Batalha
nos céus
A
casa de Isaías era uma bizarra construção ao pé da montanha,
feita de pedras, madeira, tijolos, troncos, folhas de zinco, portas
velhas, chapas de compensado, telhas de todo tipo — um material
recolhido ao longo dos anos, trazido pelo mar, comprado de segunda
mão, desenterrado de ruínas, que foi criando, a partir de uma sala
inicial, uma sequência caótica de corredores, quartos, escadas,
saletas, meias-águas, pátios, morro acima ou morro abaixo, de
acordo com os acidentes do terreno e com a necessidade, de modo a
abrigar algumas dezenas de filhos, amigos, curiosos, visitantes que
ali chegavam e iam ficando ou se revezando, numa espécie anárquica
de tribo, sob a autoridade silenciosa e distante daquele velho de
barbas longas.
Nos
últimos anos, só era visto ali de madrugada, quando todos dormiam.
Depois de percorrer os mil e um caminhos da casa, subir e descer
degraus no silêncio dos pés descalços, regar folhagens, colocar e
recolocar tudo no lugar numa impossível ordenação — conchas,
cadeiras, estatuetas, garrafas — em meio a um monólogo sussurrado
com a irritação de quem não terá tempo de consertar o mundo
inteiro, como desejaria, e depois de tirar o leite de duas vacas que
gostavam de fugir dele e destroçar a pequena horta, e de ajeitar
alguns paus caídos da velha cerca, e de juntar um que outro lixo e
recolher um copo de vinho escondido numa touceira, e de olhar em
volta, desanimado — o mundo é muito grande para as nossas mãos
pequenas —, costumava afinal comer um pão com manteiga, alguns
legumes sem tempero, e subir a encosta, sua verdadeira morada.
Assim
fez, naquele amanhecer de janeiro. Subia o morro com a vagareza e a
pontualidade do sol, parando em cada plantação, em estreitas e
engenhosas plataformas de pedra, carpindo o mato, abrindo covas,
semeando, transplantando mudas — e às vezes interrompendo o
trabalho para uma cachimbada. Naquela manhã estava preocupado,
entretanto: tinha uma missão a cumprir. Mais algumas horas de
trabalho e decidiu subir a escadaria até o topo da montanha.
Eram
mil degraus irregulares de pedra, numa picada abrupta e estafante,
que ele mesmo construíra, dia após dia, até o alto, uma clareira
de vista magnífica para os quatro pontos cardeais, onde soprava um
vento eterno. Subia devagar, cada vez mais devagar, ajeitando matos e
flores, podando ramagens, e sempre monologando, um resmungo
sussurrado que ia dando sentido aos gestos e parecia criar, só pela
força da voz, um outro mundo.
Às
vezes parava, sentava num degrau, tirava o cachimbo e o fumo e os
fósforos de um bolsão da túnica surrada, e fumava, pensativo;
entre uma baforada e outra, redesenhava as linhas, as cores, os sons
e as curvas das extensões da ilha só com um olho e a ponta do
cachimbo riscando o espaço, a mão estendida. E pensava, também, na
tarefa difícil que teria nos próximos dois meses, uma tarefa que
exigia, como todos os anos, proteções maiores que simplesmente a
força do desejo. Distraído entre o desenho e o pensamento, batia o
cachimbo na pedra, limpava-o com carinho, guardava-o e prosseguia a
subida.
Finalmente
chegou ao topo da montanha. A única coisa erguida naquela pequena
vastidão vazia era um banco de pedra, capaz de resistir ao vento. Em
todas as direções, via-se o mar e a grande curva do horizonte. Ele
estava no centro do mundo. Isaías sentou-se, cruzou as pernas e, sem
pressa, recomeçou a lida com o cachimbo, agora de má vontade, como
se perseguido pelo vento que lhe sacudia os cabelos ralos. Acima
dele, o céu — e nuvens negras que começaram a encobrir o sol, a
ilha e a encapelar as águas.
Mas
ele não olhava para cima. Cuidava do cachimbo, quase indiferente,
pensando no que iria falar, enquanto as nuvens — negras e brancas,
armando-se imponentes — formavam um volume gigantesco nos céus,
que parecia uma versão ampliada e grandiosa dele mesmo. A sombra
repentina na clareira e a sensação angustiante de que o momento
mais uma vez se aproximava o levaram a se refugiar na lembrança dos
velhos tempos, quando ele ainda repetia ladainhas da Bíblia — no
tempo em que ele ainda sabia ler. Com os anos, foi esquecendo as
falas e inventando outras, mais irritadas, sentindo-se cada vez mais
semelhante ao próprio Deus.
