Toco
e o anjo
Toco
tinha dois metros de altura e um anjo da guarda. Toda manhã a mesma
angústia: abrir os olhos, piscar, sentir a vã esperança de
liberdade, e afinal vê-lo, de novo, o maldito anjo — pendurado nas
tarrafas e redes do quarto, escondido atrás dos caniços, varas e
fios de pesca, olhando para ele, guardando-o a uma distância segura,
sempre um pouco assustado, talvez até mesmo com vergonha de viver
naquela indiscrição eterna. Não dormia, não sumia; somente
guardava-o. Fosse Toco onde fosse, acompanhava-o o anjo miúdo, a
dois, três metros de distância, com seu silencioso bater de asas —
e sempre com medo, temendo a mão de Toco, as pedras que quase o
acertavam, temendo a fúria, o ódio de Toco. Nesses ataques
esporádicos, voava célere, desaparecendo por alguns instantes. Mas
bastava Toco suspirar, fechar e abrir os olhos — e lá estava de
novo o anjinho, na fresta da porta, no telhado, no galho de árvore,
atrás das pedras, o olhar em Toco, alerta, mas respeitoso.
Por
fim, acostumou-se com o anjo. Excepcionalmente, chegava a falar com
ele, embora jamais ouvisse uma resposta: o anjinho era mudo. E Toco,
ao se perceber falando, sentia um medo adicional: o de que
percebessem seus monólogos, e bastava pensar nisso, na invasão do
que tinha de mais íntimo, para odiar o anjo com mais força:
— Um
dia te acerto, desgraçado.
Outras
vezes, nas noites melancólicas, de lua, filosofava:— Por que você
não é um passarinho? Te botava na gaiola, ficava teu amigo.
E,
quando bebia vinho com Edgar e depois vagava solitário pelos
caminhos da ilha, preparava armadilhas, oferecia doces:
— Vem
aqui, meu anjo! Vem aqui perto, come um doce! — e a mão esquerda
trêmula, pronta a agarrar e esgoelar a figurinha de asas.
Mas
o anjo nunca se aproximava.
Naquela
manhã de janeiro, acordou tarde e ficou na cama pensando na vida.
Uma sonolência gostosa, o calor, a perspectiva da pesca e,
principalmente, da Paixão que se aproximava, com a multidão de
amigos, das mulheres que ele amava e que logo iriam povoar a ilha,
como todos os anos. Sensação de preguiça e felicidade, a beleza
serena do ritual de Cristo, as conversas e bebidas noite adentro, as
mil paixões avulsas, a solidão compartilhada…
Finalmente
acordou de vez, levantou-se, vestiu um calção, desviou-se das redes
e tarrafas penduradas, passou indiferente pelo anjo, foi ao
banheirinho da segunda escada e mijou com estrépito. Depois, lavou o
rosto e ficou se olhando no espelho: duas espinhas na face ainda sem
barba. Lembrou a voz de Dilma: Você tem um rosto bonito. O que eu
queria mesmo era viver com você — e Toco sorriu. Estufou o
peito nu e viu-se cônsul romano, digno e corrupto no palácio das
prostitutas. Então — um gesto largo, lento, nobre — tu
és o Cristo? De noite, à beira do mar, lembrou (um ano
distante) o choro de Dilma: Você não gosta de mim — e o
beijo na boca. Lembrou também o peixe enorme que pescou num fim de
tarde, nas Grutas: oito quilos. No canto do espelho, o rosto do anjo
a fitá-lo, com espanto e medo.
Sacudiu
a cabeça — esquecer — e subiu à cozinha. Enquanto comia
pão e bebia leite, ainda sonolento, ouvia a máquina de costura
trabalhando sem parar numa saleta próxima, por certo a Vó e a Mãe
preparando as vestes da Paixão, com os velhos tecidos de sempre,
infinitamente retalhados e costurados em novas combinações.
Mastigando o pão — diante de tantas mulheres imaginárias que logo
povoariam a ilha —, fantasiava um modo de explicar preventivamente
à Dilma que talvez ela não fosse a mulher ideal para ele, mas se
sentia incapaz dessa façanha. Dilma, eu acho que... — e não
sairia disso, tomado de um mutismo que até a ele irritava; não era
bem timidez, era uma espécie intuitiva de filosofia, essa ausência
angustiante de palavras. Bem, talvez esse ano ela não viesse, e o
problema — se é que havia algum problema em algum lugar — se
resolveria por conta própria.
Pelo
olhar do anjo sentadinho na janela, percebeu que alguém se
aproximava. Rômulo atravessou o pátio central que dava para a
cozinha e estacionou à porta, violão debaixo do braço. Sem dúvida,
tinha acabado de acordar. A voz baixa e rouca:
— Tudo
bem com você?
Cabelos
sempre desfeitos, ar cansado, queixo meio caído, Rômulo era lento
de fala e de gestos. Há alguns meses dormia no chalé de Edgar.
