domingo, 11 de agosto de 2024

Ensaio da Paixão – II


Batalha nos céus

A casa de Isaías era uma bizarra construção ao pé da montanha, feita de pedras, madeira, tijolos, troncos, folhas de zinco, portas velhas, chapas de compensado, telhas de todo tipo — um material recolhido ao longo dos anos, trazido pelo mar, comprado de segunda mão, desenterrado de ruínas, que foi criando, a partir de uma sala inicial, uma sequência caótica de corredores, quartos, escadas, saletas, meias-águas, pátios, morro acima ou morro abaixo, de acordo com os acidentes do terreno e com a necessidade, de modo a abrigar algumas dezenas de filhos, amigos, curiosos, visitantes que ali chegavam e iam ficando ou se revezando, numa espécie anárquica de tribo, sob a autoridade silenciosa e distante daquele velho de barbas longas.
Nos últimos anos, só era visto ali de madrugada, quando todos dormiam. Depois de percorrer os mil e um caminhos da casa, subir e descer degraus no silêncio dos pés descalços, regar folhagens, colocar e recolocar tudo no lugar numa impossível ordenação — conchas, cadeiras, estatuetas, garrafas — em meio a um monólogo sussurrado com a irritação de quem não terá tempo de consertar o mundo inteiro, como desejaria, e depois de tirar o leite de duas vacas que gostavam de fugir dele e destroçar a pequena horta, e de ajeitar alguns paus caídos da velha cerca, e de juntar um que outro lixo e recolher um copo de vinho escondido numa touceira, e de olhar em volta, desanimado — o mundo é muito grande para as nossas mãos pequenas —, costumava afinal comer um pão com manteiga, alguns legumes sem tempero, e subir a encosta, sua verdadeira morada.
Assim fez, naquele amanhecer de janeiro. Subia o morro com a vagareza e a pontualidade do sol, parando em cada plantação, em estreitas e engenhosas plataformas de pedra, carpindo o mato, abrindo covas, semeando, transplantando mudas — e às vezes interrompendo o trabalho para uma cachimbada. Naquela manhã estava preocupado, entretanto: tinha uma missão a cumprir. Mais algumas horas de trabalho e decidiu subir a escadaria até o topo da montanha.
Eram mil degraus irregulares de pedra, numa picada abrupta e estafante, que ele mesmo construíra, dia após dia, até o alto, uma clareira de vista magnífica para os quatro pontos cardeais, onde soprava um vento eterno. Subia devagar, cada vez mais devagar, ajeitando matos e flores, podando ramagens, e sempre monologando, um resmungo sussurrado que ia dando sentido aos gestos e parecia criar, só pela força da voz, um outro mundo.
Às vezes parava, sentava num degrau, tirava o cachimbo e o fumo e os fósforos de um bolsão da túnica surrada, e fumava, pensativo; entre uma baforada e outra, redesenhava as linhas, as cores, os sons e as curvas das extensões da ilha só com um olho e a ponta do cachimbo riscando o espaço, a mão estendida. E pensava, também, na tarefa difícil que teria nos próximos dois meses, uma tarefa que exigia, como todos os anos, proteções maiores que simplesmente a força do desejo. Distraído entre o desenho e o pensamento, batia o cachimbo na pedra, limpava-o com carinho, guardava-o e prosseguia a subida.
Finalmente chegou ao topo da montanha. A única coisa erguida naquela pequena vastidão vazia era um banco de pedra, capaz de resistir ao vento. Em todas as direções, via-se o mar e a grande curva do horizonte. Ele estava no centro do mundo. Isaías sentou-se, cruzou as pernas e, sem pressa, recomeçou a lida com o cachimbo, agora de má vontade, como se perseguido pelo vento que lhe sacudia os cabelos ralos. Acima dele, o céu — e nuvens negras que começaram a encobrir o sol, a ilha e a encapelar as águas.