— Senhor...
— recitava ele sem levantar a cabeça, lidando com o cachimbo agora
indócil nas mãos — ... aqui estou eu de novo, a... a... a
pedir... — mas alguma coisa estava errada: a falta de convicção,
e ao mesmo tempo a irritação pelo cachimbo que não acendia — ...
a pedir a proteção que o senhor não me tem dado nos últimos anos.
Minha paciência se esgota! — vociferou por fim, na última
tentativa de acender o fumo.
E
veio a trovoada:
— MISERÁVEL!
TENHO PERCEBIDO O TEU DESPREZO PELA CRENÇA! TODA A MEMÓRIA DO MEU
CULTO E DO CULTO DO MEU FILHO TRANSFORMA-SE, NAS TUAS MÃOS IMPURAS,
NUM RITUAL CORROMPIDO. NÃO VEJO FÉ, MAS CINISMO; NÃO VEJO
HUMILDADE, MAS ARROGÂNCIA; NÃO VEJO RESPEITO, MAS SODOMA E GOMORRA!
EM NADA ÉS DIFERENTE DO RESTO! — E O SUSPIRO DE DEUS, AINDA COM UM
FIAPO DE PACIÊNCIA, SE FEZ OUVIR NA TERRA. — QUE TENS A DIZER
AGORA?
Isaías
tentava manter a calma. Irritava-o aquela nuvem imensa, aquela sombra
enorme.
— Não
pense que me põe medo com essa trovoada. Venho por bem, em paz!
— TU
ME INSULTAS!
Isaías
suspirou, o cansaço de uma vida inteira.
— Ouça
com atenção: a verdade é que o Senhor está velho e cego. Não há
neste mundo inteiro um só desgraçado que lhe dê um tostão furado.
E eu, sozinho, sem ajuda de ninguém, a não ser com este bando...
com esta corja de aflitos e desesperados que vem comer de graça por
dois meses, e eu me dou ao trabalho de venerar o Senhor.
— TU
AINDA ME INSULTAS, MISERÁVEL? CHAMAS VENERAÇÃO A ESTE CRISTO
DECADENTE QUE CRUCIFICAS TODO ANO?
Finalmente
aceso o cachimbo, Isaías tentava pôr a cabeça em ordem. Era
preciso conversar com calma, mas ressurgia nele a velha desconfiança
das palavras, a sensação de inutilidade profunda de todo aquele
arrazoado lógico. Era impossível qualquer comunicação verbal: se
pudesse se fazer sentir, se Deus pudesse ler seus pensamentos,
compreender suas intenções mais subterrâneas — ele estaria
salvo. Mas não: era preciso voltar à retórica vazia, à paciência
que se tem com os velhos, com os doentes, com os moribundos.
Suspirou. Era preciso recomeçar, enfrentar aquela sombra que se
movia furiosa diante dele.
— Senhor…
As
nuvens se acalmaram, talvez comovidas com a aparente contrição.
— ...
vou tentar me explicar.
Silêncio.
Deus aguardava, soberano. Em Isaías, a angústia crescente — mais
uma vez, não conseguiria.
— Quero
devolver a Deus a grandeza de Deus.
Gostou
do que disse: como quem descobre a chave. Mas a trovoada:
— O
QUÊ? DEVOLV…
— Espere!
É isso! Quero te tornar grande, necessário! Quero te usar para
salvar os homens! — Levantou-se agitado do banco de pedra, apontou
com o cachimbo o mar revolto onde muito ao longe se debatia uma
canoa. — Está vendo aqueles dois aflitos? — Desesperava-se por
demonstrar a Deus a nitidez que sentia na alma: — Está vendo?
Aqueles…
— TU
ME…
— Espere!
Eu tenho de falar! Aquelas duas sombras perdidas no mar e no mundo
são a matéria-prima do meu ritual! Esta ilha vai se encher de
loucos e perdidos, de doentes que nada sabem da vida, de homens e
mulheres cegos, de gente na escuridão, de seres massacrados de
mesquinharias, jovens corrompidos e sem saída nem futuro; e eu faço
eles viverem, sem nada ensinar, porque nada se ensina, Senhor — e
esse nada se ensina, dedo sacudindo, soava com a força de uma
advertência —, eu faço eles tirarem de dentro da alma, por conta
própria, toda a grandeza possível da nossa vida curta e vazia; eu
deixo eles maiores do que eles de fato são... Não percebe, Senhor?