— Tudo
bem, cara. Come aí qualquer coisa.
— Tô
sem fome. Os mosquitos quase me matam essa noite. Pô, não foi
fácil.
A
Mãe gritou de dentro da casa:
— Alguém
de vocês que leve comida pras galinhas!
Toco
livrou-se rápido:
— A
lata está aí no chão, Rômulo.
— Tudo
bem. — Virou-se para sair, parou, voltou-se. — Toco, tem um
cigarro?
— Não
fumo.
O
sorriso cansado de Rômulo.
— Ah,
é. Que bobeira a minha — e afastou-se dois passos, voltando em
seguida para pegar a lata de milho das galinhas.
Como
que para compensar o sonho com as mulheres, ou talvez pelo olhar
severo do anjinho, a lembrança da Paixão despertou em Toco um
sentido franciscano de responsabilidade, quase um bater no peito de
contrição. Doravante, todos precisavam acordar mais cedo e
preparar-se para os ensaios. Acabava agora a prolongada folga de fim
de ano. Mas a severidade súbita foi vencida mais uma vez pela
sensação gostosa do dia ensolarado. Vigiado pelo anjo, agora na
outra ponta da mesa, pensava no que fazer antes: aproveitar o resto
da manhã para pescar, tomar banho na enseada ou ler o penúltimo
capítulo das aventuras do capitão Krupp, um velho volume sem capa
que ele lia há meses. Para pescar, já era muito tarde. E, quanto à
leitura, queria prolongar ainda mais o prazer da história, a
expectativa do fim. O capitão Krupp era um homem corajoso e triste,
apaixonado por uma deusa raptada por um pirata também corajoso e
triste. Seria uma luta desesperada. Toco se imaginava um tanto
capitão Krupp (e também Lord Jim, para compensar o excesso de
grandeza, um outro livro que ele já lera umas três vezes) — e
sonhava com o dia em que sairia pelo mundo numa longa viagem. Rômulo
apareceu de novo na porta, lata de milho ainda na mão:
— Toco,
tá chegando alguém na praia, dá pra ver ali de cima. Será que não
era bom a gente…
Antes
que Rômulo terminasse de arrastar a frase, Toco já descia o morro,
contornando a casa. Correu pelo caminho entre as árvores que
separavam a encosta da enseada e, já na praia, viu Pablo tentando
puxar a canoa cheia d’água e Miro ajoelhado na areia.
— Pablo!
Miro! Viva!
Pablo
nem olhou, lutando na água. Miro abraçou-o demoradamente:
— Eh,
Toco, firme! E aí?!
— Tudo
bem, velhão! E teus quadros?
— Pois
dessa vez acertei! Ninguém vai botar defeito! Depois te mostro os
esboços. — Agoniado: — Me diga: a Aninha veio?
— Faz
tempo.
Alegria,
alegria!
— Mas,
bah, tem horas que dá tudo certo!
Toco
gritou ao Pablo:
— E
aí, bicho louco!? — Ao Miro: — Vamos lá dar uma ajuda que ele
deve estar furioso…
— Esse
Pablo é muito engraçado!…
Toco
e Pablo afinal se abraçam, velhos amigos.
— Levou
azar na canoa?
— Me
fodi. Ajuda a puxar, que esse bosta do Miro não serve pra nada.
Primeiro vamos tirar a água.
Toco,
braços de Hércules, virou a canoa de borco:
— Segura
na popa que eu aguento aqui.
Carregaram
a canoa até terra firme. Pablo, encharcado, vasculhava a mochila.
— O
cigarro, pelo menos, não molhou.
— Me
arruma um — pediu Miro.
— Mas
que cara de pau! Pega aí.
— Não
chia, Pablo. Depois eu compro outro maço. — Ao Toco: — A venda
funciona ainda?
— Funciona.
Só que lá em Garapa, no outro lado da ilha.
Pablo
afinal sorriu:
— É
só pra saber, porque dinheiro o Miro não tem mesmo.
— Só
espere eu vender umas telas, Pablo. Um mês de farra por minha conta!
— Tô
esperando. — Pablo tirava as calças.
— Tem
mulher por perto? Se tiver eu já como aqui mesmo. Porra, que atraso.
Deram
risadas, Pablo vestiu um calção quase seco e os três sossegaram na
sombra, olhando o mar. Os assuntos se atropelavam em silêncio, a
ânsia de colocar a vida em dia, mil detalhes para contar — e era
tudo tão importante! Esperavam que o principal viesse à tona,
vivendo a emoção discreta do reencontro. Miro, indócil, enterrou o
toco de cigarro no chão e levantou-se:
— Vou
andar, pessoal, arrumar minhas tralhas. O Isaías, a Vó, a Mãe,
tudo bem?
Tudo
estava bem na ilha. Mas, antes de subir, ele achou melhor esclarecer:
— Negócio
seguinte, Toco: eu quero pintar nesses dois meses. Quero ver se pego
uma gruta do sul e trabalho dia e noite. Preciso me livrar dos
ensaios. O que você acha?