Mas ele não olhava para cima. Cuidava do cachimbo, quase indiferente, pensando no que iria falar, enquanto as nuvens — negras e brancas, armando-se imponentes — formavam um volume gigantesco nos céus, que parecia uma versão ampliada e grandiosa dele mesmo. A sombra repentina na clareira e a sensação angustiante de que o momento mais uma vez se aproximava o levaram a se refugiar na lembrança dos velhos tempos, quando ele ainda repetia ladainhas da Bíblia — no tempo em que ele ainda sabia ler. Com os anos, foi esquecendo as falas e inventando outras, mais irritadas, sentindo-se cada vez mais semelhante ao próprio Deus.
Senhor... — recitava ele sem levantar a cabeça, lidando com o cachimbo agora indócil nas mãos — ... aqui estou eu de novo, a... a... a pedir... — mas alguma coisa estava errada: a falta de convicção, e ao mesmo tempo a irritação pelo cachimbo que não acendia — ... a pedir a proteção que o senhor não me tem dado nos últimos anos. Minha paciência se esgota! — vociferou por fim, na última tentativa de acender o fumo.
E veio a trovoada:
MISERÁVEL! TENHO PERCEBIDO O TEU DESPREZO PELA CRENÇA! TODA A MEMÓRIA DO MEU CULTO E DO CULTO DO MEU FILHO TRANSFORMA-SE, NAS TUAS MÃOS IMPURAS, NUM RITUAL CORROMPIDO. NÃO VEJO FÉ, MAS CINISMO; NÃO VEJO HUMILDADE, MAS ARROGÂNCIA; NÃO VEJO RESPEITO, MAS SODOMA E GOMORRA! EM NADA ÉS DIFERENTE DO RESTO! — E O SUSPIRO DE DEUS, AINDA COM UM FIAPO DE PACIÊNCIA, SE FEZ OUVIR NA TERRA. — QUE TENS A DIZER AGORA?
Isaías tentava manter a calma. Irritava-o aquela nuvem imensa, aquela sombra enorme.
Não pense que me põe medo com essa trovoada. Venho por bem, em paz!
TU ME INSULTAS!
Isaías suspirou, o cansaço de uma vida inteira.
Ouça com atenção: a verdade é que o Senhor está velho e cego. Não há neste mundo inteiro um só desgraçado que lhe dê um tostão furado. E eu, sozinho, sem ajuda de ninguém, a não ser com este bando... com esta corja de aflitos e desesperados que vem comer de graça por dois meses, e eu me dou ao trabalho de venerar o Senhor.
TU AINDA ME INSULTAS, MISERÁVEL? CHAMAS VENERAÇÃO A ESTE CRISTO DECADENTE QUE CRUCIFICAS TODO ANO?
Finalmente aceso o cachimbo, Isaías tentava pôr a cabeça em ordem. Era preciso conversar com calma, mas ressurgia nele a velha desconfiança das palavras, a sensação de inutilidade profunda de todo aquele arrazoado lógico. Era impossível qualquer comunicação verbal: se pudesse se fazer sentir, se Deus pudesse ler seus pensamentos, compreender suas intenções mais subterrâneas — ele estaria salvo. Mas não: era preciso voltar à retórica vazia, à paciência que se tem com os velhos, com os doentes, com os moribundos. Suspirou. Era preciso recomeçar, enfrentar aquela sombra que se movia furiosa diante dele.
Senhor…
As nuvens se acalmaram, talvez comovidas com a aparente contrição.
... vou tentar me explicar.
Silêncio. Deus aguardava, soberano. Em Isaías, a angústia crescente — mais uma vez, não conseguiria.
Quero devolver a Deus a grandeza de Deus.
Gostou do que disse: como quem descobre a chave. Mas a trovoada:
O QUÊ? DEVOLV…
Espere! É isso! Quero te tornar grande, necessário! Quero te usar para salvar os homens! — Levantou-se agitado do banco de pedra, apontou com o cachimbo o mar revolto onde muito ao longe se debatia uma canoa. — Está vendo aqueles dois aflitos? — Desesperava-se por demonstrar a Deus a nitidez que sentia na alma: — Está vendo? Aqueles…
TU ME…
