máximo, meio popular... acho que é o meu caso.
Ela
pensava, mexendo o gelo no copo.
— Mas
espere aí. Se não tem nada escrito e se é todo mundo analfabeto,
vamos aprender o que nessa ilha?
— Essa
é boa... não tenho a mínima ideia. Pense na curtição da coisa.
Cabeça aberta. É para isso que vamos lá.
— Está
bem, mas fica selado meu protesto solene. Se é para o teu bem…
— Você
vai gostar, Hellen. Prometo.
Ele
sentiu a brisa gostosa do mar, novamente feliz com a vida e com o
amor. Talvez fosse o caso de, tranquilo, não esperar mesmo mais nada
da mulher além daquela cativante infância recuperada, aquele terno
e doce faz de conta, regado com os prazeres breves e intensos da
pele. Sentia na mulher uma grande qualidade: ela jamais ameaçaria o
paredão fechado do mundo dele. Uma descansada e completa solidão a
dois.
De
repente, a voz no alto-falante:
— Senhoras
e senhores! A ilha que vemos a estibordo é uma das paisagens mais
maravilhosas do Atlântico Sul. Aqui, neste lugar esquecido e
selvagem, vive um estranho profeta que todos os anos representa,
durante a Semana Santa, a vida de Cristo! Ladies and gentleman!
Here, in this beautiful island…
Correria
desabalada de turistas para a proa, binóculos e máquinas
fotográficas, dedos apontados, bocas abertas, ahs e ohs por toda
parte.
— Olha,
filha, que beleza!
— Mui
hermoso!
— It’s
beautiful!
— Das
kleine wonder!
— Ma
che isola belissima!
Vinte
minutos mais tarde, um boy percorria o convés, tabuleta
pendurada no pescoço:
— Mister
António! Mister António!
Era
hora de partir. Antônio vestiu uma camisa, Hellen uma blusa leve,
recolheram sacolas, malas e frasqueiras do camarote. O escaler, com
dois marujos, estava pronto para descer e levá-los à ilha. O
capitão em pessoa — todo de branco, elegante, cinematográfico —
veio despedir-se do casal, afirmando categórico, para o bando
internacional de curiosos que rodeava o momento do adeus, que Antônio
ainda escreveria um grande livro sobre o exótico lugar. Pipocaram
três ou quatro fotografias — e um cochicho se esparramou pela
assistência, dando conta de que se tratava de uma lua de mel,
provavelmente paga em barras de ouro, daí a extraordinária
deferência da Companhia em parar um transatlântico (seriam parentes
do armador?), informação que fez multiplicar as fotos até se
transformar numa verdadeira ovação em palmas.
Devolvendo
os cumprimentos com acenos tímidos, afinal os dois embarcaram,
ajeitaram-se sob a orientação dos marujos, roldanas e cabos giraram
e o escaler desceu ao mar.
Hellen
procurava ansiosa alguma coisa na mochila.— Você trouxe o Repelex?
— Trouxe.
Comprei dez tubos.
Mil
adeuses da amurada. E em poucos minutos chegaram a uma enseada
tranquila e acostaram num pequeno trapiche, onde duas figuras — um
altíssimo, louro, outro mais baixo, moreno — os aguardavam.
Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão
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