— Fala
com o Cisco.
O
nome caiu como uma sombra no rosto de Miro. Toco suavizou:
— Mas
acho que com você não tem problema, já está por dentro. Depois
você explica pra ele.
— Tudo
bem. — Pegou a mochila, o pacote dos quadros. — Vou subindo, tô
morrendo de fome. Vocês ficam?
— Vamos
dar um tempo.
Miro
avançou dois passos, parou, olhou em volta, riu sozinho:
— Essa
ilha é demais. Nasci de novo — e seguiu adiante.
Pablo
fumou o cigarro até o filtro e arremessou-o longe com um peteleco.
Vendo o anjo coçar a asa, empoleirado na canoa, Toco pensava em
Pablo, o velho amigo. Costumavam falar pouco, mas compartilhariam
horas e horas de silêncio.
— A
Carmem já veio, Toco?
— Não
ainda. Vocês dois são os primeiros do ano.
— Eu
tinha que vir. Não aguentava mais de dor de estômago. Meu último
emprego foi de guardião de estacionamento. Sempre chegava um filho
da puta pra pegar o carro às quatro da madrugada.
Toco
achou graça.
— E
aquela menina que você comentou ano passado?
— Casou.
Com outro, é claro.
Riram.
Pablo quase começava a se sentir bem:
— É
chegar aqui e melhora tudo. Quer dizer, pelo menos no primeiro dia.
Mas eu sei: devagar vou me emputecendo com coisas miúdas e no fim é
um inferno. Você entende isso?
Toco
riscava a areia.
— Acho
que entendo. Vamos tomar uns porres de vinho. Aí fica tudo claro.
— É.
Pausa.
Pablo ia dizer qualquer coisa, desistiu, e acabou falando, uma
ansiedade mal disfarçada:
— Já
distribuíram os papéis?
— Não
ainda. Mas vai ser daquele jeito: cada um escolhe o seu. Sempre deu
certo. O que você quer ser?
Um
segundo apenas de incerteza — e a confissão abrupta:
— Jesus
Cristo. Eu queria fazer o Cristo. Eu sei que não tenho imaginação,
que não sei falar direito, mas eu queria. — Segurou o braço de
Toco, que contemplava o anjo alarmado com a ideia, boquiaberto diante
dele. — O que você acha?
— Eu
acho muito bom, Pablo. Já comentei com o Cisco e concordamos que
você seria o Cristo certo para esse ano. Fique tranquilo.
Pablo
suspirou — e imediatamente imaginou-se no grande Sermão da
Montanha: as pernas tremendo, a voz sufocada, a multidão ansiosa, os
braços erguidos, o sol no rosto. O rosto de Carmem: eu te amo,
Pablo. Depois, as chicotadas sob a cruz e a redenção final. Um
belo começo de ano.
— Quem
já está aí, Toco?
— Pouca
gente. A casa ficou meio vazia. Edgar…
— Saudades
dele...
— ...
Aninha, o Barros…
— O
Barros!? Aquele filho da puta?
— É.
Faz uns três ou quatro meses. Eu quase nunca vejo.
— Ainda
bem. E quem mais?
— O
Rômulo…
— O
mosca-morta?
— É.
— Bom,
pelo menos arranjo umas cannabis de vez em quando…
Riram.
E Pablo se entusiasmava, antecipando a Paixão:
— Tomara
que venha bastante gente boa esse ano. Fazer uns ensaios porretas, de
limpar a alma. O velho Isaías está bom?
— Firme,
do jeitão dele, no meio do mato. Só se vê de longe.
— Grande
figura, o Isaías... O Isaías salvou minha vida. Se não fosse essa
Paixão, eu já tinha dado um tiro na cabeça. — Mais assunto: —
E a pesca?
— Outro
dia peguei um robalo de cinco quilos.
— E
camarão?
— Ainda
tem bastantinho.
Planos:
— Um
dia desses fazemos um acampamento nas Grutas, levamos vara, linha,
isca, tarrafa. E eu levo a Carmem, ah, a Carmem! Toco, por Deus do
céu, se ela quiser transar comigo como quis no ano passado, largo
tudo, venho pra cá, planto uma horta e tenho um filho com ela. Quero
sossego. Ficar olhando as bananeiras. Coçando o saco na beira da
represa. Ó meu braço: só de pensar fico arrepiado. — De repente
sério: eram coisas demais ao mesmo tempo, o sonho desmoronava. —
Mas... me diga: por que uma coisa tão simples é tão difícil?
Agora
o anjo vigiava Toco por trás, oculto nas ramagens.
— Não
sei, Pablo.
Os
dois pensavam, súbito melancólicos. De repente, Pablo levantou-se
assustado e apontou o mar:
— Caralho!
O que é aquilo?!Toco também se ergueu, assombrado:
— Olha
lá, cara!... que puta navio!…
Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão
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