Espere! Eu tenho de falar! Aquelas duas sombras perdidas no mar e no mundo são a matéria-prima do meu ritual! Esta ilha vai se encher de loucos e perdidos, de doentes que nada sabem da vida, de homens e mulheres cegos, de gente na escuridão, de seres massacrados de mesquinharias, jovens corrompidos e sem saída nem futuro; e eu faço eles viverem, sem nada ensinar, porque nada se ensina, Senhor — e esse nada se ensina, dedo sacudindo, soava com a força de uma advertência —, eu faço eles tirarem de dentro da alma, por conta própria, toda a grandeza possível da nossa vida curta e vazia; eu deixo eles maiores do que eles de fato são... Não percebe, Senhor? Mas para isso preciso também da sua ajuda, Deus miserável e egoísta, de ajuda e não de rezas, que não servem para nada! Preciso de sua ajuda renovada, porque, bem ou mal, o Senhor é o meu único modelo!
Emocionado pela força da voz, Isaías chorava, agora: via a canoa distante dançando aflita no mar e chorava. Afinal envergonhado, o céu em silêncio, abaixou a cabeça, enxugou as lágrimas com a manga da túnica, sentou-se de novo no banco de pedra e, mais uma vez, olhou as nuvens de frente. Não era um pedido de desculpa; era apenas o reconhecimento de um pequeno fracasso:
Falei demais, eu sei. Perdi o rumo da fala. — A fúria súbita, o dedo de novo apontado aos céus: — Mas o Senhor não pode compreender? O Senhor também se torna grande na Paixão! Em que outro lugar do mundo, me diga, em que outro lugar o Senhor alcança esta estatura viva? Responda!
De novo as lágrimas: a ânsia de soltar as amarras, todas as amarras da limitação da vida, romper as mesquinharias do próprio Deus, fazê-lo voltar a si. E já previa a resposta, balançando desolado a cabeça cansada: todos os velhos condicionamentos, a cegueira milenar do poder, o temor da heresia, os chavões da divindade. As trovoadas, tomando fôlego, descambaram medonhas céu abaixo:
TUAS PALAVRAS NÃO ME COMOVEM, MISERÁVEL ARROGANTE E ATREVIDO! OUÇO INSULTOS E MAIS INSULTOS DE UM MORTAL DE TRÊS METROS DE ALTURA! QUE QUERES, MALDITO? QUE EU AGRADEÇA POR ME CORROMPERES? POIS EU DESPREZO TEUS GANIDOS DE SEMIDEUS! — O braço de Deus, uma nuvem negra, atravessou Isaías de um lado a outro: — CUIDADO! EU ADVIRTO: A MORTE TE RONDA, TE ESPREITA, TE ESPERA, DE BRAÇOS DADOS COM O DEMÔNIO! SERÁ A ÚLTIMA VEZ!
Envolto na escuridão, Isaías respondeu, cego, aos gritos:
Não tenho medo! Não me assusta! O meu jogo é limpo e venho em paz! Não tenho culpa se o Senhor não me compreende! É a sua salvação, miserável!
Sentiu a cortante ironia dos céus:
MINHA SALVAÇÃO?! — e seguiu-se uma gargalhada terrível. — TU ME MISTURAS COM TODOS OS DEUSES, TU ME JOGAS LAMA E ME TRANSFORMAS EM BÁRBARO, EM BEZERRO DE OURO! E CHAMAS A ISTO SALVAÇÃO? NÃO TOLERO A VULGARIDADE DOS TEUS TOTENS, A ARROGÂNCIA DAQUELES PEQUENOS DEUSES PAGÃOS, NÃO SUPORTO TEUS RITUAIS PANTEÍSTAS! TU FAZES DE CRISTO, MEU FILHO, UM HOMEM COMUM. POIS OUVE BEM: OU TU TE HUMILHAS E ME ADORAS COMO DEVO SER ADORADO, O ÚNICO DEUS DE TODOS OS TEMPOS, CRIADOR DO CÉU E DA TERRA, PREGANDO TUDO O QUE ESTÁ ESCRITO, OU NÃO TE AJUDAREI EM NADA!
O Senhor não passa de um velho estúpido e cego, insensível ao mundo dos homens! Pois fique aí, no seu paraíso morto, enquanto eu recrio a vida na terra. E tem mais: não quero rebanho, mas solidão.
Agora as nuvens subiam, deixando ainda um rastro de trovoadas:
JÁ TIVE PACIÊNCIA DEMAIS, MALDITO! MAS AINDA POSSO PERDOAR E TE AJUDAR. ARREPENDE-TE! ARREPENDE-TE!
Súbito, o céu se abriu, inteiro azul. Isaías suspirou, exausto, mas aliviado. Fizera o seu trabalho, cumprira a sua parte. O resto não era com ele. Voltou a preparar o cachimbo, que se apagara na luta. Resmungou:
Sozinho, de novo sozinho. Carregar o mundo nas costas. Todo ano é o mesmo inferno.
Olhou para o alto, absorto, como quem constata, já conformado, um fato inexorável:
Ele não compreende. Ele não compreende mais nada.
E começou a descer o morro.

Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão

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