Mas para isso preciso também da sua ajuda, Deus miserável e
egoísta, de ajuda e não de rezas, que não servem para nada!
Preciso de sua ajuda renovada, porque, bem ou mal, o Senhor é o meu
único modelo!
Emocionado
pela força da voz, Isaías chorava, agora: via a canoa distante
dançando aflita no mar e chorava. Afinal envergonhado, o céu em
silêncio, abaixou a cabeça, enxugou as lágrimas com a manga da
túnica, sentou-se de novo no banco de pedra e, mais uma vez, olhou
as nuvens de frente. Não era um pedido de desculpa; era apenas o
reconhecimento de um pequeno fracasso:
— Falei
demais, eu sei. Perdi o rumo da fala. — A fúria súbita, o dedo de
novo apontado aos céus: — Mas o Senhor não pode compreender? O
Senhor também se torna grande na Paixão! Em que outro lugar do
mundo, me diga, em que outro lugar o Senhor alcança esta estatura
viva? Responda!
De
novo as lágrimas: a ânsia de soltar as amarras, todas as amarras da
limitação da vida, romper as mesquinharias do próprio Deus,
fazê-lo voltar a si. E já previa a resposta, balançando desolado a
cabeça cansada: todos os velhos condicionamentos, a cegueira milenar
do poder, o temor da heresia, os chavões da divindade. As trovoadas,
tomando fôlego, descambaram medonhas céu abaixo:
— TUAS
PALAVRAS NÃO ME COMOVEM, MISERÁVEL ARROGANTE E ATREVIDO! OUÇO
INSULTOS E MAIS INSULTOS DE UM MORTAL DE TRÊS METROS DE ALTURA! QUE
QUERES, MALDITO? QUE EU AGRADEÇA POR ME CORROMPERES? POIS EU
DESPREZO TEUS GANIDOS DE SEMIDEUS! — O braço de Deus, uma nuvem
negra, atravessou Isaías de um lado a outro: — CUIDADO! EU
ADVIRTO: A MORTE TE RONDA, TE ESPREITA, TE ESPERA, DE BRAÇOS DADOS
COM O DEMÔNIO! SERÁ A ÚLTIMA VEZ!
Envolto
na escuridão, Isaías respondeu, cego, aos gritos:
— Não
tenho medo! Não me assusta! O meu jogo é limpo e venho em paz! Não
tenho culpa se o Senhor não me compreende! É a sua salvação,
miserável!
Sentiu
a cortante ironia dos céus:
— MINHA
SALVAÇÃO?! — e seguiu-se uma gargalhada terrível. — TU ME
MISTURAS COM TODOS OS DEUSES, TU ME JOGAS LAMA E ME TRANSFORMAS EM
BÁRBARO, EM BEZERRO DE OURO! E CHAMAS A ISTO SALVAÇÃO? NÃO TOLERO
A VULGARIDADE DOS TEUS TOTENS, A ARROGÂNCIA DAQUELES PEQUENOS DEUSES
PAGÃOS, NÃO SUPORTO TEUS RITUAIS PANTEÍSTAS! TU FAZES DE CRISTO,
MEU FILHO, UM HOMEM COMUM. POIS OUVE BEM: OU TU TE HUMILHAS E ME
ADORAS COMO DEVO SER ADORADO, O ÚNICO DEUS DE TODOS OS TEMPOS,
CRIADOR DO CÉU E DA TERRA, PREGANDO TUDO O QUE ESTÁ ESCRITO, OU NÃO
TE AJUDAREI EM NADA!
— O
Senhor não passa de um velho estúpido e cego, insensível ao mundo
dos homens! Pois fique aí, no seu paraíso morto, enquanto eu recrio
a vida na terra. E tem mais: não quero rebanho, mas solidão.
Agora
as nuvens subiam, deixando ainda um rastro de trovoadas:
— JÁ
TIVE PACIÊNCIA DEMAIS, MALDITO! MAS AINDA POSSO PERDOAR E TE AJUDAR.
ARREPENDE-TE! ARREPENDE-TE!
Súbito,
o céu se abriu, inteiro azul. Isaías suspirou, exausto, mas
aliviado. Fizera o seu trabalho, cumprira a sua parte. O resto não
era com ele. Voltou a preparar o cachimbo, que se apagara na luta.
Resmungou:
— Sozinho,
de novo sozinho. Carregar o mundo nas costas. Todo ano é o mesmo
inferno.
Olhou
para o alto, absorto, como quem constata, já conformado, um fato
inexorável:
— Ele
não compreende. Ele não compreende mais nada.
E
começou a descer o morro.
Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão
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